Nossa Senhora dos Vira-Latas

MUITO AMOR: Lya Battle no Territorio dos Zaguates, sua fazenda na zona rural de Alajuela, na Costa Rica

O maior santuário de cães do mundo fica em uma pequena fazenda na Costa Rica, onde centenas de cachorros correm soltos pelo campo – comendo muito e babando alegremente em Lya Battle e seu pequeno exército de voluntários.

Por Bob Shacochis
Fotos de Lucas Foglia

POR MUITOS ANOS, centenas de anos, no Vale Central e nas frondosas terras altas da Costa Rica, uma respeitada família é conhecida por um diferencial atípico – não por sua riqueza, influência política ou proezas culturais, mas pela extraordinária beleza de suas mulheres. Lya Battle, que se parece com uma das pequenas heroínas de cabelo vermelho de Game of Thrones, é prova viva do legado da família Barrantes e seus 49 anos de vida dura não abalaram seu charme.

Qualquer história sobre Lya passa-se entre dois polos opostos: entre tudo que é belo e desejável no mundo, e tudo o que é feio e indesejável. Nos campos emotivos entre esses dois reinos, Lya ficou famosa, não apenas na Costa Rica, mas em todo o mundo, por sua devoção aos feios. Seus famosos beijos nos feiosos fazem dela uma das mulheres mais promíscuas do mundo, com centenas de amantes ofegantes e saltitantes, em sua maioria com quatro pernas – às vezes três – e um pedigree bem obscuro.

Às vezes o lugar parece um terminal de ônibus, onde todos os passageiros são cães

É até perdoável que alguém pense que Lya Battle é uma doida descontrolada, por causa de sua paixão por cães. Mas o tal descontrole é uma questão de ponto de vista. Especialmente considerando que Lya se tornou conhecida como a Madre Teresa dos Vira-Latas, dona de um lugar chamado Territorio de Zaguates (algo como o “Reino dos Vira-latas”), alcunha que talvez nunca tivesse surgido caso seu pai, a quem ela adorava, não houvesse atirado em sua mãe, que ela não adorava.

A JORNADA AO TERRITORIO DE ZAGUATES é tão desafiadora em termos cartográficos que em algum lugar no meio do caminho você começa a pensar que se trata de uma terra imaginária, uma “cãotopia” mítica de amor babado. Parece ser impossível chegar ali, mas mesmo assim você acaba chegando. Para isso, precisa ziguezaguear pela cidadezinha de Alajuela, por um labirinto de avenidas e becos, subindo a montanha em um quebra-cabeça de vilas e plantações de café. Tem horas que não dá para acreditar em seu próprio telefone, quando o Waze te diz para virar em caminhos mal marcados. Em algum lugar adiante fica a cidade de Carrizal, e mais além o vulcão Poás. Entre os dois, os cães.

Passando a igreja da paróquia de Carrizal, chega-se a uma rua estreita e esburacada que sobe por uma encosta. Ao se atravessar uma vizinhança de casas deterioradas, observam-se senhores de camiseta regata sentados em banquinhos e alguns homens mais jovens lavando seus carros na rua. Ninguém acena em resposta, e apesar do clima não ser exatamente hostil certamente não é acolhedor. Na verdade, segundo Lya, há uma guerra entre ela e a comunidade.

Para além das últimas casas, a estrada sobe através de uma mata densa, até ser bloqueada pelo imenso portão do Territorio, ladeado por muros altos que desaparecem na floresta. Aqui, faça chuva ou faça sol, no meio da rua, fica um cão incrivelmente branco, Yiya, mais autointitulado “recepcionista” do que um guarda. Figura solitária separada de todos os outros por mais 400 metros de estrada, Yiya passa a seguinte mensagem: “Sou um excluído nato, porém sou parte essencial dessa operação”. Ele larga sua estação de trabalho na hora das refeições, sobe o morro para comer e, depois, volta ao trabalho no portão. A estradinha sobe um morro de grama e chega a um pequeno platô, onde se notam os primeiros sinais de caos, pontuados de pequenas aglomerações de confusão e caudas balançando. No platô e nos pastos acima do complexo principal, há um fluxo louco, como uma torcida do Flamengo ou um enxame de abelhas.

