Dois brasileiros se arriscam em icebergs, lagos congelados e cenários improváveis para impulsionar novas dimensões do kitesurf
Por Bruno Romano
IMPONENTES PEDAÇOS DE GELO se espalham pelo mar da Islândia. Duros como rochas e afiados como navalhas, eles tomam conta de uma paisagem alucinante, mas nada convidativa. Eis que, como em uma cena de sonho, duas pipas de kite passam rasgando em alta velocidade, transformando os icebergs em divertidos obstáculos. O que parece um devaneio, arriscado e congelante, é bem real: quem controla as pranchas desse inusitado velejo são os brasileiros Reno Romeu, de 26 anos, e João Daniel Edde, o JD, de 30. Explorar os limites do kitesurf uniu a dupla em uma expedição imprevisível por quatro países da Europa, entre abril e maio deste ano, onde a única regra era tentar quebrar todas as regras do esporte.
Acostumado com triunfos em modalidades de manobras (freestyle) do kitesurf, e até com uma quebra de recorde mundial – o inédito giro de 2.250º ou sete voltas completas no ar –, Reno se surpreendeu com a própria ousadia: “Até hoje na minha carreira nunca havia feito nada parecido com esse desafio na Islândia”. A temperatura entre os blocos de gelo trazia sensação de queimação no corpo, além de as extremidades ficarem dormentes por longos períodos, conta. “Velejar em meio a icebergs é uma experiência absurdamente diferente para qualquer atleta de kite do mundo”, garante Reno. “O frio era enlouquecedor, mas aquele ‘parque’ de obstáculos naturais, dos mais diversos tamanhos, tipos e formatos, nos dava a impressão de estarmos sonhando acordado”, completa JD.
A sensação de voar sem limites também acompanhou os brasileiros na Noruega, onde a brincadeira da vez foi o snowkite. Com mobilidade semelhante à da versão sobre a água, essa categoria no gelo abre também novas possibilidades. “Não se veleja apenas de um lado para o outro, como também dá para subir verdadeiras montanhas”, explica JD. “A força do vento permite explorar lugares que dificilmente se chegaria andando, por isso é algo totalmente novo e libertador. Você abre uma outra dimensão”, descreve.
Flutuar sobre montanhas de gelo não era exatamente o que faziam Reno e JD há alguns anos, no Rio de Janeiro, quando se conheceram nas competições de kite. No Postinho, clássico pico de surf local, João assistiu à chegada da modalidade, que atraiu muita gente que já se divertia com pranchas nos pés. Como Reno, ele também pegava onda e ainda competia de wakeboard. Em um torneio local, os dois acabaram duelando por um troféu. Reno dominava a cena, mas acabou perdendo aquela disputa para JD, como o próprio gosta de lembrar. No mesmo dia, a rivalidade aumentou, porém também fortaleceu uma nova parceira. Com o crescimento da cena do kite, ambos resolveram gastar mais tempo na nova modalidade. “A partir dali, nossa amizade e nosso envolvimento no esporte só foi aumentando e não parou mais”, recorda JD.
O tour pela Europa, que gerou material para uma série de televisão do canal OFF, provou que a busca por inovação no esporte, mais do que títulos de competições, é o que tem nutrido a fome de exploração dos dois kitesurfistas. Na companhia da trupe de fotógrafos e filmakers Felipe Motta, Diego Correia e Gustavo Camarão, a dupla desvendou diferentes habitats de quatro países. Das montanhas gigantes e lagoas abaixo de zero na Noruega à fortíssima cena do kite na França, passando por águas internas em uma natureza surreal na Holanda e fechando com auroras boreais, que coroaram o pioneirismo do velejo entre icebergs, na Islândia. “Foram horas de dor e alegria que provavelmente nunca irei repetir de novo”, brinca JD.
“É engraçado achar que você já passou por todas as condições possíveis até deparar com tanta coisa diferente”, diz Reno. Algumas situações, ele conta, o deixaram sem reação por alguns minutos. “Gosto do kite justamente por isso: é um esporte que te deixa ser o mais criativo possível, ao improvisar, criar novos obstáculos e velejar nas condições que cada ambiente te oferece”, agrega.
Para encarar diferentes missões, o arsenal da expedição continha pipas de 7 a 15 metros e pranchas bidirecionais, tanto para botas fixas como para as adaptáveis às alças nos pés. Roupas de borracha de 6 mm de espessura com capuz também fizeram parte dos trajes obrigatórios nos momentos de mais frio, acompanhadas de luvas e botas de neoprene. Saltar sobre montanhas e velejar em lagos congelados são situações extremas onde o equipamento não pode falhar, caso contrário as consequências podem ser desastrosas, lembra Reno.
A aventura também testou um protótipo que pode revolucionar o esporte, segundo JD. Trata-se de um aparelho medidor, em fase final de desenvolvimento, que reúne diversas informações de performance em um visor acoplado à prancha. A ideia é analisar os dados em tempo real ou depois da sessão, ajudando a melhorar ainda mais o desempenho – além de tornar possível armazenar os números e compartilhá-los por internet.
Mesmo com tanta experiência na modalidade e com equipamentos de ponta, quem realmente “mandava” na missão era a natureza, garantem os atletas. Toda a sensação de realização e conquista, refletem, veio junto de uma forte confirmação de que nenhum planejamento está acima do que o ambiente impõe. Entender (e respeitar isso) parece ser o melhor caminho para superar antigos limites do que se pode fazer a bordo de um kite.
“Cansei um pouco da rotina de treinos e de viajar para os mesmos lugares, competindo nas mesmas condições”, diz Reno. “Eu sempre tive um espírito aventureiro desde pequeno, e essa foi uma das poucas viagens que fiz para explorar o esporte em lugares praticamente impossíveis”, garante. Por mais que os feitos sejam difíceis de medir longe de medalhas e pódios – e sob um frio que está mais perto do sofrimento do que do prazer –, JD tenta descrever o que aconteceu: “Depois que cada perrengue passa, ver que algumas barreiras foram quebradas ali mesmo é muito satisfatório e recompensador”.
Sua conclusão se baseia também em uma experiência vivida no lago glaciar islandês Jokulsarlon. Famoso entre os pontos turísticos do país, o pico foi escolhido como palco de um dos voos mais arriscados (e bem-sucedidos) da viagem. Já na saída do rolê, na busca por alguma forma de se esquentar, JD e Reno foram abordados por um senhor da Califórnia. “Vocês acabaram de ‘fazer’ a minha viagem”, reconheceu o norte-americano, que cumpria a divertida missão de guiar a família em um longo giro de carro pelo país.
“O que mais me surpreendeu foi o fato de a Islândia ser um lugar maravilhoso, com incontáveis cenários de belezas naturais – mar, neve, cachoeiras, vulcões, glaciares e animais selvagens –, mas, de tudo o que cara viu, aquela nossa sessão de kite voando em meio a icebergs lhe causou o maior impacto”, diz JD. “É um sinal de que realmente fizemos algo significativo naquele dia”, analisa. Flutuar pelo pedaço, transformando um sonho em realidade, era mesmo algo de “outra dimensão”. Alguém ter visto aquilo foi só um detalhe.