Por Adele Santelli, da África do Sul
O ALARME TOCA às 5h15 da manhã. Penso em colocar o relógio na função soneca. Mais nove minutinhos de sono cairiam tão bem para meu cansaço… Mas não consigo. A ansiedade fala mais alto, e eu salto da cama. Escovo os dentes e troco de roupa: calças compridas, sapatos fechados, protetor solar e uma mochila com minha câmera fazem parte da indumentária. O horário marcado para que a gente saia para o sáfari é 6h em ponto. Cinco minutos de tolerância para os mais atrasados, e só.
Ao chegar à reserva na província de Limpopo, na África do Sul, na tarde do dia anterior, nosso grupo de turistas foi levado para conhecer Rocky e Clover – dois jovens rinocerontes-brancos resgatados, cujas mães foram mortas por caçadores. Criados desde muito cedo por humanos, eles não poderão retornar à natureza e por isso são utilizados em projetos de educação e conscientização sobre a gravidade do problema contra essa espécie. A descrição da crueldade dos caçadores relatada por uma de nossas guias, a sul-africana Denise Mirzoeva, 29, apertou o coração de todos. Dez tiros não conseguiram derrubar o animal, que teve então sua espinha quebrada, agonizando até a morte. O chifre provavelmente foi arrancado antes de morrer. Triste. Mas infelizmente longe de ser um caso isolado. Nos últimos 150 anos, a caça reduziu a população de mais de 1 milhão de rinocerontes africanos para cerca de 25 mil. Estima-se que 98% deles vivam hoje em reservas privadas ou em parques nacionais da África do Sul, Quênia, Zimbábue e Namíbia.
Sobreviver fora das áreas protegidas se tornou uma missão quase impossível. À primeira vista, imaginei que áreas fechadas não seriam os melhores lugares para esses animais – que, em minha ingênua visão até aquele momento, deveriam habitar territórios selvagens. Após visitar a reserva, percebi que a realidade era totalmente outra. “Como Rocky e Clover, outros rinocerontes também vivem parcialmente confinados em áreas protegidas. Não é o ideal, porém o objetivo agora se transformou em impedir que esses animais deixem de existir. Durmo com um rifle ao lado da minha cama. Tenham certeza de que não hesitarei em atirar se for preciso defendê-los”, explica Denise, que é guia há um ano e meio.
A revolta da guia é compreensível. O último animal abatido dentro da reserva protegida na qual ela trabalha foi morto por um caçador que se passou por funcionário do local durante meses. Investigado, o homem foi preso e condenado a cumprir uma pena de 28 anos de reclusão. Embora incomuns, sentenças duras são essenciais para não estimular a caça ilegal. Mas nãosão o suficiente. Os caçadores são, em geral, nativos sem muitas oportunidades em regiões nas quais educação e emprego não são pontos fortes. Normalmente, eles são atraídos por promessas de dinheiro alto, mas nada comparado com o quanto se ganha no fim do perverso ciclo. Na Ásia, o quilo do chifre chega a valer US$ 100 mil, e os chefes das quadrilhas que articulam a matança raramente são presos. Em países como a China, o chifre ainda é usado para fins medicinais nunca comprovados.
Na manhã do safári, somos recebidos por um 4×4 que mais parece saído de um filme. A energia emanada pelas pessoas ávidas para verem de perto essas criaturas fascinantes, somada aos encantos da natureza local, tornam aquele momento eletrizante. Paradas para conhecer a marula, fruta típica da região que dá origem a uma bebida licorosa, e para acariciar uma centopeia ajudam a criar o clima: estamos na África! A guia desafia os iniciantes a colocar cocô de zebra na boca e cuspir o mais longe que conseguir, como forma de pagar um “pedágio”. Confesso que no calor do momento não é difícil executar a tarefa. Uma árvore baobá de 800 anos é o cenário da pausa para um lanche: sucos, refrigerantes e vinhos sul-africanos, acompanhados de mix de castanhas e milhos crocantes temperados. De longe, girafas nos vigiam.
