A ex-surfista profissional Keala Kennelly estava tomando um cappuccino em sua casa no Havaí, no último dia 13 de outubro, quando recebeu uma mensagem de um amigo.
O texto dizia que a World Surf League (WSL), organizadora do Circuito Mundial de Surf, planejava realizar uma competição em 2025 em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos (EAU).
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Kennelly, que se assumiu como gay há duas décadas, ficou revoltada. As leis dos Emirados Árabes proíbem o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a homossexualidade.
“Fiquei com um nó no estômago”, disse Kennelly à Outside USA. “Como a WSL espera que um atleta LGBTQ+ viaje e compita em um país onde sua própria existência é ilegal?”
Kennelly, uma das surfistas mais premiadas de todos os tempos, escreveu uma nota contundente sobre a decisão da WSL e a publicou no Instagram. Ela afirmou que sediar eventos em países com histórico documentado de violações dos direitos humanos deveria ser inaceitável. Kennelly também demonstrou preocupação com a surfista australiana Tyler Wright, bicampeã mundial, que é abertamente gay e está escalada para competir no Circuito Mundial da WSL de 2025.
“Decidi fazer a postagem para conscientizar as pessoas, esperando que o uso da minha plataforma nas redes sociais indignasse as pessoas como essa notícia me indignou”, disse Kennelly. “Também queria mostrar apoio a Tyler para que ela saiba que não está sozinha e que tem pessoas a apoiando.”
Kennelly não foi a única da comunidade do surf a comentar a decisão. Embora Wright não tenha se manifestado, sua esposa, Lilli Wright, falou sobre a decisão da WSL no Instagram. “Tyler compete nesse circuito há mais de 14 anos e ostenta a bandeira do orgulho em sua camiseta desde 2020”, escreveu Lilli. “Mesmo depois de conquistar dois títulos mundiais, ela ainda não é valorizada o suficiente pela WSL para ser considerada quando eles venderam esse evento.”
Lilli escreveu sua mensagem junto a uma foto de Tyler correndo na praia com uma prancha, ao lado de uma postagem fixada com retratos de casamento do casal, de 2022. “A WSL tem o dever de cuidar de seus atletas para não colocá-los em situações potencialmente ameaçadoras como essa”, acrescentou.
A etapa de Abu Dhabi do Circuito Mundial acontecerá de 14 a 16 de fevereiro de 2025, na piscina de ondas artificiais Surf Abu Dhabi, na Ilha Al Hudayriat, uma faixa de areia ao sul da cidade onde foram construídos um parque de BMX, uma pista de ciclismo e um parque aquático, entre outras atrações. Segundo o comunicado da WSL, o local conta com tecnologia inovadora de geração de ondas da Kelly Slater Wave Company e é lar da maior e mais longa onda artificial do mundo.
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A WSL não é a única a realizar eventos nos Emirados Árabes, nem o único circuito a receber críticas por isso. Todo fevereiro, os melhores ciclistas do mundo se alinham para o UAE Tour, evento de abertura do UCI WorldTour, a mais alta categoria de competições de ciclismo. Desde 2009, a Fórmula 1 realiza o Grande Prêmio de Abu Dhabi em uma pista de corrida de última geração. Abu Dhabi também recebe alguns dos melhores tenistas do ano em um evento chamado World League, e até mesmo a NBA realiza uma exibição nos EAU, chamada Emirates NBA Cup. Outros eventos internacionais de grande porte, como vôlei de praia, futebol e vela, também ocorrem nos Emirados.
Críticos chamam essa prática de “sportswashing” — quando países repressivos atraem eventos esportivos internacionais para parecerem mais alinhados aos ideais ocidentais. O New York Times recentemente relatou as complexidades éticas de realizar eventos esportivos, como jogos da pré-temporada da NBA em Abu Dhabi, citando Ben Freeman, do Quincy Institute: “Quando você pensa nos EAU, eles querem que você pense em tênis. Eles adorariam que você pensasse na NBA […]. Prefeririam muito mais que você pensasse nisso do que nas coisas ruins que também fazem parte de sua reputação.”
Em sua postagem no Instagram, Kennelly destacou especificamente o histórico dos EAU em direitos humanos, particularmente para LGBTQ+ e mulheres. “As mulheres dos Emirados vivem sob tutela masculina”, escreveu ela. “Assassinatos de honra podem ficar impunes, pois a família da vítima pode perdoar o assassino.”
Segundo a Human Rights Watch, um grupo de defesa e pesquisa baseado em Nova York, as autoridades dos EAU também podem prender pessoas por uma série de “atos indecentes flagrantes”, incluindo “demonstrações públicas de afeto, expressões de gênero não conformes e campanhas em defesa dos direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgênero (LGBT)”.
No dia 16 de outubro, o Queer Surf Club, uma organização internacional que coordena encontros de surfistas de mentalidade semelhante, criou uma petição no Change.org para instar a WSL a remover Abu Dhabi do calendário do Circuito Mundial.
“A WSL escolheu apoiar um governo que criminaliza pessoas LGBTQIA+ e discrimina mulheres, e ao fazer isso, está colocando seus atletas, equipes de apoio e espectadores em risco”, lê-se no parágrafo de abertura da petição.
Mais de duas dezenas de organizações, desde o London Surf Film Fest até o Surf Queer Mexico e o Trans Cyclist Collective, aderiram à causa, promovendo-a em suas próprias redes sociais.
Kennelly disse à Outside que “definitivamente não” viajaria para Abu Dhabi. “Alguns comentários na minha postagem diziam coisas como ‘supera isso, apenas não faça coisas gays enquanto estiver lá’, disse ela. “Mas mesmo que eu viajasse sem minha esposa, eu pareço uma lésbica. Tenho cabelo curto, não uso roupas femininas. Mesmo que eu não fosse fisicamente agredida, não consigo imaginar como seria maltratada em um lugar assim.”
Kennelly se aposentou das competições da WSL em 2007 e duvida que Wright ou outros competidores atuais se manifestem contra o evento. O artigo 14.04 do regulamento da WSL proíbe especificamente que atletas façam comentários que coloquem a liga, a administração da WSL, os juízes ou seus patrocinadores em uma luz negativa. Essa regra se estende às redes sociais dos surfistas.
Lilli Wright preferiu não comentar à Outside quando procurada. “Definitivamente acho que é uma discussão muito importante a ser feita”, escreveu em resposta a uma solicitação de entrevista. “Mas neste momento não me sinto à vontade para dizer mais nada.”
Contudo, ela também escreveu abertamente sobre o quão desconfortável se sente ao pensar em Tyler competindo em um lugar como Abu Dhabi, ao mesmo tempo reconhecendo o impacto negativo que seria para sua carreira se ela decidisse não ir. “Vejo o quanto minha esposa trabalha duro todos os dias em sua carreira, e é irracional esperar que ela simplesmente não vá”, escreveu. “A vida dela vale mais do que um evento, mas não posso deixar de reconhecer que perder esse evento prejudicaria muito sua carreira.”
Lilli finalizou sua postagem voltando à sua frustração com a WSL: “No fim das contas, a WSL não tinha absolutamente nenhum direito de vender esse evento para esse local, esperando que sua única atleta abertamente queer concordasse em ir sem questionar.”
*Outside USA.