Por Kevin Damasio
NA INFÂNCIA, quando caminhava até o penhasco de Pe’ahi para observar o mar, Paige Alms considerava malucos os surfistas que eram rebocados por jet-skis até ondas gigantes, na ilha havaiana de Maui. Mal sabia ela que, anos mais tarde, também estaria ali no lineup da temida Jaws, para entrar de vez na história do big surf, em 22 de janeiro de 2015. A canadense radicada no Havaí, cuja trajetória é contada no recém-lançado documentário The Wave I Ride, escreveu seu capítulo na modalidade ao ser a primeira mulher a entubar, só com a força de sua própria remada, neste desafiador pico polinésio.
“Na minha mente, em meus sonhos, eu literalmente já tinha pegado essa onda muitas vezes”, conta Paige, hoje com 27 anos. “Quando saí do tubo, não parecia real. Eu estava em choque. Conseguir esse feito é amedrontador, bem mais difícil do que parece.” A surfista conta que esperou cinco anos por aquele momento – que foi o grande responsável por sua vitória no prêmio de Performance Feminina do Ano, no XXL 2015, o “Oscar do surf de ondas grandes”. A estrada para o sucesso, entretanto, até hoje permanece sinuosa.
Paige nasceu em Victoria, no Canadá, e aprendeu a surfar na Austrália, aos 8 anos. Na temporada seguinte, mudou-se com a família para Maui, onde se envolveu cada vez mais com o surf, enquanto percebia que este era exatamente o caminho que desejava seguir. Competiu por dois anos no WQS, a divisão de acesso para a elite mundial. “Ela era a garota a ser batida”, lembra, no documentário, a havaiana Carissa Moore, que em 2015 conquistou o tricampeonato mundial. Contudo Paige ficou desmotivada diante das ondas ruins nas quais os campeonatos eram disputados, além da falta de patrocínio. Nesse meio tempo, observava que alguns amigos homens, como o havaiano Albee Layer, ganhavam para serem freesurfers – ou seja, não precisavam vestir a lycra de competição, recebendo grana apenas para surfar belas ondas e protagonizar vídeos e fotos para campanhas de grandes marcas. “Eu queria fazer isso também”, conta a surfista. Quando tinha 20 anos, ela desencanou do WQS, circuito no qual competia com dinheiro do próprio bolso.
Era questão de tempo para que Paige se envolvesse com o big surf, em uma época em que a havaiana Keala Kennelly era uma das poucas mulheres na modalidade. Paige já encarava mares grandes desde os 15 anos, quando começou a surfar nos outer reefs de Maui, estimulada pelo seu então mentor, shaper e patrocinador Chris Vandervoort. “Acho que meu destino era naturalmente esse. Sou um pouco alta [ela tem 1,77 metro], e a transição das ondas pequenas para as maiores foi uma progressão natural, porque no oceano sempre me senti confiante e calma”, reflete. Para se manter onde queria, ela precisou ralar e enfrentar os obstáculos inerentes de ser mulher em um meio dominado por atletas homens. Em paralelo ao surf, fazia bicos em construção civil, restaurantes e consertando pranchas.
Em 2006, Paige tinha 18 anos quando encarou um swell grande em Jaws. Escolheu bombas intermediárias e saiu do mar com a sensação de que tinha sido até fácil. Já no inverno de 2011, enfim encontrou seu nicho no big surf ao desbravar, pela primeira vez, Jaws na remada (em vez de contar com a ajuda de um jet ski), prática da qual os pioneiros foram os baianos Danilo Couto, Marcio Freire e Yuri Soledade. Yuri, aliás, é um dos donos do restaurante no qual ela trabalha duas vezes por semana.
Na metade de 2013, a canadense deparou com outro desafio: sofreu a primeira lesão séria de sua carreira, aos 25 anos. Em um mar pesado no México, uma onda fechou em cima dela. No impacto, seu ombro esquerdo foi deslocado severamente. A consequência? Cinco meses de molho, afastada do mar. “Foi uma experiência transformadora, que realmente abriu meus olhos”, conta. “Antes eu já ia para a academia, mas o acidente me fez prestar mais atenção aos treinos fora do surf, para que eu não me machucasse de novo.” Em janeiro de 2014, ela estava de volta ao lineup de Jaws, em outra ondulação gigante.
QUANDO SOUBE DA SAGA da surfista, no final de 2013, a californiana Devyn Bisson enviou na hora uma mensagem para Paige. Hoje com 23 anos, Devyn terminava então a graduação em cinema. Seu desejo era produzir um documentário que envolvesse surf, esporte com o qual está imersa desde a infância na popular praia de Huntington. A ideia inicial era fazer um curta-metragem de dez minutos, porém o projeto ganhou corpo e transformou-se em um documentário de uma hora.