O funcionário Johnny Larkin Ruiz tumultuando a matilha

Não sei quem contou, mas dizem que há um bilhão de cães na Terra. Um quarto deles são bichos de estimação, o que significa que 750 milhões são zaguates, ou vira-latas, SRD, carniceiros, párias ou qualquer que seja o título carinhoso ou insulto que você queira atribuir a eles. A população flutuante do Territorio é de 700 a 800, Lya nunca tem 100% de certeza, apesar de haver um esforço contínuo de veterinários voluntários para vacinar, castrar e marcar todos.

Chego com minha esposa no dia do voluntariado. Os visitantes parecem ser apenas parceiros de brincadeiras, cada um com sua matilha de admiradores espalhados pelo terreno. Exatamente o que Lya queria quando convidou organizações e empresas regionais para doar o tempo de seus funcionários. Há também eventos de fim de semana, passeios que duram horas e que às vezes atraem centenas de pessoas desde a capital, San José, até Alajuela. Quando pergunto a Lya qual é a área do Territorio de Zaguates, seu sorriso se mostra incerto, e ela aponta para a montanha acima até as nuvens. Mais tarde ela menciona que os cachorros correm em aproximadamente 40 mil metros quadrados dentro do sítio de 570 mil metros quadrados da família.

Um dos moradores do abrigo

Desde o momento em que estacionamos o carro, nós nos tornamos um imã para dezenas de cachorros que latem, meio desconfiados, meio felizes. Há algo tão fantástico, e um pouco esquisito, na visão de Lya, que sua existência naturalmente se mistura com o realismo mágico originário na América Latina. Cães olham para nós de dentro de imensos tubos de concreto, ou de dentro de tocas que eles mesmos escavaram na terra vermelha, ou nos seguem com um olhar sonolento desde as sombras da mata. Espero vê-los até do alto das árvores, e não me surpreende quando chegamos ao edifício principal, parte armazém, parte alojamento, e encontro cachorros em prateleiras altas, olhando-nos das sombras como corujas em um celeiro. Eles ficam sob as prateleiras também, e encolhidos em armários abertos, ou espalhados por cada centímetro da varanda, que ainda não foi totalmente ocupada por uma fileira de carrinhos de bebê doados, todos com um cão parcialmente paralisado.

Por incrível que pareça, cada cachorro aqui tem nome. Todos são diferentes, trapalhões e hilários: pedaços peludos de felicidade, esqueletos de ansiedade, bolas musculosas de alegria. Há os trêmulos e desequilibrados, os robustos e confiantes, cães que mais parecem um pedaço de corda puída com cabeça e pernas, cães imponentes como Boris, velho, sábio e tranquilo, com cara de cigarro meio fumado de 15 kgs. Blanquita é um esfregão branco sujo apaixonado por Ronney, um dos funcionários, e que chora inconsolável do minuto em que ele vai embora do complexo até sua volta na manhã seguinte. Há um cachorrinho doce, que apelidei de Toco, que teve a pata direita dianteira arrancada com um facão pelo dono, depois de uma longa noite bebendo no boteco. E tem Milu, que chegou com cinomose dois anos depois de Lya ter aberto o Territorio, em 2008. Salvar um cão com cinomose, doença altamente contagiosa, não é tarefa fácil, e agora Milu, já idoso, pesa menos do que uma pluma e caminha como uma caranguejeira bêbada.

Atrás do prédio ficam os canis de uns caras bem maus – Lya conta que criaram seu próprio inferno e agora vivem nele – e dos recém chegados, que podem levar dias ou até meses para serem aceitos. Os novatos de hoje são, infelizmente, típicos – uma mãe chorosa, de tetas inchadas, largada sem sua ninhada, um belo rottweiler abandonado por pular nas pessoas ao dizer olá, e um enorme e babão vira-lata misturado de bulldog com mastiff, de quem apenas Lya pode se aproximar, pois aprendeu a odiar homens. Seu dono chegou dirigindo uma SUV caríssima, com um grande saco de comida e uma espingarda. “Fica com ele ou eu o mato”, disse o homem, que alegava, enganado, que o cão era surdo, portanto inútil.

