Para alguns, uma ultramaratona pode estar próxima de uma experiência sagrada. Para a grande maioria, é, sem dúvida, uma das coisas mais loucas que você pode fazer com seu corpo

Cem quilômetros é uma longa viagem, um extenso trajeto de bicicleta e, para muitos, uma distância impensável para correr. No entanto, um número crescente de atletas de resistência estão enfrentando provas de ultramaratona mais longas.

Mas só porque a distância está crescendo em popularidade não significa que seja menos estressante para o organismo humano. Mesmo para os corredores mais experientes, as coisas podem ficar bem estranhas durante a corrida.

Aqui, explicamos exatamente o que acontece com o corpo durante uma corrida de 160 km e, quando possível, como evitar as partes ruins.

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Cérebro

O cérebro é o “órgão mais sensível aos danos causados ​​pelo calor”, diz Matthew Laye, fisiologista que estuda atletas de resistência no departamento de Saúde e Desempenho Humano da Universidade de Idaho. (Laye também é um ultracorredor de elite e venceu o Rocky Raccoon 160 de 2014, sua estreia nesta distância, em 13:17:42).

Embora a insolação seja bastante rara – o cérebro geralmente a impede de forçar o corpo a desacelerar – ela ainda pode ser perigosa. Laye aconselha fazer o resfriamento do corpo em condições quentes, colocando gelo ao redor do pescoço e no boné.

Menos perigosas, porém mais comuns, são as alucinações, que Laye acredita serem resultado de fadiga generalizada. Para minimizar as chances de que sua mente te confunda, treine em condições “próximas ao que você vai experimentar na corrida”, ele diz. Por exemplo, se você espera correr a noite toda, inicie alguns treinos longos às 21h. No caso de você começar a pensar – ou pior, ver – coisas estranhas, diminua a velocidade e respire fundo.

Mesmo que seu cérebro fique bem durante a ultramaratona, você inevitavelmente experimentará algo chamado fadiga central, que Laye descreve como “um declínio gradual na capacidade do sistema nervoso de contrair os músculos”. Você pode ser capaz de impedir este efeito trazendo desafios cognitivos durante o treino. Se você não consegue praticar Sudoku na esteira, por exemplo, considere programar alguns treinos mais intensos quando você sabe que já estará mentalmente cansado. Muitos ultracorredores bem-sucedidos saem para correr no final de um longo e desgastante dia no escritório.

Olhos

Ilustração: Gabriel Silveira.

Embora muito raro, de acordo com um estudo publicado na revista Wilderness and Environmental Medicine, os ultracorredores são suscetíveis a uma “turvação indolor da visão” que tende a ocorrer além da marca de 55 quilômetros de algumas corridas. Os pesquisadores descobriram que os atletas que passaram pela cirurgia LASIK, que corrige miopia, astigmatismo e hipermetropia, são especialmente propensos a irregularidades ópticas em competição. Felizmente, os autores observam que esses problemas de visão tendem a se resolver dentro de 3,5 horas após o término.

Embora existam dados limitados sobre as causas da perda de visão, Laye recomenda o uso de óculos de sol, especialmente se você já teve LASIK no passado. “A prevalência desses problemas de visão é muito menor em atletas de ultra-resistência, como ciclistas ou esquiadores de cross-country que usam proteção para os olhos como parte de seu esporte.”

Boca

A desidratação tem sido uma preocupação para os atletas em uma ultramaratona. No entanto, a hiponatremia, uma condição que resulta do consumo excessivo de água e da diluição efetiva do teor de sódio do sangue, pode ser muito mais perigosa. Pesquisas no Clinical Journal da American Society of Nephrology mostram que o ganho de peso substancial durante o exercício é o preditivo importante. “Você pensa: ‘Preciso elevar meus níveis de sódio’, então você pega algo com sal ou uma bebida esportiva com alto teor de sódio”, diz Laye, “mas isso só deixa você com sede, então você acaba bebendo mais água, o que dilui seu sangue”. Se não tratada, a condição pode levar à falência de órgãos.

