Pisando em nuvens: um roteiro completo do Trekking de Las Nubes

Por Caio Vilela**

Dois condores sobrevoam em círculos um grupo de pessoas caminhando, pouco abaixo dos 4.000 metros de altitude. Próximo às fronteiras argentinas com o Chile e a Bolívia, a paisagem seca da Quebrada del Toro contrasta com o verde exuberante das yungas, o relevo florestado intermediário entre os Andes e a planície de Tucumán, no horizonte. “Incrível observar como a paisagem andina é diferente em cada fatia de latitude”, comenta Douglas Simões, meu viajado parceiro de trilha, lendo meus pensamentos. Nossa primeira constatação provoca uma incômoda sensação de ignorância. Estou aqui caminhando em uma das rotas de trekking mais cênicas da província de Salta, porém sinto estar conhecendo apenas a ponta de um iceberg, tamanha a variedade de ecossistemas e dinâmicas geológicas sob nossos pés. Com tantos destinos na Argentina, a região norte não faz parte da lista de prioridades da maioria dos brasileiros que visita o país.

Não é por falta de atrativos: juntas, as províncias de Salta e Jujuy reúnem uma variedade enorme de belezas naturais, perfeitas para serem exploradas a pé, de bike, a cavalo ou a bordo de um veículo próprio, como faz a maioria dos brasileiros que aparece por lá. Não foi por acaso que a região sediou a última edição do Adventure Travel World Summit (ATWS), em outubro passado. O encontro de operadores de viagens do mundo todo revelou o potencial da região para a indústria do turismo de aventura, e agora Salta e Jujuy se preparam para receber um crescente fluxo de visitantes.

Em ambas as províncias, formações rochosas coloridas, cactos gigantes, picos nevados, cachoeiras de água potável e desertos de sal compõem um patrimônio natural protegido pela Unesco desde 2001. Tal poesia geográfica está aqui do lado, na mesma linha de latitude da cidade de São Paulo. Divide o mesmo clima tropical, com temperaturas agradáveis o ano todo. Está acessível em uma aventura rodoviária de três dias ou em dois voos, com uma troca de aeronave em Buenos Aires. Mesmo assim, todo esse potencial ainda não foi descoberto pelos brasileiros por completo.

Entusiasmado em explorar a inédita rota de trekking, eu fotografo e caminho atento para não perder nenhum detalhe, porém já planejando retornar em breve

A geologia colorida e árida da província de Salta se apresenta logo no primeiro dia, durante a grande subida rumo ao Sillón del Inca

Dia #1: De Salta a Sillón del Inca

Salta recebe seus visitantes com um centro histórico pacato, povo hospitaleiro e deliciosas empanadas (as famosas saltenhas!). A capital da província de mesmo nome cativa por completo em uma visita de dois dias, com destaque para o museu – surpreendentemente bem montado – dedicado à alta montanha e exploração andina. Após um café com os outros nove integrantes do grupo, viajamos pouco mais de uma hora por uma rodovia rumo ao noroeste até chegar a Ingeniero Maury, um povoado que leva o nome do norte-americano Richard Fontaine Maury, engenheiro responsável por implantar o ousado ramo ferroviário C-14 e o famoso “Trem das Nuvens”. Em sua obra – hoje transformada em um trem turístico –, a locomotiva percorre passarelas elevadas e atravessa 31 pontes, 21 túneis e 13 viadutos suspensos, ligando Salta ao porto chileno de Antofagasta, no Oceano Pacífico.

Sob a sombra da ferrovia suspensa, abastecemo- nos de água e petiscos antes de começar a seguir nosso trio de guias. Estamos a 2.360 metros do nível do mar, na entrada da Quebrada del Toro. Durante a subida, conversas entre a galera de distintas nacionalidades revelam histórias e afinidades, enquanto avançamos sobre o flanco direito do vale pontuado com cardones (cactos em forma de candelabro gigante).

“Este aqui era um caminho utilizado pelos incas e depois pelos espanhóis”, conta Pancho Siciliano, o guia-líder, apontando a principal via entre os vales férteis da região, onde o antigo calçamento está bem nítido.

Vencemos 900 metros de desnível sobre uma encosta de inclinação moderada até chegar a um ponto com vistas para os picos nevados San Miguel e Acaypor, atrás das colinas no horizonte. Chamado de La Virgen del Caminante, o aglomerado de boulders é um lugar de peregrinação e referência de orientação para os montanhistas locais. Após descansar no icônico mirante, seguimos pela encosta árida, entre subidas e descidas que obedecem uma linha de declive em direção às ruínas do Sillón del Inca. O ar seco agride a garganta. Chegamos ao local de acampamento depois de sete horas de trilha. O primeiro pernoite acontece ao lado das ruínas de um dos povoados incas mais ao sul do antigo império, um sítio arqueológico significativo – embora um tanto desconhecido –, recentemente reconhecido como patrimônio da Unesco.

Mar de nuvens encobre a floresta úmida das yungas, pouco abaixo da crista do Abra de la Cruz

Dia#2: De Sillón del Inca a Abra de la Cruz

O dia amanhece limpo. Recolho lentamente a barraca armada junto a um rancho rural abrigado do vento, enquanto nosso muleiro prepara um mate adocicado em uma cuia pequena.