Ao desse corredor de canis e casinhas, estende-se um longo vão de cimento, parecido com uma vala, onde um trio de nicaraguenses despejam centenas de quilos de comida todas as manhãs, desencadeando uma hierarquia quase organizada, uma sequência em quatro ondas, baseada em personalidades, até que todo mundo tenha enchido o bucho.

Observando a cena do alto de suas galochas pretas, calças cáqui e camiseta branca, está a imponente figura de Alvaro Saumet, de 47 anos, que mais parece ser o macho-alfa do Territorio. Alvaro é colombiano, e dá facilmente para imaginá-lo usando uniforme militar e comandando seus homens em uma tocaia em busca de guerrilheiros. Ele também é marido de Lya e ex-rei da lingerie da Costa Rica. Unir os pontos entre soutiens e buldogues é bem complicado.

É FÁCIL ESQUECER que a beleza tem seu preço. Como uma alquimista, Lya transformou algo feio em belo, e esta seria também a história de sua família, só que ao contrário. Há décadas, o Territorio era a chácara do avô materno, um homem baixo de pele escura – “mestiço de índio”, costumava dizer – enaltecido por sua nobreza e bondade e que se tornou um dos primeiros farmacêuticos da Costa Rica. Casou-se com a avó de Lya, famosa por sua beleza e que todos diziam se parecer com uma estrela de cinema. Mas ela tinha o traço problemático de todas as mulheres Barrantes – um coração frio e fechado. O avô de Lya amava pastores alemães, porém sua esposa, que os detestava, envenenava todos. Lya acha que os dois foram responsáveis por estragar o cérebro da sua própria (e linda) mãe.

“Nós meio que sabíamos que éramos loucos”, diz Lya

A mãe de Lya, Maria Barrantes, era uma excelente estudante. Foi enviada pelo pai para a Universidade de Toronto, onde conheceu Matthew Battle Murphy, pai de Lya, cuja família havia imigrado da Inglaterra para o Canadá após a Segunda Guerra Mundial. Matthew era biólogo; Maria, professora. Quando Lya tinha 5 anos, sua mãe saudosa decidiu trazê-la de volta à Costa Rica. Lya e o irmão mais novo, Steven, cresceram em um bairro antigo e próspero em San José, em uma casa onde o pai via a vida de forma positiva e a mãe que só enxergava o lado mau de tudo e de todos. Os pais superprotetores não permitiram a Lya ter um namorado até os 15 anos. E tampouco eram modelos de troca de carinho. Por outro lado, Lya herdou a fascinação e o amor do pai pelo mundo não-humano.

“Quem não é amado? Cobras?”, pergunta ela. “Então eu amo as cobras. Quem não é amado? Sapos? Então eu amo sapos. São essas coisas que nos mantêm sempre em frente. Tudo que eu sei sobre os animais é o quanto os amo.”

Sofrendo de um sério Transtorno do Déficit de Atenção, Lya lutou para se manter na escola. Ela estudou pedagogia na faculdade e depois se deixou a casar muito cedo com um cavalheiro perfeito de uma das melhores famílias de San José. Aos 22 anos, divorciou-se.
Então conheceu Alvaro, que, apesar de ser mais jovem do que ela, era mais maduro do que os bons vivants da alta sociedade com quem a jovem andava saindo. Alvaro era um empreendedor com uma profissão esquisita – ele contrabandeava lingerie de alta qualidade da Colômbia para a Costa Rica e vendia no mercado negro. Ele disse à amada que não poderia lhe garantir uma vida de princesa, mas começaram a morar juntos e ele acabou entrando para a legalidade e abrindo a primeira franquia de lingerie Touché na Costa Rica. Depois abriu mais duas. Lya passava seus dias trabalhando como tutora, ajudando crianças do ensino médio com suas inscrições na faculdade, coisa que ainda faz.

