Paixão desmedida

O surfista Rodrigo Koxa em Teahupoo, no Taiti (Foto: Fred Pompermayer)

Por Bruno Romano

“DEU ‘UM METRINHO’ de onda no fim de semana!”; “entrou um swell, ‘meio metrão’ ontem!” Não importa em qual pedaço de praia tenha rolado o surf, quando o assunto é medição de ondas, o papo é sempre subjetivo – e a precisão, nem sempre bem apurada. Se “metrinhos” e “metrões”, gírias comuns na cena, já são difíceis de mensurar com exatidão, imagine quando o mar cresce para valer. É por isso que, até hoje, mesmo os feitos extraordinários em ondas gigantes são medidos com critérios totalmente imprecisos. Entretanto um recém-formado engenheiro paulista, apaixonado por surf, tem um plano que pode revolucionar toda essa história.

Lucas Sawaya, 24, é especialista em engenharia eletrônica e autor do projeto Big Waves Triangulation System, o BWTS. Como a sigla em inglês indica, o sistema prevê uma inédita triangulação de informações. Segundo seu criador, a combinação é capaz de minimizar a quase zero a enorme margem de erro atual. Testado pela primeira vez no fim de 2015, na praia de Nazaré, em Portugal (cenário de importantes recordes de ondas gigantescas), o BWTS avançou nos últimos dois anos para uma tecnologia supercompacta e inovadora. Achou espaço e relevância em outros esportes extremos e promete chegar, ainda em 2017, a um modelo que pode mudar para sempre a captação de dados no mundo outdoor – de quebra, deve ajudar na rotina dos atletas e até na transmissão de eventos.

(R)EVOLUÇÃO: O paulista Lucas Sawaya apresenta o BWTS, um inovador sistema de medição de ondas (Foto: Arquivo pessoal)

Como nenhuma onda é um “polígono exato”, explica Lucas, muitas variáveis influenciam na forma de medição atual, das lentes fotográficas usadas nos registros até a inclinação do surfista em um exato momento, por exemplo. “Começamos a pensar em outros parâmetros e, logo de cara, conseguimos diminuir muito a porcentagem de erro”, conta Lucas, surfista amador e fissurado em surf de peito, que despertou para a questão após ouvir falar de Nazaré em 2014, ainda na época de estudante, quando desenvolveu o projeto. O esforço também conta com a parceria de seu pai, o engenheiro Jorge Sawaya, sócio do filho em uma empresa que leva o nome da família, o Grupo Sawaya.

Na prática, Lucas decidiu mexer com um tema que andava em “banho-maria” no turbulento oceano do big wave surfing. Enquanto o desempenho dos atletas não para de evoluir, a medição seguia congelada no tempo. Basta olhar para o “Oscar” da modalidade, o anual Big Wave Awards, que premiou em 2017 o italiano Francisco Porcella, autor de um bem-sucedido drop em fevereiro deste ano em uma morra de Nazaré mensurada em 73 pés, algo em torno de 22 metros. O esquema atual que definiu a altura, no entanto, é bastante simplório (para não dizer amador). Basicamente, compara-se uma imagem da onda surfada com outras semelhantes e se faz um “tira-teima” mensurando o tamanho do surfista e projetando-o na dimensão da onda em si. Detalhe: isso serve de referência até para os recordes do Guinness. Atualmente, o de maior onda surfada pertence ao norte-americano Garrett McNamara, com 78 pés (24 metros), em um dia histórico de 2011 em Nazaré.

PERITOS EM “BOMBAS”: O surfista de ondas grande Rodrigo Koxa testa o o BWTS em Nazaré (Portugal) (Foto: Lucas Sawaya)

A proposta do BWTS é inovar toda a engrenagem – o que pode, inclusive, colaborar com a determinação de recordes futuros. “É um sonho para nós, surfistas. Acredito que também seja um grande desejo do público em geral”, afirma o big rider Rodrigo Koxa. Aos 37 anos, ele persegue ondas grandes desde os 15, quando se meteu em uma barca rumo a Puerto Escondido, no México. Rodrigo se aliou a outro experiente surfista de ondas grandes brasileiro, Vitor Faria, para botar à prova o BWTS em Nazaré há dois anos. Desde então, ele tem acompanhado de perto todo o processo. “É muito comum me perguntarem qual o tamanho da maior onda que já surfei, porém nunca consegui responder”, diz o surfista, que já está confirmado para novos testes no fim de 2017 em Portugal, assim que a próxima temporada de “bombas” começar.

Ao investir no audacioso caminho do free surf, Rodrigo não pensa somente em recordes, é verdade. Ele também acredita que uma plataforma mais fiel de medição tem tudo para alavancar ainda mais o esporte. “Posso garantir que muita adrenalina já foi liberada para juntarmos os primeiros dados”, brinca. Na versão inicial do BWTS, um sensor de ultrassom foi instalado no meio da prancha compartilhada por Rodrigo e Vitor para medir a distância do equipamento em relação ao atleta. Também foi acoplado um GPS que trabalhava em sincronia com uma filmadora fora da água. Tudo era armazenado em um pen drive dentro do próprio aparelho. Juntando as informações após a sessão de surf com fotos tiradas de fora da água, Lucas chegava às conclusões unindo os dados em um software desenvolvido especialmente para isso.

