Dos três dias de chuva que molharam as terras do Vale do Pati, na Chapada Diamantina, antes da nossa chegada, só restavam os filetes de água escorrendo pelos paredões de pedra, reluzindo no pôr-do-sol. O brilho lembrava ouro, que lembrava riqueza, que lembrava o garimpo que moldou estas terras e este povo tanto quanto o vento e a água desenharam os incríveis paredões de pedra que se descortinavam à nossa frente.

Estávamos em cima do morro do Pai Inácio, cartão-postal da Chapada. No dia seguinte começaríamos nossa caminhada pelo vale do Pati, no percurso de cerca de 77 km que tem a fama de ser o trekking mais bonito do Brasil. Eu não tinha dúvidas quanto à beleza da trilha – havia visto fotos e tinha uma vaga lembrança, desfocada pelo sono e fadiga, da minha passagem por ali durante o Ecomotion Pro, corrida de aventura realizada nestas chapadas em 2003. Minha grande expectativa era quanto ao povo patizeiro que eu conheceria nos próximos cinco dias, dormindo em suas casas, comendo de sua comida e conhecendo sua história, que agora molda novos rumos.

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O vale do Paty, protegido do tempo e da civilização pelas imensas formações de pedra que o cercam, fica no meio do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Já foi todo coberto de mata, mas as plantações de café foram engolindo a vegetação nativa até cobrirem todo o vale, que chegou a abrigar 2.000 pessoas por volta das décadas de 40 e 50. Quando o governo resolveu erradicar o café, no fim da década de 50, na tentativa de segurar os preços do produto, os moradores aos poucos fora deixando o vale. Restam hoje, nos mais de 50 mil quilômetros quadrados do vale do Paty, cerca de 50 pessoas que moram em 15 casas de pau a pique, do mesmo jeito que moravam seus avós. Chão de barro, fogão a lenha, sem luz elétrica e a mais de três horas de caminhada da cidade mais próxima – um percurso que eles agora fazem semanalmente, com facão na cintura e bota sete léguas de borracha nos pés sem meia, para se abastecer para as “visitas”, turistas que, como eu, fazem trekking e pernoitam em suas casas.

O ecoturismo começou na Chapada por volta de 1990, mas só agora pode-se dizer que ele esteja realmente estruturado. O trekking do Pati, por exemplo, sempre foi um roteiros mais famosos do local, mas para fazê-lo era preciso acampar e carregar os mantimentos da semana – o que “peneirava” os visitantes e não trazia sustento para os locais. Com esse esquema de dormir nas casas, o trekking ficou mais confortável para quem faz e passou a ajudar uma comunidade ímpar e especial a sobreviver. Com um efeito colateral dos mais desejados: a natureza intocada se transformou no ganha-pão e no bem mais precioso dos moradores. “O pessoal está entendendo muito. Num extrai mais palmito… dá mais trabalho que o turismo, né?”, diz seu Wilson, morador do vale desde que nasceu e um dos nativos que recebem os trekkeiros. “Para os moradores do Pati, o turismo é economia e educação”, concorda Vanderlan Barros de Oliveira, o Van, nosso guia no trekking. “Traz dinheiro, informação e consciência ecológica, porque inclui a comunidade”, completa. Quatro décadas depois da erradicação do café e 21 anos depois de ter sido declarado parte do então criado Parque Nacional, a mata está de volta ao Pati, desta vez para ficar.

 

DO LADO DE FORA DAS FORMAÇÕES QUE ABRAÇAM O VALE DO PATI, ficam os seis municípios que fazem parte do parque: Lençóis, Capão, Mucugê, Andaraí, Guiné, Igatu. A “borda” leste foi onde houve a mineração – em 1844 Cazuzinha do Prado achava o primeiro diamante; em 1875, no auge do garimpo, havia naqueles penhascos 35 mil homens lavando 50 km de encostas em busca de um brilho diferente entre as pedras. Em 1900, quando descobriram diamantes na África do Sul, o garimpo na Chapada diminuiu, mas não acabou. Em 1980 chegaram as dragas, máquinas barulhentas e destruidoras que sugaram e detonaram os leitos de rios como o Paraguaçu até o garimpo ser proibido, em 1994. “O exército chegou armado até os dentes e fechou todos os garimpos. Havia mais de 400 dragas cavando tudo”, lembra Van, que também já achou diamante. “Todo mundo aqui achou. Eu garimpava com meu avô. Colocava um punhado de terra na batéia, rodava ela e as pedras mais leves caíam, deixando os diamantes no fundo”. Hoje não existem mais dragas nem garimpos “oficiais”, mas muita gente ainda se sustenta com um ou outro diamante ou carbonato que achem.

