Neste mês, o sul-mato-grossense Cicero Barreto, de 42 anos, venceu a ultramaratona Mongolia Sunrise to Sunset. Esta prova, que acontece todo ano desde 1999, é autointitulada “a corrida de 100 km mais linda do mundo”. A paisagem pode até ser cênica, mas o esforço de Cicção, como ele é mais conhecido, foi descomunal.
“A dedicação e a disciplina dos treinos permeiam os desafios que enfrento no dia a dia como executivo, pai e marido”, diz.
A seguir, reproduzimos na íntegra o relato que ele postou em seu site cicao.com.br logo após a vitória heroica.
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“Desperto às 2:15am, quinze minutos antes do toque de despertar Mongol às 2:30am. Não havia conseguido dormir naquela noite, tamanha era a minha ansiedade. Todos meus sentidos estavam a pleno vapor. Fora da minha tenda, ouço passos mais acelerados e vozes em idiomas que não entendo.
Sinto as partes do meu corpo, meus pés, a unha do meu dedão (que sempre quer dar o ar da graça), pernas, joelhos, coxas, sinto meu peito inflando a cada respiração. Minha cabeça está tranquila, calma como as águas do Lago Hogsvol.
Como sempre faço, peço proteção com uma prece. Começo a me montar para o inicio de uma longa jornada, lambuzo meus pés de Hipoglós, coloco a meia surrada pelos treinos, visto a bermuda testada inúmeras vezes, assim como a camiseta costurada – “aquela que chamamos de jogadeira, sabe?”. Finalmente, calço meu tênis favorito e ponho o buff na cabeça.
Pergunto pra Nana se vai dar pra ela correr os 42 km e me vem a noticia que temia receber: ela fez um sinal de negativo com a cabeça, estava sem forças devido a uma intoxicação alimentar. No fundo no fundo, já estava me preparando para isso. Para confortá-la, disse que correria por nós.
Fui ao banheiro, tomei café junto com os demais atletas, voltei ao banheiro e parti pra minha tenda, precisava caprichar no aquecimento e encontrar meu equilíbrio.
Pelo 18º ano consecutivo, a largada da prova iria acontecer no Acampamento Toilogt às 4am. Desta vez, seria sob chuva. Representando o Brasil, me junto aos atletas de mais de 25 países, entre eles os mongóis, um japonês e um chinês, os favoritos pra ganhar a prova.
Começa a contagem regressiva… 10,9,8… Desta vez fico no meio pelotão… 7,6… BUUUMMMM… Um pelotão formado por mongóis e japoneses parte em disparada.
Era preciso ter muita atenção nos primeiros 3 km, pois estávamos dentro de uma floresta fechada, sob chuva. Sigo com meus passos, tomando cuidado pra não pisar em falso e muito menos em alguma raiz, pois um pequeno acidente pode ser o fim da prova.
Tenho meus olhos abertos ao máximo. Na minha frente segue um dos mongóis. Meu coração parece que vai pular do peito, tamanho é o ritmo dos batimentos.
Sinto minhas pernas fortes e, na primeira oportunidade, acabo passando pelo mongol, talvez um erro da minha parte, pois um local deve saber bem o caminho. Salto galhos, pulo raízes e, quando a floresta termina, tomo a trilha da direita, quando o certo, como iria descobrir, seria pegar a trilha da esquerda. Acho estranho, não vejo mais as marcações da prova, até que um cavaleiro mongol, um dos voluntários, grita me indicando o caminho certo.
Pego um estradão rumo ao PC Chichee no quilômetro 12 antes da primeira montanha. Logo alcanço e passo o atleta da Mongólia. No meu campo de visão há um atleta magro, corpo forte, todo paramentado com os produtos que os melhores ultras usam. Sem dúvida, um atleta disposto a dar seu recado.
Quando o alcanço, vejo que se trata de um japonês que, durante os dias que antecederam a prova, circulava com camisetas das provas que havia feito, todas com mais de 50 km. Em silêncio, corro ao lado dele por quase 7 km. Ouvimos apenas o barulho de nossas passadas e nossas respirações, como uma sinfonia. Passamos pelo primeiro PC em Chichee sem sequer pararmos.
