Localizada no norte do Chile, Iquique é famosa pelas ondas poderosas e pelas dunas de areia infinitas, que fazem a cabeça de surfistas e sandboarders.
Mas esta cidade encravada no Deserto do Atacama também ficou mundialmente conhecida por outro motivo: os gigantescos lixões clandestinos de roupas usadas, que silenciosamente vêm dominando a paisagem do deserto mais árido do Planeta.
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Iquique abriga um dos portos comerciais mais importantes da América do Sul, uma zona livre de impostos conhecida como Zofri.
De acordo com dados do Observatório da Complexidade Econômica (OEC, na sigla em inglês), o Chile é o maior importador de roupas usadas da América do Sul.
Isso se deve às regulamentações mais flexíveis em comparação a países vizinhos como Peru e Bolívia, que restringem a importação de têxteis de baixa qualidade que têm pouca chance de serem revendidos.
Assim, a cada ano, milhares de roupas acabam descartadas e empilhadas nestes enormes lixões nos arredores da cidade. O “Deserto de Roupas” já é tão grande que pode ser visto até do espaço.
Apesar de o problema dos despejos clandestinos ter se tornado mundial, ele continua afetando diariamente as comunidades que vivem próximas a eles. Perto de Iquique, residentes de Alto Hospício — uma cidade de 108 mil pessoas cercada pela dunas do deserto — vivem bem próximas destes locais.
Desde março de 2022, a advogada ambiental Paulin Silva Heredia e algumas organizações locais vem tentando mudar esse cenário. Nascida em Iquique, Heredia decidiu abrir um processo contra o governo chileno e outras autoridades regionais em busca de uma solução para o problema dos despejos.
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Heredia, cuja família possui uma casa a apenas alguns quilômetros de um dos maiores lixões de Iquique, acusa os funcionários do governo de “inação e negligência” pelas roupas que se acumulam no deserto, algo que, segundo ela, era conhecido pelos residentes de Alto Hospício desde 2012.
“Por suas sistemáticas condutas negligentes, omissivas e de falta de serviço, que geraram um grave e significativo dano ambiental; e pela colocação em risco da vida e da saúde dos habitantes da comuna de Alto Hospício, assim como pela afetação de um território de altíssimo valor ambiental e seu ecossistema”, diz a ação judicial.
A história de Paulin Heredia é um dos destaques da série “Habitat em Ameaça”, produzida pela Hdaniel Studio e que está disponível no serviço de streaming Globoplay. Dividido em três episódios, o programa mostra como o esporte e a natureza podem ajudar a salvar paraísos naturais do Planeta.
Abaixo, Heredia conversa com exclusividade com a reportagem da Go Outside sobre os problemas dos lixões de roupa em Iquique.
Por que esses lixões têxteis vêm se acumulando em Iquique?
O Chile é o maior importador de roupas de segunda mão da América do Sul e, entre 2020 e 2021, foi o importador de roupas usadas que mais cresceu no mundo. O porto de Iquique é uma zona franca estabelecida, o que incentiva essa pujante indústria de têxteis de segunda mão.
Qual é o tamanho atual destes lixões ilegais?
Em primeiro lugar, é importante mencionar que só existem volumes aproximados. O único dado concreto é a entrada de toneladas de roupas de segunda mão. São aproximadamente entre 60 mil e 44 milhões de toneladas que entram anualmente pela zona franca de Iquique, cujos resíduos são depositados ilegalmente em diferentes pontos da comuna de Alto Hospício, território inserido no Deserto do Atacama.
Estima-se que a quantidade de tecidos descartados no meio do Atacama pese entre 11 mil e 59 mil toneladas. No entanto, não há informação oficial sobre quantas toneladas são anualmente depositadas no Deserto do Atacama nos lixões ilegais, nem os hectares afetadas por esses resíduos.
Existe algum ponto mais delicado?
O lixão têxtil mais representativo do fast fashion foi o vertedouro localizado no setor La Mula, na comuna de Alto Hospício, cujas imagens impactantes circularam pelo mundo. Porém, a problemática é muito mais complexa, pois atualmente existem uma série de micro lixões espalhados pelo Deserto do Atacama. Durante o julgamento que iniciei contra o Estado, a secretaria regional de meio ambiente mencionou um cadastro de lixões ilegais. São centenas, mas atualmente já surgiram novos lixões têxteis na área.