Saímos de Lençóis numa Toyota 4 x 4 rumo ao Capão, onde começam as trilhas para a cachoeira da Fumaça e para o PatI. No caminho, passamos – eu, Van, o fotógrafo Daumer e o advogado em férias Jum, que juntou-se ao grupo na última hora – por Palmeiras, uma cidade com altos índices de desemprego e alcoolismo. Van nasceu lá. Quando paramos o jipe para ele cumprimentar um amigo, um menino se aproxima e pede comida. Dou minha barra de carboidrato achando que não era lá grande oferta, mas ele a devora sem tirar os olhos dos meus. “Palmeiras e Andaraí ainda não conseguiram se encaixar na ‘nova economia’ do turismo”, conta Van. “Alguns trabalham na prefeitura, outros são aposentados, mas a pobreza é muito grande”.

Começamos a trilha somente com a mochila de ataque com casaco impermeável, comida para o dia, lanterna de cabeça e protetor solar. Nossas mochilas com as roupas para a semana seguiram com os carregadores que a cada dia transportariam nossas coisas até a nossa próxima parada. Pelas nove horas que levariam para ir, deixar nossas malas e voltar para casa, nossos “sherpas” receberiam R$40 – quatro vezes mais do que ganhariam trabalhando nas plantações de hortaliças ou batata em Mucugê.

Nesse dia passamos pelos gerais (como eles chama as planícies de altitude dentro do vale) dos Vieira e subimos mais um pouco para as gerais do rio Preto. Depois despencamos pela “Rampa” – nome perfeito para aquela descida praticamente vertical – até a trilha para a casa de Seu Wilson. No caminho já paramos na cachoeira do Funil, que no roteiro “original” do trekking seria feita só no dia seguinte. Queríamos aproveitar o nosso ritmo bom de caminhada para fazer um rolê “bônus”: conhecer o Cachoeirão por cima.

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As casas no vale

OS PRIMEIROS MORADORES DO PATI chegaram ali em 1899, entrando pelos gerais dos Vieiras e desmatando de lá para o meio do vale para plantar café. A produção era escoada no lombo de mulas pelas trilhas que hoje fazem parte do trekking, ligando o vale às cidades “de fora”. Quando o café entrou em crise, algumas famílias insistiram na roça de outros produtos, como a banana e a laranja, mas a maioria foi deixando o vale em busca de garimpo, emprego em alguma prefeitura ou fazenda ou, os mais aventureiros, de riqueza em “Sum Paulo” – como fez seu Wilson. “A gente entrava de bando no ônibus, com sacos de farofa na mala”, lembra ele, sentado num canto da sala, com a esposa, Dona Maria, a seu lado, a luz do lampião refletindo nas panelas penduradas no teto da cozinha.

Seu Wilson ficou na capital 16 anos, trabalhando em construção, antes de voltar pra roça, se casar com Dona Maria e ter dois filhos: Nara e Wilton. Plantou banana e um pouco de café, que a cada dia 15 dias carregava em seus três burros para ir vender em Andaraí, a quatro horas de caminhada. Quando foi criado o Parque, em 1985, a agricultura foi proibida. Plantar, só para subsistência. Felizmente, os turistas estavam começando a chegar.

Os primeiros hóspedes de seu Wilson vieram em 1997 – mochileiros que antes faziam camping selvagem e que agora davam uns trocados em troca de comida e uma cama. Agora Wilson vai toda semana a Andaraí e Guiné e volta com dois burros e 120 quilos de mantimentos. Continua plantando “alguma coisinha”, só pra não deixar a roça abandonada. Leva a pequena produção para a cidade, aproveitando as bruacas vazias. Cada dúzia de banana lhe paga um real. Cada turista que janta, pernoita e toma café da manhã em sua casa lhe rende R$30. Na casa do Seu Wilson você toma uma breja gelada por R$3,50.

Algumas das 20 quedas de 280 metros que vimos no Cachoeirão

A CHAPADA É A CAIXA D’ÁGUA DA BAHIA. Suas altas formações seguram toda a chuva que vem do litoral, não deixando que ela chegue ao árido sertão baiano. Quando chove, as cachoeiras diamantinas se transformam rapidamente – e no segundo dia de trekking tivemos a sorte de presenciar isso. Chovera à noite e quando chegamos ao topo da cachoeira do Cachoeirão, depois de duas horas e meia de caminhada, fomos surpreendidos por mais de 20 quedas d’água despencando 280 metros na ravina em forma de ferradura. Fazia sol, e ele se refletia nas gotas de água suspensas no ar, riscando arcos-íris e animando centenas de borboletas amarelas a arriscarem um voo matinal. Era um misto de cenário de King Kong com computação gráfica, só que num pico em que a natureza, as pessoas e o silêncio são ancestrais.