Não importa o quanto um cão é maltratado, ele sempre vai curtir a companhia do ser humano

Ao mesmo tempo, entretanto, seu irmão mais novo decidiu se tornar operador da crescente indústria turística da Costa Rica, vendendo pacotes de cruzeiros. Quando seu projeto começou a ir à falência, a empresa de Lya e Alvaro também começou a decair, e as fraquezas de Steven pioraram ainda mais o já volátil relacionamento dos pais. A própria Lya relata o que aconteceu a seguir:

E há um dia em que um bom homem simplesmente chega ao limite. Papai atirou nela. Era uma pessoa que não mataria nem uma mosca. Eles estavam discutindo sobre Steven. Meu pai sempre carregava um revólver no carro, pois toda semana ele precisava dirigir para as montanhas para pagar os funcionários do sítio. Naquele dia, ele buscou minha mãe depois da aula de ginástica na cidade e disse que queria ir até o sítio buscar uma roçadeira. Aí os dois começaram a discutir. Ele parou em um estacionamento, atirou nela e arrastou o corpo para o meio do pátio, na frente de todo mundo. Dirigiu até o sítio, onde limpou o banco do carro, pegou a roçadeira e foi para casa, agindo como nada houvesse acontecido.

Isso foi em 2000. No ano seguinte, o pai foi para a cadeia, onde permanece até hoje, aos 83 anos. Depois do assassinato, o irmão tentou tomar o sítio. Depois de oito anos de processo, Lya e o pai conseguiram a propriedade de volta.

Naquele momento, Lya e Alvaro já estavam encarando uma reestruturação radical. “Queríamos levar uma vida mais simples”, conta Lya. Sem conseguir comprar uma casa nas colinas, eles se mudaram para uma residência menor, na cidade. Lya já havia adotado um cachorro abandonado por um pedreiro, além de um porco. A nova casa tinha quintal, e foi ali que seu amor pelos cães tomou corpo.

“Começamos a recolher cachorros das ruas e levá-los ao veterinário”, lembra ela. “Daí me pus a pensar no que acontecia com os cachorros que resgatávamos e não podíamos cuidar. Daí decidi adotá-los.”

Passou-se um ano, e outro, e Lya já tinha uns 30 cães. No começo, não era muito problemático – não havia vizinhos –, mas daí alguém construiu no terreno atrás do deles. Naquela fase, a tolerância de Alvaro para com a paixão de Lya havia se transformado em seu próprio amor pelos cachorros, mas a situação rapidamente se tornou insustentável. Casaram-se em 8/8/2008 (a única data que Lya tinha certeza de que iria se lembrar), o sítio foi liberado pelo juiz e Alvaro sugeriu que eles levassem os cães para lá. A ideia era contratar uma família para cuidar dos animais, mas isso nunca funcionou. Então Lya e Alvaro passaram a dirigir 45 minutos até sítio quase todos os dias.

Em 2009, eles já possuíam aproximadamente 120 cachorros. Um dia ouviram falar que um grande abrigo da cidade iria fechar e que havia sido decidido que se sacrificariam 80 cães. Lya e Alvaro pegaram os cães, e dois anos depois simplesmente roubaram os cachorros do mesmo abrigo quando, enfurecida, ela descobriu que tal abrigo nunca fechara. “Nós meio que sabíamos que éramos loucos”, diz ela. “Agora tínhamos 300 cães, mas ninguém sabia de nossa existência. E não podíamos comprar mais nem um grão de ração.”

Misael Calderon durante o passeio diário

O PRIMEIRO ANJO da guarda a aparecer à porta de Lya foi uma jovem chamada Marcella Castro Wedel. Ela empurrava um carrinho de bonecas com Puppy, um minúsculo pit bull com paralisia no quadril. Solitária resgatista de cães, Marcella começou a visitar a fazenda para fotografar os cachorros de Lya e postar no Facebook. “Estávamos curtindo os cães, sem nos preocuparmos com o que acontecia do lado de fora”, conta Lya. “Mas Marcella mudou tudo.” Ela convenceu Lya de que a fazenda precisava de sua própria página no Facebook.

À medida que o Territorio começou a crescer nas redes sociais, uma das maiores agências de propaganda da Costa Rica, a Garnier BBDO, resolveu lançar uma campanha de utilidade pública voltada ao bem estar animal. Para espanto de Lya, o Territorio foi escolhido como personagem principal. A agência criou um vídeo alegre e inteligente, e cartazes nas estradas propagandeavam os vira-latas, emissoras de TV mostravam programas sobre os animais, e Lya e seus cachorros começaram a ganhar atenção no mundo inteiro. Daí o maior fabricante de comida de cachorro da Costa Rica, a Superperro, uniu-se à campanha, doando ração para cada curtida no Facebook.

