Os perrengues e as glórias de quatro longas cicloviagens

Por Thaís Valverde

Não é de carro, de navio ou avião, é de bike mesmo que brasileiros estão encarando viagens que podem durar dias, meses e até anos. Mais do que chegar ao destino, a modalidade de cicloviagem é uma experiência a todo instante, afinal, com a bike você está exposto a tudo. Ao clima, à natureza, ao cansaço e, claro, aos perrengues. Conversamos com quatro ciclistas que encararam longas viagens de bike que transformaram suas vidas. E acredite: pneu furado é o menor dos desafios dessa galera.

Rafael Parra, 27 anos

Rafael é um paulista que, antes da sua viagem, entre 2014 e 2016, vivia uma vida “normal”. Trabalho, estudo, contas para pagar etc. A rotina começou o incomodar. Até que ele decidiu fazer um cicloviagem sem rumo, que durou mais de dois anos, totalizando 19 mil km pelo Brasil e a América Latina. Desprendido, chegou a ter apenas nove peças de roupa ao longo da trip.

Perrengue: “Acorda, menino!”

“Foi no Jalapão, em Tocantins, que cheguei bem próximo de um fim trágico da minha viagem. Decidi percorrer 170 km de estrada de areia bem no cerrado, em pleno verão, 40 graus, sem uma sombra e estrada deserta. A areia era tão fina que a bicicleta não passava dos 10 km/h. Já fazia mais de 4 horas que minha água havia terminado. Eu era pura exaustão empurrando a bike. Montei a barraca e decidi ficar por ali aguardando se alguém apareceria. Acabei dormindo de desidratação e cansaço. No dia seguinte quem me resgatou no meio do Parque Estadual do Jalapão foram os guardas da reserva. Eles avistaram a barraca com a bike para fora e resolveram constatar o que era. Os anjos estavam de plantão!”

Glória: Sinta a liberdade

“Foi o primeiro dia de viagem. Chorei muito e até hoje não sei por quê. Não sei se chorava pela liberdade ou medo, mas foi um dia do qual nunca vou esquecer. Era como se mesmo a bicicleta, por mais pesada que estivesse, flutuasse. As primeiras pessoas que me viram na rua com a bike carregada me perguntavam para onde eu ia, e eu respondia gritando, chorando, rindo e pedalando, tudo ao mesmo tempo: “Nãaaaoo seeeeeiiii”! Foi um dia realmente marcante. Outro momento único foi a convivência com os índios na Amazônia. Mudou completamente meu modo de vida, a pureza e a sabedoria dessas pessoas com a natureza é algo que faz falta a nós, da cidade.”

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Fábio Nunes, 36 anos

O publicitário é um iniciante em longas cicloviagens, mas usa a magrela diariamente. Resolveu fazer sua primeira trip no início de janeiro, de quatro dias, pela Cordilheira dos Andes, de Santiago até a Argentina. Pedalava uma média de 80 km com o amigo Rafael Boldrini. Quatro dias que renderam muita história – com direito a um smartphone que explodiu devido ao calor e ao uso excessivo do GPS.

Perrengue: Benzetacil no primeiro dia

“Quando cheguei a Santiago, tive a pior amigdalite da minha vida. Fiquei três dias de cama e tiveram que chamar um médico para me aplicar Benzetacil (antibiótico). Isso de certa forma me abalou, principalmente o psicológico. Fiquei muito ansioso com a situação, mal dormia pensando se iria aguentar a viagem. Mesmo com alta para começar a aventura, todos dias os depois de pedalar tive febre.”

Glória: Com os Andes tudo passa

“A paisagem foi, sem dúvida, o melhor da viagem. Mesmo com o cansaço, o calor, o vento e as dores, tentei aproveitar e registrar todos os momentos. Aprendi muito com meu amigo, que também é montanhista. Pedalar nos Andes foi uma experiência incrível”.

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Lucas Rodarte, 25 anos

Acostumado a fazer de curtas a médias cicloviagens, o estudante de educação física encarou recentemente 2.500 km de Natal (RN) até Brasília (DF), onde mora. Foram 57 dias de pedal e três meses na estrada com seu amigo Jonas Lion. A ideia era fazer grande parte do percurso beirando o litoral e acampando nas praias.