Voltamos para a casa de seu Wilson, onde nosso próximo sherpa, Gilmar, nos esperava. Ele levaria nossas malas, sacos de dormir e isolantes para a gruta do Morro do Castelo, onde passaríamos a noite. Gilmar recebe um salário fixo para carregar as malas e equipamentos de todos os turistas que contratam os serviços da Venturas & Aventuras, agência que nos levou para aquele trekking.

Subimos sem fôlego por uma hora até a boca da gruta, aberta no paredão de pedra a 1.200 metros de altura. A gruta cruza a montanha e se abre para o outro lado do vale em mais um cenário de computação gráfica. Nosso visual naquele noite parecia reconstituir tempos imemoriais: a lua e as estrelas milimetricamente posicionadas, o fogueira crepitando, e o vale perdido aos poucos sumindo junto com a última luz do dia.

No próximo dia desceríamos para mais uma refeição de Dona Maria, uma soneca para escapar do sol do meio-dia e quatro horas de caminhada até a casa de seu Massú, 84 anos, outra figura histórica do Pati. Mas seu Massu não estava em casa – e nem pretendia voltar, para desgosto do filho Nivaldo, o Jóia, e da nora Edileusa, que vivem na mesma casa. Desde que ficou viúvo, no fim do ano passado, seu Massú foi pra Andaraí e não quer saber de voltar. “Encontrei com ele semana passada e ele me disse que se ficasse no vale, olhando essas montanhas, ia morrer de tristeza”, Van disse a Jóia e Edileusa.

Seu Massu é figura histórica no Pati, e foi o assunto do jantar. “Ele não acredita na explicação científica para a formação dos diamantes. Para ele, eles foram colocados na montanha por Deus”, diz Van. “E quando a gente tenta explicar que os diamantes são criados durante bilhões e bilhões de anos de pressões geológicas, ele tira sarro: ‘Quer dizer que se eu pegar esta carbonita e guardar um tempão, ela vai virar diamente?’”.

Os quatro filhos de Jóia e Edileusa vão para a escola que fica do outro lado do rio. Para atravessá-lo, os quatro saltam de pedra em pedra. “Os patizeiros não sabem nadar, sabem andar em rio com correnteza”, diz Van, antes de saltar feito rã para a pedra mais próxima. Nós, urbanóides, amarelamos e tivemos que usar uma corda para conseguir chegar ao outro lado. E esse era só o começo: nas próximas três horas atravessaríamos mais uma dúzia de rios, riachos e corredeiras, e caminharíamos por pedras e trilhas escorregadias até nos vermos no fundo e centro de uma arena de cachoeiras gigantescas. A natureza da Chapada nos mostrava mais uma vez sua força em estado bruto.

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A POUCOS QUILÔMETROS DALI, mora Seu Eduardo, o guia mais antigo do vale e primeiro morador a receber turistas. Na sala da casa que divide com Maria de Lurdes, a Doca Lica, esposa há 48 anos, estão dois violões, um pandeiro, um triângulo. “A sanfona está consertando”, lamenta, e nos oferece um copo com vinho de jaboticaba e outro com seu “remedinho” – uma cachaça com sete ervas diferentes do Pati –, ambos feitos ali naquela cozinha.

Magro e alto, os olhos azuis embotados pelo que parece ser um princípio de catarata, seu Eduardo não aparenta os seus 78 anos de idade e adora um arrasta-pé. “Quero morrer dançando forró nos braços de uma nega”, diz, para contrariedade de Dona Lica, que resmunga ao ouvir isso. Os dois tiveram 11 filhos, mas “só oito se criaram”, ela conta. Aceitamos de bom grado o vinho e a cachaça. O dia havia sido tenso.

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Poço Azul

Estávamos chegando ao fim do trekking. Dormiríamos aquela noite em Dona Linda, e na manhã seguinte sairíamos antes do amanhecer, subindo o paredão que separa o vale da cidade de Andaraí – a volta à civilização. Depois iríamos de carro até o Poço Encantado e o Poço Azul, dormiríamos numa pousada em Igatu e então seguiríamos para o aeroporto de Lençóis, finalizando a jornada.

Naquele fim de tarde sentamos numa ponte antiga, sobre um rio de águas de Coca-Cola. O sol que se punha dourava os chapadões à nossa esquerda e tudo parecia uma foto – parado, imortalizado, suspenso. Muito já aconteceu, mas nada mudou no vale do Pati. Só mudou quem passou por ele e viu, de relance, um pedaço da vida que já foi o Brasil.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2006)