“Nunca quisemos crescer”, diz Lya. “Tudo aconteceu porque aconteceu, e agora havia gente de todos os lados deixando cachorros na nossa porta. Só queríamos que os cães tivessem uma vida melhor e que as pessoas mudassem seu modo horrendo de ver os vira-latas.” Em geral, na América Central e América do Sul, os cães de rua são vistos como uma parte indesejada da paisagem, exceto por uns poucos cidadãos solidários e grupos de resgate. “Agora as pessoas estavam exibindo seus vira-latas e competindo pelo status de ter a ‘raça’ mais eclética, tema de brincadeira da campanha publicitária. Mas a campanha também causou problemas”, afirma Lya.

Uma piada popular na Costa Rica fala de um homem vendendo lagostas em dois baldes, um com o rótulo de “importada”, com tampa, e outro sem tampa, com o rótulo de “local”. Quando lhe perguntam a diferença, ele explica que não precisava botar tampa nas lagostas costarriquenhas, pois se alguma delas tentasse fugir as outras a puxariam de volta.
“Isso é bem verdade em nossa sociedade, onde as pessoas puxam para baixo qualquer um que tente subir”, conta. “Não me importo de ter um carro porcaria, ou de viver em uma casa pequena, pois minha alegria está com os cachorros.” Ela relata que quatro anos atrás “um voluntário conseguiu hackear nossa página do Facebook e fechá-la, desaparecendo com 84.000 seguidores e nos obrigando a começar de novo do zero”.

Algumas organizações ficaram bravas com as críticas pública que Lya fazia dos abrigos de animais. Outras ainda apontam que o Territorio é superlotado. “Eu particularmente acho que eles têm muitos animais”, afirma Lilian Schnog, gerente do Animal Shelter Costa Rica. “Eu nunca visitei o lugar, mas muitos estudantes de veterinária vieram ao nosso abrigo em prantos, dizendo que os animais ali têm doenças. Eu não acho que um abrigo possa ser bem dirigido sem um veterinário residente.” A essas declarações, Lya responde que um veterinário da Senasa (Serviço Nacional de Saúde Animal) visita o Territorio mensalmente para checar a saúde dos animais.

As brigas constantes com os vizinhos são especialmente desalentadoras. O Territorio não tem cercas fechadas, e às vezes um cachorro escapa morro abaixo e acaba sendo envenenado na cidade. Vândalos já destruíram tubulações para evitar que a água chegasse até os cachorros. Recentemente, Alvaro e sua equipe notaram abutres sobrevoando um dos morros e foram até lá para ver o que estava acontecendo. Descobriram que cinco dos oito cavalos da fazenda haviam sido mortos por caçadores para que a carne fosse vendida a fábricas ilegais de linguiça.

Os problemas sanitários e de lixo também são inevitáveis (após nossa primeira visita, minha esposa pegou o celular de dentro da bolsa e, inexplicavelmente, encontrou um misterioso fragmento de cocô na tela). A limpeza é um trabalho hercúleo, geralmente realizado por trabalhadores nicaraguenses, que retiram os excrementos e jogam tudo em sacos de ração vazios. Os sacos são levados ao lixão municipal, e Lya tem um recibo para confirmar a transação.

Diz ela que os vizinhos alegam que “contaminamos a terra com nossa merda, e as águas subterrâneas com nossa urina. Ah! Então eu pergunto se as vacas deles não mijam no campo? Mas daí eu precisaria obter provas legais. Custa milhares de dólares para conseguir comprovação científica que satisfaça a Senasa. E aqui você é culpado até que se prove o contrário. Mas sempre encontramos anjos nos momentos mais obscuros.”

Um dia, uma senhora que seguia a página do Territorio no Facebook entrou em contato com Lya, oferecendo os serviços de engenheira ambiental da sua filha, sem custos. A filha conseguiu comprovar que o aquífero da montanha estava limpo. “Não há nada que nossos vizinhos possam fazer”, diz Lya. “Eles já tentaram de tudo. Agora o problema é o trânsito: eles alegam que estamos danificando a estrada.” Verdade ou não, a estradinha que atravessa o bairro e leva até a fazenda fica intransitável quando o Territorio abre os portões para o público. “Quando as pessoas perguntam o porquê de eu passar por essa dificuldade toda, respondo que é porque estamos fazendo a coisa correta, e os abrigos convencionais não são a solução.”