Em alguns momentos, tomo sua frente e, não demora muito, lá está o japonês voador ao meu lado. Quando a subida começa, ele simplesmente dispara na minha frente.
Resolvo seguir no meu ritmo, trotando no começo das subidas e marchando firme quando elas ficavam mais íngremes.
Lá pelo quilômetro 17, passo pelo atleta mongol campeão do ano passado, faço um positivo a fim de saber se está tudo bem e ele me responde com o mesmo sinal.
É um prenúncio de que algo diferente está por acontecer. Penso comigo, Cição foca apenas na sua estratégia, esqueça qualquer outro tipo de pensamento.
Chego ao ponto mais alto da prova e lembro que havia prometido a meu técnico que faria uma foto ali para mandar aos amigos, mas infelizmente ainda está escuro, não fica boa – tudo bem, promessa é promessa!
Quando o primeiro downhill começa, vejo as luzes da headlamp do japonês e de mais um atleta indo bem mais a frente e penso, Esses dois não estão pra brincadeira… E nem estavam os atletas atrás de mim, pois na minha o campeão do ano passado e o atleta chinês vinham na minha bota.
Começo a me divertir na descida. Me sinto bem e, nesse momento, resolvo dividir a prova em 10 provas de 10 km, para dessa forma poder reagir positivamente a cada etapa completada. Bato no peito, abro as mãos e fecho os dedos contando as etapas finalizadas, dedicando cada uma a alguém da família ou a um dos amigos.
Já no PC Ongolov, no km 23, o dia começa a amanhecer. Passei pelo posto pegando uma batata com sal e parto rumo ao segundo pico. A chuva havia parado e o clima é gostoso pra correr, faz um certo friozinho.
Havia perdido de vista os atletas que iam a minha frente e os que estavam atrás também. Não demora para que eu alcance a segunda montanha.
Quando o dia clareia, posso perceber o porque de a prova ter o seguinte slogan: “The world’s most beautiful 100 km run”.
Corro cercado por montanhas, através de trilhas cobertas por flores e, ao fundo, toda a imponência do Lago Hogsvol.
Perto do km 35, passo por uma árvore que os mongóis chamam de “Ovo”, o que para o xamanismo tem um significado de paz, proteção. Segundo as tradições, toda vez que alguém avista uma dessas, é preciso dar três voltas ao seu redor pra que se tenha proteção.
Naquele momento, não tive dúvida, lá fui eu dar minhas três voltinhas.
E nessa, vejo passando um dos atletas da Mongólia, passando direto, aí pensei comigo…Ué, ele não vai dar as três voltinhas? Vai porra nenhuma! Passou por mim que nem uma bala e deve ter pensado, “Esse cumpridão aí parece maluco”.
CHEGO NO KM 42 pouco depois de 5 horas de prova, já tenho mentalizado o que fazer na passagem do posto de controle. Ali encontro a Nana, que me dá uma injeção de ânimo com a notícia de que sou o segundo colocado, atrás apenas do japonês voador.
Tão logo inicio a troca das meias, vejo o japa saindo pra segunda perna. Lembrei do significado da minha estratégia: “Mais vale uma parada bem feita do que uma mal feita – e ter de pagar o preço ali na frente”. Trato de fazer as coisas com calma, reabasteço a mochila com cuidado, como algo, dou um beijo na Nana e parto. Tempo investido: 5 minutos.
Tão logo saio da zona do acampamento, pego o caminho errado, o que me custa uns 20 minutos. Dá uma certa desanimada, caminho um pouco, respiro fundo, faço um xixi e, sentindo a mochila pesada, retomo minha corrida.
Faço as contas para o próximo posto de controle, resolvo esvaziar uma das minhas garrafinhas, de forma a reequilibrar o peso da mochila.
Chego no km 55 e pergunto à voluntaria francesa quanto tempo o japonês voador estava na minha frente. “Uns 25 minutos!”
