O que é preciso para correr — e se recuperar — de uma ultra na montanha

Por Alex Hutchinson

Foto: Lucas Budinsky / Shutterstock.

Fisiologistas analisam calorias gastas e líquidos consumidos durante uma prova de 160 km

A piada mais famosa sobre música envolve um turista perdido em Manhattan que pergunta a um músico como chegar ao Carnegie Hall. A resposta: “Prática, prática, prática.” Essa tirada me veio à cabeça enquanto eu lia um novo estudo sobre as exigências calóricas das ultramaratonas de montanha de 160 quilômetros. Você pode queimar algo em torno de 16 mil calorias durante uma prova dessas — um número impressionante —, mas são necessários bem mais do que calorias para cruzar a linha de chegada.

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O estudo, publicado no International Journal of Sports Physiology and Performance, analisou o desempenho de dois participantes da Wasatch Front Endurance Run, uma ultramaratona de 160 quilômetros realizada em Utah (EUA), com um ganho acumulado de quase 7.600 metros de subidas e descidas, e pontos acima dos 3.000 metros de altitude. Os participantes eram dois homens, de 45 e 31 anos, ambos com experiência prévia em provas desse tipo. A equipe liderada por Andrew Creer, da Utah Valley University, forneceu aos corredores água “duplamente marcada” — que contém isótopos de hidrogênio e oxigênio que permitem aos cientistas medir com precisão a quantidade de calorias queimadas e de água usada pelo corpo.

Essa não foi a primeira vez que pesquisadores usaram água duplamente marcada para estudar ultramaratonistas. Um estudo anterior de Brent Ruby, da Universidade de Montana — que também é coautor deste novo trabalho — reuniu dados de dez corredores na Western States 100 e concluiu que, em média, eles queimaram 16.130 calorias em 26,8 horas de corrida. A novidade agora é que os pesquisadores acompanharam os corredores por mais sete dias após a prova, para entender como seus corpos responderam ao enorme estresse fisiológico e ao déficit calórico.

Durante a prova

Ambos os corredores da Wasatch levaram 32,8 horas para completar a ultramaratona. O gasto calórico de cada um foi surpreendentemente semelhante: 15.723 e 15.888 calorias, mesmo com diferenças de peso — um pesava 74 kg e o outro, 59 kg. O corredor mais pesado conseguiu ingerir aproximadamente 8.767 calorias durante a prova, enquanto o mais leve consumiu 7.429 calorias. Em ambos os casos, isso significa que eles conseguiram repor apenas cerca de metade do que queimaram — ficando com um déficit energético de cerca de 8.000 calorias.

Repor metade das calorias gastas é algo relativamente comum entre ultramaratonistas. Esses dois atletas estavam ingerindo entre 40 e 50 gramas de carboidrato por hora — abaixo das recomendações da nutrição esportiva, que sugerem até 90 gramas por hora, e bem distante das taxas de consumo de 120 gramas por hora (ou mais) que alguns ciclistas e corredores de elite vêm testando nos últimos anos. Mas isso está dentro do limite superior do que a maioria dos atletas não profissionais consegue tolerar, a menos que tenham treinado deliberadamente o sistema digestivo para aguentar volumes maiores.

A técnica da água duplamente marcada também permite estimar o chamado “turnover hídrico” — ou seja, a quantidade de água que foi substituída no corpo. Durante a prova, o turnover estimado para os dois corredores foi de 14,6 e 15,5 litros, respectivamente. Esses valores não são universais, pois variam conforme as condições ambientais (na Wasatch, as temperaturas oscilaram entre 4 ºC e 29 ºC) e fatores individuais, como a taxa de suor. Mas dão uma noção aproximada do quanto se pode esperar beber em uma prova desse tipo.

Os corredores perderam, respectivamente, 1,5 kg e 2,2 kg entre o início e o fim da prova, o que sugere uma leve desidratação. Parte dessa perda provavelmente veio da queima de estoques de carboidratos e gorduras, e não apenas de líquido corporal. Estimar com precisão quanto de líquido eles beberam durante a prova é difícil: um dos corredores estimou 15 litros, o que parece plausível; o outro estimou 21 litros, o que parece um exagero considerando os dados do turnover hídrico. No geral, porém, parece que eles conseguiram gerenciar bem a hidratação.

O Pós-Prova

Dois fatores principais entram em cena no dia seguinte a uma corrida de 160 quilômetros. O primeiro é um enorme déficit energético a ser compensado. O segundo é o estado de desgaste físico generalizado — seu corpo está destruído e precisa se recuperar. Até mesmo maratonas causam bastante dano muscular, devido ao impacto repetitivo dos passos. As ultramaratonas intensificam isso ainda mais, e as descidas — no caso da Wasatch, 7.600 metros acumulados — cobram um preço particularmente alto. Também pode haver inchaço, o que aumenta o turnover hídrico (a taxa de renovação de líquidos no corpo).

Nas 24 horas seguintes à corrida, os dois corredores da Wasatch queimaram 4.953 e 4.276 calorias, respectivamente — aproximadamente o triplo de suas taxas metabólicas basais — mesmo presumindo que tenham se movimentado o mínimo possível. Revistas de fitness costumam falar do “efeito afterburn” (a queima calórica prolongada) após treinos pesados, e ele certamente é real quando o “treino” dura 33 horas. Apesar disso, ambos já haviam recuperado seus pesos normais dentro de 24 horas — ou até estavam um pouco acima do peso pré-prova —, o que sugere que outro fenômeno bastante comum no mundo fitness entrou em ação: a alimentação compensatória.

Nos sete dias seguintes à prova, o gasto calórico foi voltando aos níveis normais, com médias diárias de 3.245 calorias para um dos corredores e 2.721 para o outro. Nenhum deles treinou nesse período. Curiosamente, o turnover hídrico também variou bastante entre eles: uma média de 6,0 litros por dia para um corredor e 3,4 litros para o outro — uma diferença significativa que revela como os hábitos de hidratação podem variar de pessoa para pessoa. Não houve indícios de que o segundo atleta estivesse se deteriorando fisicamente ou sofrendo de desidratação.

Estudos de caso como esse não determinam o que é ideal ou “ótimo”. Esses corredores foram impressionantes, mas não eram atletas de elite — o tempo do vencedor no ano anterior foi pouco acima das 19 horas. Creer e seus colegas especulam que, se o objetivo for desempenho em nível de elite, seria necessário ingerir ainda mais calorias. Mesmo assim, é fascinante observar números tão detalhados sobre o que é necessário para completar uma distância desse porte. E os dados sobre as exigências energéticas do processo de recuperação são particularmente reveladores. Lembram uma descoberta intrigante de um estudo recente sobre a necessidade de proteínas em atletas de endurance: aparentemente, seu corpo precisa de mais proteína nos dias de descanso do que nos dias de treino. Treinar é trabalho duro — mas, do ponto de vista do corpo, recuperar-se também é. Por isso, certifique-se de abastecê-lo com combustível suficiente para dar conta dessa missão.

*Alex Hutchinson escreve sobre treinamento na Outside USA.