Não se pode questionar a sobrecarga de tristeza, sofrimento e solidão no mundo dos abrigos. Veja as propagandas tristes das associações de proteção aos animais mundo afora, com imagens miseráveis e uma narração fúnebre, tão deprimente que dá vontade de se matar. No Territorio, não. Lá todos estão sempre sorrindo.

Alvaro Saumet durante o passeio diário

ESTAMOS SUBINDO a montanha com os cachorros, através do pasto, da mata e da floresta, esperando que a chuva da tarde ainda demore mais uma hora. Minha esposa segue à frente com Alvaro e Daniel, um dos funcionários locais, enquanto eu e a Lya caminhamos atrás com a matilha principal, hordas rebeldes espalhadas ao nosso lado como um rio de pelos eufóricos morro acima. De lá se tem uma vista maravilhosa, ainda que menor, como animais selvagens nas planícies do Serengeti. A não ser, é claro, que você não goste de cachorros. Lya acha que “se você conseguir se agarrar aos seus problemas mesmo agarrado a um cachorro, seus problemas são maiores do que você pensa”. Ela prossegue: “Nós comemos o pão que o diabo amassou com nossos cachorros, mas é assim que se cresce. Se você não consegue se conectar com um cachorro, então tem algo de muito errado contigo”.

Do ponto de vista de Lya, ninguém é mais perigoso do que alguém capaz de ferir um animal. É um assunto que gera críticas sobre ela, sobre o sucesso da Costa Rica como um país eco-progressista, enquanto suas leis a respeito do bem-estar animal parecem não se importar com a forma como você trata um animal, desde que você recolha sua sujeira. O descumprimento beneficia a todos, desde a indústria da carne e brigas de galo até caçadores que tiram preguiças da floresta. “As brigas de cães são ilegais, e qual é a punição? Nada”, diz Lya. “Chamamos esta lei de Ley de Mierda. Imprimimos a lei em sacolas de cocô de cachorro, colocamos cocô nas sacolas e levamos ao governo em um protesto.” Finalmente, após anos de promessas de reforma, a legislação nacional está próxima de aprovar um referendo para reforçar a aplicação da lei.

Enquanto subimos a encosta da montanha, Alvaro e seus muchachos vão na frente, correndo em direção às nuvens. Podem ser qualificados não só como atletas extremos, mas também como os melhores especialistas do mundo em gestão de revolta. De volta ao complexo, centenas de metros abaixo – local que às vezes mais parece um terminal rodoviário lotado, onde os passageiros são cachorros empolgados –, o visitante rapidamente percebe que para ser funcionário do Territorio você precisa ter voz forte e autoritária. Sempre há alguém gritando: “Não faça isso!” Quando a tensão se transforma em confronto, Alvaro ou algum dos muchachos mais próximos entra em ação, gritando: “Vamos, vamos, vamos!”, correndo morro acima. A briga inicial desaparece, e dezenas de cachorros fogem da confusão para galopar junto com eles.

A aproximadamente 150 metros acima, Alvaro, Daniel, minha esposa e mais 300 melhores amigos fazem uma pausa para para descansar. Acima deles, nuvens negras trovejam de o vulcão Poás. Lya e eu não escutamos o comando de meia-volta, mas de repente a matilha de cima inverte o curso e desce em desabalada carreira, em direção aos nossos 200 cães. Em poucos minutos, eles se juntam em alvoroço. Ao se aproximar de nós, Daniel tem um impulso de se jogar no chão, e em poucos segundos fica invisível sob um tsunami de amor canino.

Cada cachorro está determinado a lamber o rosto sorridente de Daniel. Só que não há como cada cachorro lamber o rosto sorridente de Daniel. De repente, surge uma briga, e assistimos boquiabertos a um louco preto e branco, um Doberman anão, voar do bolo como um foguete e morder a panturrilha da minha esposa, para depois sair correndo com cara de culpado. “Seu merdinha!” Lya e minha esposa ficam ultrajadas, mas o ataque foi tão cômico e desmotivado que tivemos que nos conter para não rir. Após todos estes anos, Lya foi mordida tantas vezes que diz que não se impressiona mais com nada.