Como isso impacta diariamente a população local?
Os efeitos desses problemas não são apenas ambientais, mas também sociais. O primeiro e evidente impacto é visual: quem poderia imaginar um cenário surrealista em que no meio do deserto existam verdadeiras feridas constituídas por milhares de toneladas de resíduos de diferentes espécies, incluindo o resíduo têxtil.
Complexificando esse cenário, o mega lixão de La Mula está localizado a pouca distância de um centro populacional. Cabe mencionar que Alto Hospício é um território que abriga pessoas de extrema vulnerabilidade econômica e social. É uma das comunas mais pobres do Chile.
Alto Hospício também está inserida no deserto do Atacama, com condições de seca extrema. Trata-se de um deserto absoluto, cujas altas temperaturas, combinadas com as fibras não biodegradáveis, predominantemente sintéticas e derivadas do petróleo, com as quais se fabrica a maior parte das roupas descartadas, fazem com que as roupas não se biodegradem, mas se acumulem em grandes quantidades. Expostas a fontes de calor natural ou ação humana, resultam em uma série de grandes incêndios que afetam a população há mais de duas décadas.
Grandes colunas de fumaça negra (plástico) são visíveis de Iquique e a quilômetros de distância, sendo inaladas pelos habitantes a cada queima. Sem considerar outros vetores bacteriológicos que, por falta de estudos adequados, não é possível determinar. Os organismos da administração do estado do Chile carecem de informação e estudos sobre os possíveis impactos ambientais e na saúde das pessoas que a queima dessas roupas e outros resíduos podem gerar.
Alto Hospício também está inserida no deserto do Atacama, com condições de seca extrema. Trata-se de um deserto absoluto, cujas altas temperaturas, combinadas com as fibras não biodegradáveis, predominantemente sintéticas e derivadas do petróleo, com as quais se fabrica a maior parte das roupas descartadas, fazem com que as roupas não se biodegradem, mas se acumulem em grandes quantidades. Expostas a fontes de calor natural ou ação humana, resultam em uma série de grandes incêndios que afetam a população há mais de duas décadas.
O que se sabe é que essas roupas são feitas de microplásticos. Estudos atuais já têm alertado sobre os efeitos na saúde que as esporas de microplásticos podem gerar, não apenas sendo inaladas, mas também absorvidas via cutânea. Para mim, isso é um risco potencial, e essa simples potencialidade é suficiente para que o Estado intervenha em favor da saúde das pessoas e do meio ambiente.
Como começou a sua trajetória como advogada ambiental e ativista?
Comecei a estudar Direito em 2006, na Universidade de Valparaíso, no Chile, o que me fez me mudar de Iquique para Valparaíso. Quando cursei meus estudos superiores, não havia nenhuma disciplina relacionada especificamente com matérias ambientais. Era um cenário muito diferente do atual.
Depois de concluir meus estudos, ingressei como assessora legislativa em um instituto dedicado à análise de diversas matérias. Além disso, e como parte das minhas funções, assumi um cargo legislativo na Comissão de Meio Ambiente da Câmara de Deputados, em 2017. Foi essa experiência que abriu as portas para um mundo novo. Embora eu sempre tenha tido e sentido uma conexão profunda com a natureza, especialmente com os animais e o mar, foi apenas com essa experiência laboral que entendi que, com meus conhecimentos acadêmicos e prática profissional como advogada, existiam contribuições concretas que poderiam ser feitas. Encontrei na litigação ambiental uma voz para o meio ambiente, tanto para as pessoas que tentavam defender seus direitos ambientais quanto para a própria natureza e seu entorno.
Fale um pouco sobre o processo que você está movendo contra o governo chileno
Meu papel como advogada com conhecimento em litigação ambiental não necessariamente me torna uma ativista ambiental. No entanto, tratando-se dos lixões têxteis, minhas próprias convicções ambientais, minha qualidade de habitante da zona afetada e cidadã deste país, junto com minha profissão de advogada e expertise nessas matérias, permitiram-me exercer a demanda para a reparação do dano ambiental, com o objetivo de tentar obter, por parte dos tribunais do meu país, alguma solução para essa problemática. Pois, do meu ponto de vista, implica uma distribuição desigual e injusta de cargas ambientais, uma vez que não existe outro território no nosso país que tenha de suportar, não apenas o lixo e os resíduos têxteis locais, mas também de outras partes do mundo.