As batatas servidas nos postos de controle caíam bem no meu estômago e a nova marca de gel que a Cris havia me indicado também. Meu estômago sensível não tinha reclamado até aquele ponto e as pernas respondiam aos comandos do cérebro.
Começo a subir por uma trilha que margeia um estradão, as marcas nas árvores de cor verde indicando o caminho a ser seguido. A trilha de terra preta e de raízes que brotam do solo dão o tom naquela parte da prova. A meta agora é chegar no Jankhai Pass, no km 59.
No topo da trilha, saio no estradão novamente e está rolando uma espécie de feira. Não tenho dúvida, abro o bolsinho da mochila, saco uns tugriks (moeda da Mongólia), compro uma coca e sai arrotando aliviado.
Tão logo a descida começa, fico tenso. Não vejo mais nenhuma marca indicando aonde ir, volto duas ou três vezes até a ultima marcação e nada.
O mapa mostra que o ponto mais alto fica a 2.083 metros e eu estou a 1.950 metros. Não sei ao certo se tenho de atacar a montanha a minha direita ou seguir pelo estradão.
Olho o mapa, respiro fundo mais uma vez e resolvo seguir no estradão morro abaixo. Passa 1, passam 2, 3, 4 km e nada de marcação… Penso comigo, Meu Deus, se tiver de voltar tudo isso, será um martírio psicológico pra mim…
Paro um carro que vem na minha direção, e dentro dele uma família mongol. Aponto no mapa o próximo ponto que devo alcançar e escuto: “Urik, Urik!”, e um sinal de positivo. Sinto um certo alivio, mas ainda sigo com o coração apertado.
Finalmente, quando meu relógio aponta km 63, vejo numa árvore uma marcação. Meu corpo amolece, numa mistura de felicidade e descompressão, por não ter errado o caminho.
A sensação mais estranha não demora a acontecer. Seguindo as trilhas fechadas por entre as árvores, vejo um vulto no meu campo de visão. Por um momento acho que é uma alucinação. É o japonês voador. Vai devagar, bem diferente do ritmo habitual.
Pouco antes do PC Uren, no km65, passo por ele e sinto meu estômago reclamando. Reflito sobre o que tenho de fazer naquele posto de controle a fim de não perder tempo. Chego no PC, tiro a mochila das minhas costas, lanço mão do meu kit de primeiros socorros e tomo um sal de frutas. Abasteço com água, pego mais uma batata e parto rumo ao próximo posto de controle – tudo isso na velocidade em que um corredor de 10 executa a sua prova.
Confesso que a sensação de liderar uma prova enche minha cabeça de bons e maus pensamentos:
- Pqp… tô liderando uma prova pela primeira vez;
- Minha família e meus amigos sentirão um puta orgulho se eu ganhar;
- O nome do Brasil e o meu entrarão para a história;
- Será que o japa está na minha bota?
- Não olha pra trás!
- Não viaja, você não ganhou porra nenhuma, falta muito chão, foca no que você está fazendo!
- A estratégia discutida com meu coach está dando certo.
Pensamentos que confortam, mas que, ao mesmo tempo, me incomodam. Pra ficar com os pés no chão, digo pra mim mesmo, ‘Quieta o facho, tem muita prova pela frente, o japa está na sua cola e seu objetivo aqui é ser finisher’.
Sem olhar para trás, faço do trecho seguinte o mais rápido da prova. Mantenho um ritmo tão forte ao ponto de o coração querer saltar da boca. Cruzo vários mongóis em seus cavalos pelo caminho, lembro de algumas cenas da série Marco Pólo que passa no Netflix, e que conta a epopeia do Império Mongol.
Meu segundo drop bag está em Modot Bulan PC, no km76.
Quando chego lá, me sinto um popstar. Vários mongóis querem tirar uma foto com o primeiro colocado. Penso comigo, Caraca, não ganhei nada, ainda tem 25 km pela frente e essa turma querendo fazer selfie comigo? Sinto a pressão de ocupar aquela posição, sinto que o japa pode chegar a qualquer momento.
Resolvo relaxar um pouco, tiro algumas fotos enquanto começo a fazer algumas trocas programadas. Saí Salomon, entra o Hoka, sai a meia molhada e entra a meia seca, sai a camiseta surrada e entra camiseta seca e cheirosa… Reabasteço e pimba, pé na trilha.