Tem havido tanto foco e desentendimento sobre a desidratação que muitos atletas costumam beber demais quando deveriam se preocupar com o equilíbrio eletrolítico. Na verdade, “a desidratação leve é ​​na verdade algo comum durante a ultramaratona, e não tem efeitos negativos no desempenho ou na saúde”, diz Laye. A melhor maneira de prevenir a hiponatremia é ingerir uma bebida esportiva bem balanceada à sede, explica Laye. A maioria das bebidas esportivas comerciais, particularmente aquelas formuladas para atletas de resistência, contêm entre 120 e 190 miligramas de sódio por 220 ml.

Para realmente atender às suas necessidades de hidratação, Doug MacLean, um treinador de corrida e triatlo, sugere se pesar antes e depois de alguns treinos longos (mais de três horas), durante os quais você deve beber e comer como faria no dia de corrida. Subtraia o peso de qualquer alimento sólido que você coma durante a corrida, a partir do seu peso pós-corrida. Se você ganhou peso, provavelmente está bebendo demais. Se você perdeu mais de 1% a 2% do seu peso corporal, não está bebendo o suficiente.

Coração

Ilustração: Gabriel Silveira.

Em uma ultramaratona, uma de duas coisas mais prováveis que aconteça, diz Larry Creswell, um cirurgião cardíaco da Universidade do Mississippi e especialista em saúde do coração de atletas: sua frequência cardíaca aumentar ou diminuir. Cada alteração é afetada pelas condições em questão.

Um aumento na frequência cardíaca significa que o volume sistólico, ou a quantidade de sangue bombeado a cada batida, pode estar diminuindo, fazendo com que seu coração bata com mais frequência para empurrar o mesmo volume para os músculos. Isso geralmente é causado por desidratação ou temperaturas mais altas. A diminuição da frequência cardíaca, por outro lado, é provável de ocorrer se o sistema muscular se tornar tão fatigado que não exija mais tanto sangue do coração. Assim, uma queda na frequência cardíaca quase sempre coincide com uma queda na velocidade de corrida. De acordo com Creswell, a estimulação apropriada, a hidratação e o abastecimento são fundamentais para para promover e prolongar uma frequência cardíaca estável.

Ao chegar à linha de chegada, Creswell diz que não é incomum que os corredores sintam-se tontos, atordoados e talvez até desmaiem. Isso ocorre com tanta frequência que tem um nome: síndrome do colapso associado ao exercício. Muitas corridas designam voluntários para pegar os finalistas enquanto eles caem. Uma vez que você pare de correr, seu ritmo cardíaco diminui, e sua panturrilhas – que bombeiam sangue através de veias grandes contra a gravidade e de volta ao seu coração – param de realizar essa tarefa. Adicione um pouco de desidratação, diz Creswell, e você tem a receita perfeita para uma queda na pressão sanguínea que poderia causar tontura e um desmaio. Creswell enfatiza que os corredores devem estar atentos a isso e se sentar ao primeiro sinal de tontura.

Quanto a se o exercício de resistência pode causar danos a longo prazo, há um debate entre os cientistas do exercício. “O coração está extremamente bem adaptado ao exercício de resistência”, diz Creswell. “Em corridas longas como 160 km, o coração está trabalhando bem abaixo dos níveis máximos e, para simplificar, é muito bom fazer isso. Enquanto você estiver bem treinado e saudável para a corrida, hesito em desestimular esse tipo de projeto.”

Estômago

As questões gastrointestinais são a razão mais comum para os corredores abandonarem uma ultramaratona, de acordo com Kristin J. Stuempfle, professora de ciências da saúde do Gettysburg College, na Pensilvânia. Durante uma recente apresentação na conferência de Medicina e Ciência em Esportes de Ultra-Resistência, Stuempfle citou a endotoximéia – quando moléculas normalmente confinadas ao trato gastrointestinal vazam para o sangue – como uma provável causa de graves problemas estomacais.

