Um dos picos mais icônicos do Brasil, Regência agora tem suas ondas protegidas por lei

Por Alexandre Versiani*

regência surf
Ondas perfeitas de Regência atraem surfistas do Brasil inteiro. Foto: Karen Bof.

Um dos picos de surf mais clássicos do Brasil, Regência renasce após o desastre de Mariana, tornando-se Reserva Nacional do Surf e com suas ondas protegidas por lei.

No litoral do Espírito Santo, as ondas lendárias da Vila de Regência sempre habitaram o imaginário de surfistas do mundo inteiro. Situada na foz do Rio Doce, a força dessa onda é o resultado da interação entre as águas do rio e do mar, com longas e poderosas esquerdas rompendo sobre uma extensa bancada de areia. Além de revelar talentos do esporte, o surf ajudou a moldar a identidade deste pequeno vilarejo capixaba, influenciando o estilo de vida e tornando-se uma significativa fonte de renda para a comunidade local.

No entanto, há exatos nove anos, a maior tragédia socioambiental já ocorrida no Brasil impactou profundamente os moradores de toda essa região localizada na Reserva Biológica de Comboios, onde fica a Foz do Rio Doce. O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), despejou mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos no Rio Doce, que percorreram 600 quilômetros até alcançar o mar de Regência.

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Além dos danos ambientais irreversíveis ao longo do rio, a água barrenta se alastrou pelo mar, provocando a morte de milhares de peixes e causando a proibição da pesca, importante atividade econômica da região. O surf, parte vital da cultura de Regência, também acabou asfixiado pela lama. Afinal, quem se arriscaria a surfar em um pico contaminado por metais pesados? Para piorar, devido aos sedimentos que se acomodaram no fundo do rio, a famosa onda da Foz do Rio Doce parou de funcionar, aumentando o sentimento de luto e desânimo.

A clássica onda da Boca do Rio quebrando solitária. Foto: Karen Bof.

Em 2018, ainda fortemente impactados pela tragédia, líderes comunitários de Regência foram convidados a participar do 1º Fórum Brasileiro dos Direitos da Natureza, em São Paulo, uma iniciativa liderada pela ONG Mapas no país. Ali foi plantada a primeira semente que resultaria em uma grande conquista para a comunidade local no último mês de agosto. Com a aprovação da Câmara Municipal, a Foz do Rio Doce de Regência foi incluída na modalidade de lei que tem como base os Direitos da Natureza da ONU, tornando-se oficialmente a primeira onda do mundo a ter sua natureza reconhecida como sujeito de direitos.

“As ondas de Regência não representam só água em movimento e força física, têm a ver com uma grande entidade, que é o Rio Doce”, afirma o teólogo e surfista local Hauley Valim, que faz parte do coletivo Regenera Rio Doce, um dos principais responsáveis por levar a iniciativa ao Espírito Santo. Atualmente há projetos similares no Brasil, como os municípios pernambucanos de Bonito e Paudalho, os primeiros a reconhecerem os Direitos da Natureza, em 2017 e 2018, respectivamente. A cidade de Florianópolis, em Santa Catarina, fez o mesmo em 2019. E mais recentemente, em 2023, representantes da Chapada Diamantina, na Bahia, também entraram com processo para ter uma legislação que reconheça os direitos do local.

Os Direitos da Natureza são uma modalidade jurídica idealizada pela ONU que propõe o reconhecimento legal de que a natureza possui direitos intrínsecos. Esse conceito desafia a visão tradicional de que a natureza é meramente um recurso a ser explorado e, em vez disso, reconhece a Terra e seus ecossistemas como entidades com direitos próprios. Essa abordagem surgiu como resposta às crescentes preocupações ambientais globais e foi influenciada por filosofias indígenas que veem a natureza como uma entidade viva e sagrada.