Colinas cor de areia e adobe preenchem o horizonte no vale esculpido pelo tempo. A incidência da luz matinal sobre as camadas de rocha sedimentar provoca dramática variação nos tons das montanhas em volta. Cactos de mais de cinco metros de altura parecem apontar os dedos para o céu.

Após comer algumas frutas, biscoitos, café, mate e pão, iniciamos a caminhada rumo à porção florestada da trilha. Um guanaco (animal que, como a lhama, é símbolo das regiões andinas) assiste à nossa ascensão a partir de um cume secundário, quando chegamos ao topo da trilha, a 3.260 metros. Depois iniciamos a descida por um vale silencioso chamado Quebrada da Incahuasi. “Vestígios de um importante centro militar, residencial e administrativo do império inca estão abandonados aqui”, conta Dardo, o segundo guia e cozinheiro. Pircas (muros de pedras empilhadas) marcam onde as casas e outras construções estavam de pé. “Na verdade, é uma ruína pré-inca”, corrige Pancho. “Os incas chegaram aqui nos anos 1400; antes deles, as casas eram circulares. Os incas trouxeram os ângulos retos”, diz o guia, acrescentando que “em seu auge, o império inca abrangia do sul da Colômbia até Mendoza, na Argentina”. A chegada dos espanhóis na década de 1530 estancou sua expansão.

Somos os únicos aqui, embora alguns locais tenham construído casas aproveitando as muralhas do sítio arqueológico.

Caminhando sob um sol forte e açoitados nas costas por um vento implacável, observamos a lua nascer por detrás de uma crista escarpada. Um progresso lento caracteriza o fim da subida. A última puxada conduz até uma encosta onde ovelhas e guanacos se abrigam do vento. Depois de cruzar dois córregos, chegamos até o ponto mais alto da caminhada: Abra de la Cruz, a 3.418 metros, marcada por uma desgastada cruz de madeira. Abaixo de nós, uma camada densa de nuvens permite a visão similar à de uma janela de avião. “Em um dia com céu limpo, de aqui se avista todo o Vale de Lerma e, ao longe, a cidade de Salta”, informa Juli, o terceiro guia.

Testemunhar o fenômeno climático está no programa. Previsível e planejada, a parada de descanso com vista para o “tapete de nuvens” formado pela inversão térmica é garantida para todos que chegam ao mirante antes do meio-dia. Depois desse horário, a camada de stratus se dissipa e só se forma novamente no dia seguinte, com a evapotranspiração da floresta úmida logo abaixo. A temperatura cai drasticamente conforme penetramos a névoa cinza e branca. Hora de caminhar sem perder os guias de vista e usar o GPS para manter o grupo no caminho certo. Após seis horas de trekking, montamos acampamento próximo a um rancho de produção agrícola. O jantar acontece na companhia de gaúchos locais, compartilhando experiências e aprendendo sobre seu estilo de vida.

Dia #3: De Abra de la Cruz ao Rancho de Dona Feliciana

Deixamos nosso acampamento pela manhã, caminhando por um vale verde em direção à confluência de dois rios. Um grupo de cavalos semisselvagens vaga livremente no alto das colinas.

A paisagem muda por completo conforme adentramos as yungas. A mata espessa e os riachos de fluxo rápido configuram um mundo distante do visual desértico dos dias anteriores. Árvores frondosas e vegetação arbustiva tomam conta do relevo suave por onde a trilha passa. O sol segue forte, mas agora caminhamos sob corredores sombreados, abençoados com uma refrescante brisa úmida.

Depois de seis horas caminhando, um cachorro nos cumprimenta pouco antes da chegada à casa de Dona Feliciana, uma senhora que vive só e cria galinhas, cães, gatos, vacas e cabras. Em sua casa de adobe, um crânio de mula pendurado na entrada adorna o espaço onde os guias preparam o jantar.

Paisagem que muda por completo no último dia de trilha, na chegada à Quebrada de San Lorenzo

Dia #4: Do Rancho de Dona Feliciana à Quebrada de San Lorenzo

Dona Feliciana cuida do grupo como uma mãe. Seu sorriso é a última imagem que levamos antes de deixar o rancho. Depois de subir uma encosta íngreme, iniciamos a descida por um trecho de floresta fechada. Interrompido apenas pelo canto matinal dos pássaros, o silêncio reforça a sensação de isolamento, porém a crista florestada, cujo contorno acompanhamos, não fica muito distante da cidade de Salta.

Após quatro horas atravessando a mata, cruzamos com os primeiros humanos, provavelmente vindos de San Lorenzo, uma área natural cheia de cachoeiras a dez minutos de carro de Salta.

Poupando as articulações, caminho apoiado em bastões de trekking durante as quatro horas de descida. A caminhada termina com todos chegando junto à reserva natural de Quebrada de San Lorenzo, onde casais posando para selfies e crianças se divertem nas piscinas naturais. Um banho de cachoeira, um prato de saltenhas e uma cerveja escura fecham o dia.

Entre abraços e fotos, deixamos os guia locais prometendo voltar em breve.

*Reportagem publicada na edição nº 148 da revista Go Outside, janeiro e fevereiro de 2018.

**O jornalista Caio Vilela viajou para à Argentina a convite de ATWS 2017







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