Independentemente do quão mal tenham sido tratados os cachorros antes de chegar aqui, independentemente de serem sarnentos, eles ainda têm o desejo de estar com gente, por isso Lya e Alvaro tiveram a ideia das caminhadas públicas. Os cachorros, até mesmo os malfeitores, são seres coletivos exuberantes.

Os cachorros passeando pela propriedade

ANTES DA FAMA do Territorio de Zaguates espalhar-se, Lya e Alvaro adotavam três cachorros por mês, taxa que foi quadruplicada desde então. A Superperro desenvolveu o app DogMates, que ajuda a juntar pessoas com vira-latas em busca de um lar, mas Lya e Alvaro são muito preciosistas com relação a quem pode levar seus cachorros. Antes de concordarem com uma adoção, querem conhecer os donos potenciais e fazem um acompanhamento um mês depois.

Em nosso primeiro dia de visita aos zaguates, conhecemos Amanda, uma jovem de São Francisco que observa os animais com sua sogra, que caiu de amores por um cachorro em uma visita anterior e queria levá-lo para casa. Tentar imaginar o destino daquele cachorro parecia impossível, mas Lya tem muitas histórias com final feliz. Ela pega o telefone e me mostra a foto de um dos seus cachorros, Chifrigo, passeando por Miami com dois gatos.

Uma vira-latas malvada, misturada de chow chow, conhecida como El Chapo em homenagem ao conhecido narcotraficante, agora se chama Kate. Ficou muito boazinha.
Mas a probabilidade de que as centenas de outros cachorros será adotada é quase zero, o que faz surgir uma pergunta existencial: “E daí?”. A diferença entre um cachorro de um abrigo tremendo no canto de um canil e os zaguates de Lya correndo soltos nas pradarias idílicas do paraíso canino é profunda. “Você não precisa adotá-los”, diz Lya. “Mas pelo menos pode ser bom para eles.” Essa filosofia se aplica a qualquer tipo de refugiado, humano ou não humano, e nesse caso apenas Lya e Alvaro sabem o real custo da bondade. “Ontem eu prometi que não recolheria mais nenhum cachorro”, diz Alvaro. “Estou cansado. Mas daí você fica sabendo das coisas que aconteceram com eles, e não dá para tolerar.” Às vezes não há dinheiro para pagar os funcionários no final do mês.

Apenas seres humanos, diz Lya, conseguem domesticar um animal e depois ignorá-lo. Nunca se exige dos zaguates que deixem de ser cachorros. Os cães recebem comida e amizade, sem nenhum comprometimento a sua liberdade. É difícil dizer se, sem as devidas contribuições, o Territorio conseguiria oferecer um modelo sustentável com suas regras, ou se isso poderia ser reproduzido em outros países. Independentemente dessas questões, o Reino dos Vira-latas existe como uma visão real de um mundo melhor e mais humano.
Um dia antes de chegarmos lá, passamos a noite em um resort isolado no magnífico litoral pacífico da Costa Rica. Durante o jantar no restaurante externo do resort, eu observei um pequeno cachorro preto parado ao lado da mesa de um jovem casal, pacientemente à espera de uma sobra de comida que nunca recebeu. Talvez a cadelinha tenha percebido que reprovei seu detector de gente ruim, quando finalmente desistiu e veio até nossa mesa, onde ganhou na loteria do cachorro comilão. Minha esposa se perguntava qual seria seu nome, e eu disse que deveria ser Negrita. A garçonete chegou e confirmou o nome – Negra, mas não tão pequenina, pois o staff do hotel, quando sentava para comer, sempre fazia um prato para ela também. A cadela vai e vem quando quer, conta a garçonete, mas na maioria das noites segue os hóspedes até o quarto, e às vezes é convidada para dormir com eles. E foi assim pela manhã. Acordei e encontrei Negra dormindo no sofá e minha esposa lhe dando pão para comer.
Havíamos encontrado a única zaguate da Costa Rica que não precisava de Lya e Alvaro, com seu amor sem fronteiras. Mesmo assim, não consegui evitar de pensar que Negra estava perdendo uma festança.







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