A ideia ganhou força nas últimas décadas, especialmente em países que enfrentam grandes desafios ambientais. Em 2008, o Equador se tornou o primeiro país do mundo a incluir os Direitos da Natureza em sua Constituição. Segundo essa lei, a natureza, ou “Pachamama”, tem o direito de existir, manter e regenerar seus ciclos vitais, independentemente de sua utilidade para os seres humanos. Desde então, outros lugares adotaram abordagens semelhantes, e o conceito começou a ser reconhecido internacionalmente. Com a aprovação da Câmara Municipal de Linhares, onde fica a Vila de Regência, as ondas da Foz do Rio Doce de Regência agora também tiveram os seus direitos legitimados, o que garante representação judicial e a criação de um Comitê formado pela sociedade civil para atuar em colaboração com o Poder Público.

“A lei que reconhece o direito da onda de Regência continuar quebrando, perfeita, tem muito a ver com os danos que nós sofremos com o rompimento da barragem. Isso provocou não só uma transformação profunda nas sociedades humanas locais, mas em toda a ecologia do Rio Doce”, relembra Hauley. “Aquela onda clássica a boca do rio, a gente ficou sem ver por praticamente sete anos depois do rompimento da barragem. Isso ampliou a preocupação, já que ela tem essa importância para o nosso sistema cultural. E para essa onda existir, os fatores que são responsáveis pela qualidade dela precisam ser conservados, protegidos”, complementa o surfista.

Em um enredo de resiliência, quase como se a natureza estivesse reafirmando sua força, durante o processo de elaboração da Lei dos Direitos da Natureza em Regência, os tubos da boca do rio voltaram a funcionar a todo vapor no pico capixaba. Em meio à pandemia, a clássica esquerda quebrou novamente para alegria dos surfistas locais. A notícia logo se espalhou, com surfistas do Brasil inteiro voltando a desembarcar no litoral do Espírito Santo e impulsionando o turismo do vilarejo.

Com a onda protegida por uma lei municipal, Hauley prefere ainda não pensar em punições para quem desrespeitá-la. O surfista acredita que a sociedade civil vai se mobilizar ainda mais para garantir que o ecossistema da região seja preservado, com o apoio de políticas públicas que incentivem tal atitude. “Tem mais a ver com diálogo, com a participação coletiva e com maiores investimentos nos cuidados com a natureza”, diz.

“Em um enredo de resiliência, quase como se a natureza estivesse reafirmando sua força, durante o processo de elaboração da Lei dos Direitos da Natureza em Regência, os tubos da boca do rio voltaram a funcionar a todo vapor no pico capixaba. Em meio à pandemia, a clássica esquerda quebrou novamente para alegria dos surfistas locais. A notícia logo se espalhou, com surfistas do Brasil inteiro voltando a desembarcar no litoral do Espírito Santo e impulsionando o turismo do vilarejo.”

“Com a criação deste Comitê Deliberativo, que fará um monitoramento sobre a saúde e o estado das ondas, a gente vai poder demandar ações efetivas como investimentos na recomposição das matas ciliares na beira do rio, espaços de participação e de discussão sobre o controle das águas nas barragens hidrelétricas”, continua o surfista. “Se a gente tivesse uma lei que reconhecesse o direito da onda antes do rompimento da barragem, teríamos um mecanismo legal de garantir, por exemplo, ações efetivas do Poder Público para restaurar o dano que as mineradoras provocaram”, afirma Valim.

Reservas Nacionais de Surf

Praia do Francês, em Alagoas, se torna uma das primeiras Reservas Nacionais de Surf. Foto: Thiago Lion.

Ainda no mês de agosto, outro passo importante para a preservação de Regência — e de outros três picos clássicos do surf brasileiro — foi dado, com a implementação das primeiras Reservas Nacionais de Surf. A iniciativa é do Instituto Aprender Ecologia, que atua em todo o litoral do país, e teve como inspiração o programa National Surfing Reserves, da Austrália.

Além do pico capixaba, também foram reconhecidas as praias do Francês, em Marechal Deodoro (AL), Itamambuca, em Ubatuba (SP), e Moçambique, em Florianópolis (SC), como as primeiras Reservas Nacionais. As candidatas foram avaliadas em quatro critérios: qualidade, consistência e relevância das ondas; características socioambientais; cultura, história e desenvolvimento do surf no local, além de engajamento comunitário, capacidade de governança e sustentabilidade.