Tão logo desembarcou no Havaí e conheceu Paige, Devyn sentiu entre as duas uma conexão muito forte, uma atmosfera de gratidão e empatia. “Meu Deus, ela é real, o que imaginei era de fato verdade, essa é a história que quero contar”, pensou. “Minha natureza é procurar uma mensagem mais profunda em cada um, e acho que consegui isso desde o início.”
Na hora de buscar financiamento para a produção de The Wave I Ride, Devyn ficou constrangida com a postura machista da indústria do surf. Nas reuniões, precisava engolir o choro enquanto davam risada de sua cara. “Diziam-me que já tinham uma atleta na equipe, enquanto, por outro lado, eles patrocinavam uns 30 homens.” Com isso, percebeu o quão difícil era o caminho que Paige enfrentava dentro do esporte. Ela considera que o aprendizado que extraiu da relação com a canadense foi fundamental para superar os contratempos e levar o projeto até o final.
“Antes, eu não confiava tanto em mim, não reconhecia minha própria força”, revela Devyn. “E aí Paige me passava a seguinte mensagem, verbalmente ou não: siga em frente, não deixe que os outros te desanimem, você consegue. Ela incentivou a coragem que descansava em mim, despercebida.”
A mensagem que fica em The Wave I Ride é justamente a de que é possível construir sua própria estrada – no exemplo forte de uma surfista que enfrenta a postura da indústria do surf e que segue na linha de frente na luta para criar novas fórmulas para viver do esporte, sem depender do sistema tradicional. “O que me empolga é que o filme mostra uma grande história não apenas para surfistas, nem só para mulheres”, observa Devyn. “Ele questiona como você viverá sua vida. Vai desistir porque ninguém te mostra o caminho? Ou vai seguir na luta, traçando o próprio destino?”
Paciência. Essa foi a maior lição que Paige Alms aprendeu, seja no outside encarando ondas gigantes, durante a recuperação da lesão no ombro, ou no suor dos trabalhos em paralelo ao esporte. A vida toda ela teve que batalhar por seu sustento, e isso se reflete na determinação com que enfrenta cada desafio. “O mesmo foco que tenho para ganhar dinheiro eu coloco na minha carreira no surf, que levo muito a sério e ainda espero que se torne meu trabalho em tempo integral. Vou fazer de tudo para alcançar esse objetivo”, resume Paige.
Para isso, ela sabe que precisará escrever um novo capítulo no big surf, modalidade onde atualmente não circula tanto dinheiro, mas cujo potencial para atrair público fora do surf, na visão dela, é maior do que o das competições de pranchinha. “O próximo grande passo”, acredita Paige, “é termos patrocinadores que de fato nos apoiem. Precisamos de suporte financeiro para mostrar para o mundo o que estamos fazendo”.
ASSISTINDO AO CAMPEONATO EM JAWS, válido pelo Circuito Mundial de Ondas Grandes (BWWT, na sigla em inglês), Paige sentiu vontade de estar no lineup, competindo contra mais cinco garotas. “Não vejo por que não podemos ter pelo menos uma bateria feminina em cada campeonato desses”, questiona. A primeira e única vez que uma “Superheat” dessas aconteceu foi em março de 2014, no Oregon, na costa oeste dos Estados Unidos. Paige e Keala estavam lá, com roupas de borracha, balaclavas, luvas e botas, para se isolarem da água gelada – nada parecido com o que enfrentam no quintal de casa, no Havaí.
“Sabíamos que não haveria premiação em dinheiro, mas não era para isso que fomos lá”, explica Paige. “Precisávamos aparecer e participar, se quiséssemos manter a evolução do nosso esporte e permitir que outras garotas, no futuro, também possam fazer isso.” Naquela bela manhã ensolarada, as ondas atingiam seu ápice enquanto as oito big riders alinhavam-se no outside de Nelscott Reef. “Todas pegaram altas ondas. Foi um momento monumental para o surf feminino.”
Atualmente Paige ainda se recupera da cirurgia que fez no ombro, em setembro passado. Dois meses depois da operação, já surfava de novo nos fundos de coral de Ho’okipa, em frente a onde vive com o marido e shaper Sean Ordonez. Porém ainda trabalha duro para recuperar a parte física e voltar a surfar as ondas gigantes que quebram a cinco minutos de sua casa, em Jaws. Ela aguarda esse momento com ansiedade, na esperança de aproveitar as ondulações enormes que o forte fenômeno El Niño promete.
Sua preocupação maior, no entanto, continua sendo preparar o terreno para as futuras big riders. Por isso ela reconhece a responsabilidade que tem em lhes assegurar uma estrutura digna do risco que enfrentam ao desbravar mares revoltos. “Mal posso esperar para um dia ter filhos e contar: ‘Nós que começamos a mudar isso’. Muitas garotas estão nessa luta há um bom tempo, mas nas últimas sessões gigantes sinto que mostramos de vez que merecemos nosso espaço.” É só olhar Paige no mar para sacar que, sim, ela tem toda a razão.