Embora os desencadeantes exatos da endotoximia sejam desconhecidos, muitos especialistas especulam que ela está relacionada à redução do fluxo sanguíneo para o intestino. Mas Matthew Laye pensa diferente. Ele acha que a endotoximéia tem mais a ver com o constante empurrão de líquidos e alimentos causados ​​pela corrida. “Você dificilmente vê endotoximea em ciclistas”, diz ele, “e meu palpite é que porque os ciclistas não estão saltando para cima e para baixo.”

Sua melhor chance de evitar problemas gastrointestinais durante uma corrida é treinar seu intestino, praticando seu plano de abastecimento durante o treinamento. Ainda assim, Laye diz que cerca de 60% dos competidores experimentam náuseas em algum momento durante uma ultramaratona. Se você vomitar, diz ele, “a única estratégia é continuar comendo e bebendo, e reabastecer o que foi perdido o mais rápido possível.”

Braços

A fadiga do braço pode pegar os corredores de surpresa, mas isso provavelmente acontecerá, especialmente se você estiver usando uma garrafa de água portátil ou bastões de trekking.

Laye aconselha a fortalecer seus braços durante o treinamento, segurando pesos de 1 a 2 kg e realizando um giro natural. Trabalhe em alguns tempos de 15 segundos ao longo da semana. Ele também recomenda longos treinos usando qualquer equipamento que você tenha na corrida. “O que você não quer que aconteça”, adverte Laye, “é que os seus braços comecem a doer tanto que você não aguenta levantar a garrafa de água. Essa é uma receita para o desastre.”

Pernas

Suas pernas vão sentir uma corrida de 160 km. Não há maneira de evitar isso. As horas correndo levam a um dano acumulado nos principais músculos. De fato, estudos mostram que é comum que os participantes de ultramaratona tenham valores anormais no rim, já que estão trabalhando muito para filtrar os resíduos de lesões causadas por atividades extenuantes que destroem músculos liberados no sangue.

Ainda assim, em 99% dos casos, os valores dos rins voltam ao normal logo após a corrida. No entanto, procure atendimento médico imediatamente se a sua urina estiver muito escura, quase marrom. Embora seja extremamente raro, uma condição chamada rabdomiólise pode ocorrer quando os rins estão sobrecarregados com partículas da degradação muscular e podem causar danos permanentes aos rins.

Para retardar e minimizar o dano muscular nas pernas, é essencial ingerir carboidratos, que atuam como combustível para os músculos, explica Laye. Ele recomenda ingerir 70 gramas por hora. Laye também recomenda adicionar exercícios que exponham os músculos das pernas ao tipo de dano que eles vão sentir no dia da corrida. Correr ladeira abaixo é ótimo para isso. “Sessões específicas para downhill foram a coisa mais importante que fiz antes do Rocky Raccoon”, diz ele. “Apesar de o campo ser plano, as sessões de downhill aumentaram a durabilidade das pernas, o que atrasou o colapso nos estágios finais da corrida.”

Pés

Ilustração: Gabriel Silveira.

Suor, lama, travessias de rios, terra e a própria distância de uma ultramaratona contribuem para o atrito do pé. A maioria dos ultracorredores têm problemas com bolhas.

De acordo com Laye, aplicar um gel anti-atrito nos pontos problemáticos – entre os dedos dos pés, nas laterais dos pés e nos calcanhares – antes das corridas é uma boa prevenção. Ele também recomenda usar meias com encaixe para os dedos individuais para qualquer pessoa propensa a desenvolver bolhas entre os dedos dos pés.

Laye leva meias extras e um par extra de sapatos, muitas vezes uma marca diferente das que ele começou a prova. Dessa forma, se ele precisar trocar de sapatos, é menos provável que o pé dele sinta os mesmos pontos que o estão machucando. Se você tiver uma bolha durante a corrida, Laye recomenda estourar com uma agulha estéril, drenar, colocar o curativo e depois colocar novas meias.

*Texto publicado originalmente na Outside USA.







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