Diferente da Lei dos Direitos da Natureza em Regência, o reconhecimento dessas praias não envolve atos governamentais. “O que buscamos é dar uma voz a mais às comunidades na proteção de picos icônicos e incrementar o turismo de surf nesses locais”, salienta Fabricio Almeida, presidente do Aprender Ecologia.

A ideia surgiu por incentivo do criador do conceito de Reservas Mundiais de Surf, o professor australiano Andrew Short. Em visita a Florianópolis em 2015 e 2018, ele incentivou o co-fundador do Instituto Aprender Ecologia, Mauro Figueiredo, a criar um programa semelhante ao programa australiano no Brasil, devido à nossa extensa zona costeira e ao grande número de picos. Entre 2019 e 2021 foram realizados workshops nas regiões Sudeste, Nordeste e Sul sobre a possibilidade de Reservas até que, em 2023, durante a etapa de Saquarema do Mundial da WSL, foi lançado oficialmente o Programa Brasileiro de Reservas de Surf (PBRS).

“As gestões das Reservas serão coordenadas por um comitê local, auto-organizado e representativo de diferentes setores do surf, que serão responsáveis pelo planejamento e gestão a longo prazo”, reforça Almeida. “A base da gestão é ecossistêmica, uma abordagem integrada aliando conhecimento científico e tradicional para encontrar o equilíbrio entre a conservação e o uso sustentável”, complementa.

Recém-coroada Reserva Nacional de Surf e com a sua principal onda protegida por lei, a comunidade de Regência volta a respirar aliviada depois de quase uma década asfixiada pela lama tóxica. “Esse título (de Reserva Nacional do Surf) chega para fortalecer ainda mais a nossa luta pela preservação. É outra grande conquista”, conclui Hauley Valim.

Conheça as novas Reservas Nacionais de Surf

A preservada Praia do Moçambique, em Floripa. Foto: Cadu Fernandes.
Regência, Espírito Santo

Com ondas longas e tubulares, a praia possui uma singular sociobiodiversidade em um dos mais importantes cursos d’água da costa brasileira, o Rio Doce, que deságua no norte do Espírito Santo, no Município de Linhares. A área delimitada para a Reserva Nacional de Surf contém vários picos que quebram constantemente ao longo do ano. A aprovação da Lei dos Direitos da Natureza na onda clássica da Foz do Rio Doce foi um marco no reconhecimento da natureza como sujeito de direitos não só no Espírito Santo, mas no Brasil, chancelando a capacidade de engajamento da comunidade local.

Praia do Francês, Alagoas

Localizada na costa sul de Alagoas, a Praia do Francês se destaca pelas ondas cristalinas e tubulares, mas também pela riqueza do ecossistema ao redor, que inclui uma vila de pescadores, coqueirais, barreira de corais, restinga e um brejo natural. Recebe campeonatos de surf desde a década de 80, incluindo de modalidades como stand up paddle e bodyboard, o que destaca a versatilidade das ondas do local.

Visual da Praia de Itamambuca, em Ubatuba. Foto: @gugajacobfineart.
Itamambuca, São Paulo

Inserida em uma região de alta biodiversidade, abrangendo ecossistemas variados do bioma Mata Atlântica, as condições de Itamambuca são muito especiais, principalmente devido à preservação de elementos naturais como o Rio Itamambuca, bancos de areia e dunas frontais. O forte engajamento da comunidade local, composta também por caiçaras, quilombolas e indígenas, contribui muito para manter os elementos naturais da localidade. A história do surf no local remonta à década de 50, quando a praia começou a ser desbravada por aventureiros.

Moçambique, Santa Catarina

Maior praia de Florianópolis, com 12,5 km, o Moçambique conecta dois importantes picos para a história do surf: o Canto das Aranhas e a Barra da Lagoa. As ondas são consistentes ao longo do ano e proporcionam condições para todos os níveis e modalidades. A praia é contígua ao Parque Estadual do Rio Vermelho, uma Unidade de Conservação de proteção integral e recebe as águas da notória Lagoa da Conceição em sua porção sul, na Barra da Lagoa, formando um incrível ecossistema.

*Matéria originalmente publicada na Go Outside 183