Chega a hora de seguir viagem, e um grupo de leões devora um antílope impala em um arbusto. A caça é recente, e os felinos têm sangue fresco na boca e no rosto. A sensação é de estarmos em um documentário da National Geographic. Leões, zebras, hipopótamos, hienas e javalis. Ainda não nos damos por satisfeitos: queremos encontrar os rinocerontes, um dos mais imponentes dos “Big 5”, os grandes mamíferos das savanas africanas (os outros são o leão, o búfalo, o elefante e o leopardo).
Diferentemente da situação de Clover e Rocky, estamos à procura daqueles que ainda podem manter sua natureza selvagem. São mais de três horas atentos às pegadas e sinais que possam levar aos animais. Os olhos não desgrudam da mata, composta basicamente por arbustos. No 4×4, dividimos o grupo. Metade fica atenta ao lado esquerdo, enquanto a outra monitora o direito. Em países como Quênia e África do Sul, o uso particular de drones foi proibido em reservas e parques nacionais. “Pode parecer uma atitude controversa, mas o equipamento poderia ajudar caçadores a encontrarem os animais. Melhor não arriscar”, explica o sul-africano John Davis, outro guia do nosso grupo.
O último relatório “Planeta Vivo”, da ONG Worldwide Fund for Nature (WWF), publicado no fim de 2016, traz dados alarmantes. Calcula-se que existam atualmente apenas cerca de 4.800 exemplares da espécie de rinocerontes-negros, a mais ameaçada de extinção na África. Os negros-ocidentais, uma subespécie, foram declarados extintos em 2011. O drama, claro, não envolve apenas rinocerontes. Desde 1970, a população de animais selvagens caiu 58% em todo o mundo, de acordo com o estudo. A principal causadora desse declínio é a ação direta do homem. Destruição de hábitats, tráfico de animais silvestres, poluição, mudanças climáticas e, claro, a caça ilegal. Se a situação continuar nesse ritmo, até 2020 teremos perdido 68% das populações de vertebrados.
O documento da WWF foi divulgado no mesmo mês em que a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (a Cites, conhecida como Convenção de Washington) comemorou uma vitória importante: a não regulamentação, pelo menos por enquanto, dos mercados de chifres de rinocerontes e marfim de elefantes, banidos em 1977 e 1989, respectivamente.
Em pauta há algum tempo, três propostas foram discutidas na 17ª reunião da Conferência das Partes Signatárias da Cites (CoP17), a Conferência Mundial da Vida Selvagem, ocorrida em Johanesburgo, na África do Sul. Duas delas, da Namíbia e do Zimbábue, defendiam a reabertura dos mercados. A terceira, fruto de uma aliança composta por outros países africanos, se posicionou contra a comercialização, permanentemente, sem chance de negociação e com pedido de inclusão dos elefantes na categoria de máxima proteção do Cites. Assim como os rinocerontes, os elefantes também sofrem sério risco de extinção. Só na Tanzânia, ainda segundo o relatório da WWF, a população de elefantes caiu 66% em apenas cinco anos, entre 2009 e 2014. Há quem defenda o comércio legalizado com o argumento de que assim seria possível levantar dinheiro para a própria proteção das espécies. Ambientalistas, no entanto, discordam e alegam que a comercialização legal serviria como estímulo à compra, incentivando e maquiando ainda mais a caça ilegal.
Em nossa aventura africana, não encontramos os rinocerontes – mas acompanhamos o lado triste da história. A parada, desta vez, não é para observar aves ou plantas nativas. O assunto é outro. Um crânio de rinoceronte, um amontoado de ossos e uma carcaça de pele ao lado fecham nossos sorrisos e trazem lágrimas aos olhos. Difícil não se revoltar. O grupo se cala. E todos descem do veículo para ver a triste cena mais de perto.
Talvez seja melhor assim. Que rinocerontes, elefantes e tantos outros animais ameaçados não sejam encontrados por nós, humanos. Fica clara a intenção da guia Denise ao nos mostrar o resultado de uma ação tão cruel. Na luta injusta de homens gananciosos e armados contra a natureza, o papel de cada um aqui fica traçado, na esperança de que a informação, a educação ambiental e a comoção possam ajudar essas incríveis criaturas a prosperarem novamente nas savanas africanas. Antes que seja tarde demais.