Ainda no Brasil, recebi um envelope dos amigos Elmo, Fernando, Sinoca e Vinícius, que só poderia abrir neste PC. Volto pra prova ainda com ele lacrado, não quero perder mais tempo e, tão logo abro, sou surpreendido com uma linda foto da familia e os amigos, com algumas palavras de incentivo #paunocat, #noizxomcicaonamongolia… Lágrimas caem e aumentam meu desejo de seguir forte na corrida.
O PC seguinte é em Jankai, no quilômetros 88, talvez o trecho mais exótico e lindo da prova, todo ele feito em trilha cercada por árvores e, à direita, um despenhadeiro de onde se pode ver o Lago Hosgvol.
Procuro manter qualidade, algumas vezes olhando pra trás a fim de verificar se o japa voador está chegando. É sério, ainda estou impressionado pelo ritmo alucinante que ele havia colocado na primeira parte da prova e aquilo me deixa inseguro.
Essa parte da prova parece não querer acabar. Procuro não dar trégua às minhas pernas e todo comando que vinha da minha cabeça eu procurava seguir. Quando finalmente a floresta acaba, escuto os voluntários gritando e batendo sinos.
Chego no PC morto, mergulho duas fatias de pepino no sal e mastigo, sinto o sal percorrer meus músculos, que por sua vez me respondem assim, “Anda logo, Cição, que nós não iremos aguentar muito tempo”.
É preciso ter a cabeça no lugar, pois os últimos 12 km são compostos por um estradão – um sufoco, ao menos para mim. Prefiro subir ou descer, ficar no plano não me é nada fácil. Quando esses pontos chegam, procuro me espelhar naqueles que mandam bem nesse tipo de terreno, como Fernandinho, Míni Cooper, Lígia… Penso sempre que eles estão ao meu lado, me incentivando.
Naquele momento prova, corro em campo aberto e, portanto, eu era a caça, não mais o caçador. Se o japonês visse meu estado, provavelmente saberia como me caçar.
Tento encaixar um ritmo confortável e quando as pernas deixam de responder, passo a usar a força mental, procurando focar em algum objeto a minha frente – uma placa, uma ponte, um animal – e digo pra mim, Vamos, Cicão, simbora correr até aquele ponto!
Chegando lá, caminho um pouco e logo acho outra pequena meta a ser alcançada e assim vou seguindo… Nesse trecho, olho pra trás um milhão de vezes!
Estou cansado, morto, mas sabendo que dou tudo de mim, não 100%, mas 110%.
Quando entro no acampamento e percebo que não posso mais ser alcançado, faço um vídeo, chorando pra cacete. Passa pela minha cabeça, ainda sem entender direito, que um sonho estava se tornando realidade.
Caracas, o Brasil vai ganhar! Sim, eu vou ganhar a mesma prova que havia visto no canal OFF há 3 anos. Sim, o locutor vai falar meu nome e o nome do meu país!
Corro, corro muito, e a poucos metros da chegada, vejo a bandeira do Brasil delicadamente repousando no solo que cavaleiros mongóis percorrem há milhares de anos.
Seguro ela em minhas mãos e, como o Senna fazia, faço ela flamular sobre minha cabeça e meus ombros. Escuto gritos, assobios, sinos, paro embaixo do pórtico e aponto pra cima, avisando a todos: Preparem as máquinas, vou saltar! E salto, homenageando meu outro esporte favorito, que é o voleibol. Lágrimas caem dos meus olhos quando vejo a Nana me filmando, toda orgulhosa.
Grito, pulo, vibro com todas as minhas forças, cumprimento todos e, por fim, dou um salto no lago Hosgvol. Um momento de benção pela vitória. Sim, vim de muito longe, só tinha uma chance e graças a Deus fui feliz.
O meu muito obrigado ao meu técnico, Marcelo Sinoca e ao Gabriel, que cuida da carcaça. E aos amigos queridos e a minha família o meu eterno carinho, respeito e amor.”