Trailer Habitat em Ameaça:
Em que ponto está esse processo?
Atualmente, a causa se encontra em estado de sentença. O tribunal solicitou ao Conselho de Defesa do Estado do Chile a propor medidas de reparação, compensação e mitigação de comum acordo, para chegar a uma solução consensual e tecnicamente respaldada pelo tribunal. No dia 17 de junho nos reuniremos com os advogados do Conselho de Defesa do Estado para saber se essa proposta feita pelo tribunal foi recebida positivamente. Em caso contrário, resta apenas esperar a sentença, para saber o que o tribunal determinará em relação ao dano ambiental e à saúde das pessoas demandadas e as ações de reparação cabíveis. Nessa inspeção, foi até informada a presença potencial de achados fósseis no local com um valor patrimonial incalculável, bem como a existência de microclimas e ecossistemas únicos que fazem parte do deserto impactado por essa moda “rápida e barata”.
Você sofreu alguma represália por esse processo?
Acredito que é complexo, do ponto de vista profissional, assumir esse tipo de ação, que envolve a responsabilidade estatal. O Estado é transversal e demandá-lo implica uma série de consequências, desde incompatibilidades para postular a certos cargos até uma espécie de marginalização do sistema. Do ponto de vista pessoal, essas causas implicam um desgaste não só de recursos econômicos, mas também de energia pessoal. Nesse sentido, a pessoa que me tem apoiado nisso tem sido meu amigo e colega Iván Oyarzun, minha família, minha irmã, meu cunhado e minha mãe, que têm sido um apoio moral e sustento durante todo esse longo processo.
Em relação à comunidade, não acho que isso seja um fato amplamente conhecido, não a existência dos lixões, que são evidentes a todos, mas o que essa cidadã tem tentado fazer. No final, um grande inimigo das mudanças e da conscientização é precisamente o fato de que as pessoas não ficam sabendo dessas situações tão lamentáveis e vergonhosas que ocorrem em territórios extremos do país. A invisibilização e a naturalização desse tipo de situação, a normalização do lixo, dos resíduos têxteis queimados, do plástico, dos resíduos industriais, entre outros, e das pessoas convivendo com tudo isso em um território de valor ambiental incalculável, como é o deserto do Atacama, têm sido os principais cúmplices do estado em manter uma espécie de eterno status quo ou estado das coisas. A comunidade pouco ou nada sabe da existência deste processo, seria interessante que soubessem, mas nisso os meios de comunicação cumprem um papel essencial na divulgação daquelas coisas que realmente interessam às pessoas e incidem na qualidade de vida delas.
Existe alguma solução para este problema dos lixões a céu aberto no Atacama?
Eu acredito que as soluções existem, não estamos descobrindo a pólvora, mas, ao que parece, o que às vezes não existe é a vontade de solucionar essa problemática e assumir a responsabilidade como estado chileno, que permitiu por décadas a entrada desses resíduos sem maior regulação ou exigências. A solução, em todo caso, deve levar em conta a realidade socioambiental do território, e partir do entendimento de que o lixo não existe, é uma construção cultural ou social, pois existem experiências em que todos esses resíduos têxteis não apenas podem ser reutilizados, mas podem derivar em outros produtos, como é o caso dos painéis térmicos isolantes do frio.
Existem muitas alternativas que vão desde efetivamente implementar um local adequado para a disposição final desses resíduos em condições adequadas, garantindo que não representem risco para o meio ambiente ou para as pessoas, até entender que essa situação é o símbolo político de uma realidade muito mais complexa, que está relacionada às formas de consumo impostas e suas consequências, os efeitos da cultura predominante da fast fashion, do consumo de um só uso, do plástico, entre outros. Isso nos mostra que tudo tem, mais cedo ou mais tarde, suas consequências, todas as decisões econômicas que tomamos como estado devem considerar essas consequências. Enquanto que, na Europa ou nos Estados Unidos, as indústrias têxteis cumprem com a normativa ambiental, todo o seu resíduo têxtil vem parar no deserto do Atacama, no Chile.