Assim como dropar as temidas ondas portuguesas, fazer a geringonça funcionar se mostrou um enorme desafio. O módulo inicial era grande e pesado. E seu posicionamento só permitia o uso em sessões de tow-in (em que o surfista chega à onda com a ajuda de jet-ski), o que limitava a performance dos atletas. Mas foi o passo inicial e necessário para mostrar que a ideia fazia sentido. “Mesmo com todas as dificuldades, foi muito gratificante participar”, lembra Rodrigo. “Até porque eu queria enfim saber o tamanho das ondas que estava surfando, algo inusitado nesse universo, mesmo para quem já está há tempos fazendo isso”, acrescenta o surfista, que conheceu Lucas por acaso em um dia de mar grande em Maresias, no litoral norte de São Paulo. Enquanto Rodrigo se testava no tow-in, aproveitando condições clássicas e desafiantes, Lucas habitava o mesmo pedaço apenas com pés de pato, dropando as bombas no peito. A identificação foi imediata, e a parceria se fortaleceu desde então.

A GRANDE SACADA do BWTS foi conseguir trazer à luz uma nova versão capaz de medir ondas “normais”. Em um novo formato, o conjunto de equipamentos permitiu a chamada telemetria, acoplando sensores em uma pequena mochila nas costas do atleta. Os dados passaram a ser transmitidos remotamente para uma base na areia. Dali era possível sincronizar tudo e soltar informações em tempo real. Testes durante a etapa nacional do circuito profissional de surf em 2016 comprovaram a eficácia do novo plano e abriram caminho para voos mais ambiciosos.

Lucas monta versão pioneira do aparelho para surf em estilo tow-in (Foto: Lucas Sawaya)

Envolvido no meio do surf a ponto de organizar eventos como o anual Itacoa Legends, espécie de mundial de body surf para feras no assunto, disputado em Itacoatiara (RJ), Lucas tem interagido com figurões dos bastidores do esporte interessados em implantar a experiência. Assim que a mais recente versão for aprovada, a intenção é homologar seu uso em competições, disponibilizando dados para interagir nas coberturas ao vivo dos torneios.

O BWTS também tem se mostrado bastante útil fora da água salgada. Em uma recente viagem rumo ao Alasca (EUA), Lucas testou o sistema com uma trupe de brasileiros que desbravava montanhas em descidas livres de esqui. “A ideia de carregar um equipamento que está monitorando tudo, em um momento de desafio dos seus limites, é fantástica”, conta o paulistano Guilherme Jacob, 50, adepto de modalidades extremas na neve e um dos brasileiros que já experimentou o BWTS. Ele defende que as informações coletadas e analisadas não apenas vão definir novos recordes, como podem ajudar empresas de artigos outdoor a desenvolverem soluções mais eficientes e seguras.

Rodrigo Koxa aprimora sua técnica dropando Jaws (Havaí) na remada (Foto: Brent Bielman)

Depois de ser solto por um helicóptero no alto de uma montanha inóspita e se lançar morro abaixo com o ski nos pés, Guilherme comemorou com seus parceiros de heli-ski a chegada a salvo lá embaixo e a prontidão para saber que havia encarado inclinações acima de 70 graus, com tempo de descida, altura percorrida e outros dados na ponta dos dedos.

Curiosamente, a invenção de Lucas se dá em um momento de aposta de várias marcas nos chamados smartwatches, ou relógios “inteligentes”, que medem diversas estatísticas semelhantes. Há até modelos específicos para surf. Eles também possuem GPS e somam uma série de outras funções. A diferença básica – além do fato de esses aparelhos não medirem altura de ondas – é a capacidade de o BWTS transmitir remotamente uma gama complexa de dados. “Acho que outra vantagem é mostrar a ciência por trás do esporte, unindo a paixão pelos dois campos, com o intuito de transmitir tudo em tempo real”, acrescenta Lucas.

Para dar o próximo passo, seja na água, na neve ou até em uma pista de skate, o sistema promete ser ainda menos invasivo. A partir de outubro, por exemplo, novas saídas a campo em Nazaré terão toda a tecnologia dentro de sensores nos coletes dos surfistas (usados para ajudar na flutuação em caso de quedas nas imensas ondas). Também já está em desenvolvimento a inserção da mesma ideia nas lycras usadas em torneios, algo que a World Surf League (WSL), principal entidade do esporte, já mostrou interesse.

“Tudo o que a gente está fazendo é em favor do surf e do treinamento dos atletas”, afirma Lucas, lembrando que as estatísticas podem ser úteis até no trabalho dos juízes nas competições. O sucesso do BWTS não significa o fim dos “metrinhos” e “metrões”. Nem mesmo uma limitação do que vem por aí. Pelo contrário. É só um novo jeito – inovador, mais preciso e avançado, do tipo “como não pensaram nisso antes?” –, com um enorme poder para impulsionar a empolgante busca pelas maiores ondas do planeta.







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