Perrengue: Quem orienta nem sempre anda de bike

“Era nosso terceiro dia de viagem. Queríamos ir para Lucena (PB) antes de ir para João Pessoa (PB). Tínhamos um esquema de warmshower (uma espécie de AirBnb para cicloturistas) lá. Mas quando estávamos na Baía da Traição (PB), logo no início do role, os nativos indicaram a estrada para o Rio Tinto, onde almoçamos e nos demos conta que estávamos indo pro continente e não mais acompanhando o litoral. Caímos na BR 101, uma via com fluxo intenso de veículos. Mesmo no acostamento ficamos bem tensos durante todo o trajeto, que inclusive era cheio de subidas. Foram uns 50 km sem posto, com calor e sede. Anoiteceu ao longo da viagem. Já era quase 21 horas e não encontrávamos campings por perto. Ligamos para um que tinha vaga e, já cansados, pedalamos mais 10 km até o lugar. Nesse dia foram 120 km, sendo que nossa média por dia era 50 km.”

Glória: Chegada triunfante

“A chegada ao Vale do Capão, na Chapada Diamantina, foi incrível. Saímos 11h de Lençóis e fomos por dentro da mata, pelas trilhas. Foram 38 km de muuuuita subida e todo tipo de terreno. Porém foi de longe a trilha mais bonita que já fiz na vida. Chegamos à vila do Capão quase 21h, saudados pelos amigos e curiosos. Outro momento marcante foi a chegada a Brasília. Quando vi a placa ‘Bem-vindo a Brasília’, soltei o grito mais sincero da vida. Na praça do Cruzeiro, fui recepcionado pelos meus irmãos com rojões, faixa de chegada e música do Ayrton Senna. Foi inexplicável aquele sentimento.”

Thiago Castilho, 37 anos, e Flávia Siqueira, 29 anos

Thiago é médico patologista e Flávia, enfermeira. Ambos trabalhavam na área de oncologia na cidade de Barretos (SP). O sonho de conhecer o mundo sempre foi um desejo do casal, que cresceu ao logo dos dias, no próprio trabalho. Ao lidar com pacientes com câncer, alguns em estágio terminal, começaram a refletir sobre o quanto a vida é finita e que o agora é o melhor momento para realizar os sonhos. Venderam casa, carro e planejaram durante três anos a viagem ao redor do mundo com uma bicicleta tandem (de dois lugares). Há seis meses na estrada, neste momento estão na região da Patagônia argentina.

Perrengue: 8 km em dois dias

“O perrengue normalmente acontece quando não conseguimos pedalar. Apesar de já termos experiências em cicloviagens, é a primeira vez que vamos com uma tandem. Quando estávamos na divisa de São Paulo com Paraná resolvemos pegar a trilha do Telégrafo. Antes de entrarmos mata adentro, perguntamos para nativos sobre o trajeto e disseram que dava para encarar. Mas definitivamente não com a nossa bike. Foram 8 km de puro barro, pedra e subida, empurrando o tempo todo a bike, em dois dias. Nós tivemos que levar a bike primeiro e depois pegar as nossas coisas. Dormimos no meio da trilha, totalmente encardidos. No outro dia vimos que tinha até pegada de onça lá.”

Glória: As pessoas

“Em uma viagem de bike você está exposto a tudo. Ao vento, ao sol, a bichos, a vários momentos de contato puro com a natureza. Mas a viagem não é feita apenas de lugares, mas sim das pessoas. São as famílias que nos recebem que tanto nos ensinam e que nos dão carinhos inesperados. É indescritível encontrar no final de uma trilha alguém que para o carro e te oferece um suco de limão gelado.”

O casal compartilha tudo sobre a viagem nas redes sociais e no site 2fortrips.com. Uma cena desse perrengue você confere aqui.

Dica da galera

1. “Caleje a bunda”: prepare-se para encarar muitos quilômetros na bike. Você pode até planejar pedalada x km por dia, mas deve ter certeza que algo inesperável vai acontecer e o x pode dobrar, triplicar…
2. Menos é mais. Cuidado com os excessos. Lembre-se de que é você quem vai carregar tudo.
3. Encare a solidão. Se você vai fazer uma cicloviagem sozinho, então saiba que a solidão faz parte da viagem. Rafael Parra, que viajou durante mais de dois anos, pedalava dias e dias sem ver ninguém pelo caminho. Apesar de a solidão aparentar ser assustadora, é também uma experiência enriquecedora de autoconhecimento. Aproveite-a.
4. Comece com viagens curtas para ver se gosta do estilo.
5. Aprenda a trocar pneu, consertar corrente, regular o câmbio da bike, porque no meio do nada não vai ter uma bicicletaria.
6. Não compre logo de cara equipamentos top de linha. Com o tempo você vai sacar do que precisa.







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