Portanto, uma opção, embora mais extrema, é, em definitivo, proibir a entrada desse tipo de produto, ou regulá-lo adequadamente. Não pode ser que cheguem fardos com centenas de sapatos ou calçados sem o par, o que é isso? Sem um tratamento adequado, é lixo; com um processo de disposição adequado, pode ser uma matéria-prima, depende da perspectiva que se olhe, mas sempre serão necessários recursos, vontade e responsabilidade estatal e empresarial.
Como um ponto central de qualquer solução, sempre deve estar a educação e conscientização ambiental, como desenvolver ou recuperar nas pessoas o sentido de pertencimento, enraizamento e habitat, em relação aos lugares que habitam, seu entorno natural, e o sentido de pertencimento a um ecossistema natural mais amplo do que podemos perceber, e a conexão harmônica que existe entre os humanos e a natureza.
Aqui no Brasil recentemente tivemos as grandes inundações no Rio Grande do Sul, que evidenciaram ainda mais o problema do lixo nas grandes cidades. Você acompanhou essa tragédia?
Sim, é uma verdadeira tragédia socioambiental o que o Brasil tem vivido. Embora a mudança climática seja um fator determinante na gravidade ou intensidade dos fenômenos climatológicos, igualmente determinante para conter esses processos e seus efeitos são precisamente aquelas medidas de adaptação à mudança climática e de mitigação de seus efeitos. Um elemento fundamental para assumir com responsabilidade e previsão esse fenômeno é priorizar e manter as barreiras de contenção naturais, refiro-me, por exemplo, à manutenção da vegetação nativa que serve como barreira natural para as enxurradas e movimentação de terra geradas pelas chuvas.
Infelizmente, como ocorre também em meu país, o corte indiscriminado de floresta nativa justamente afeta ou altera essa barreira natural; o crescimento inorgânico dos centros urbanos vai roubando espaços naturais fundamentais para a contenção dos fenômenos naturais. Por outro lado, ou outro exemplo, é o respeito e manutenção dos cursos naturais, frequentemente acontece de invadirmos o caminho, a trilha natural da água, por assim dizer, vamos construindo em cursos de rios, ou acumulamos resíduos em lugares que historicamente correspondem a esse passo da natureza, a água tem memória, no entanto, os humanos às vezes não temos. Isso por um lado.
Por outro, essas catástrofes nos mostram o grave fenômeno da acumulação às vezes excessiva de, por exemplo, eletrodomésticos, móveis e outros produtos, e a vulnerabilidade à qual nos enfrentamos na hora de lidar com os resíduos desses. Além disso, em uma situação de normalidade, pelo menos em nosso país, não existe onde dispor adequadamente esses resíduos. O que fazemos com esses resíduos, como uma máquina de lavar quebrada? Como os descartamos? Para o fabricante é muito mais rentável nos vender um produto novo do que dar um segundo uso ao elaborado. Daí, por exemplo, abrir a discussão pública e política sobre medidas como a proibição da obsolescência programada dos eletrodomésticos, bens tecnológicos, entre outros, e entre outras medidas. Imagino que vocês enfrentem um desafio em comum conosco, o que fazemos com todo esse “lixo” que não é orgânico ou biodegradável, mas puramente industrial? Impossível de se decompor naturalmente ou se tornar parte de um processo natural para retornar à natureza de forma inócua para ela, ou para o ser humano, como ocorre, por exemplo, com um resíduo orgânico. Isso nos leva a um ponto de inflexão do qual devemos, como estados, nos responsabilizar.
Ou paramos e nos responsabilizamos pelos efeitos não só do excesso de consumo, mas também dos materiais que consumimos, pois uma vez que entendamos que o lixo não existe e que, assim como outros produtos ofertados em um sistema capitalista, no mercado, gera dinheiro e capital, talvez os ganhos não sejam tão estratosféricos como os obtidos com produtos elaborados a partir do plástico e da exploração laboral, ou outros, mas sempre haverá consumidores responsáveis e conscientes dispostos a investir ou a pagar mais em favor da sustentabilidade do nosso planeta. Ou teremos que continuar sofrendo as consequências ambientais, sociais, econômicas, laborais, entre outras, deixadas por esses eventos naturais, por não entender que o único que está em perigo em um cenário de mudança climática, na minha opinião, não é a natureza, mas sim a raça humana.