As infinitas descobertas de uma road trip pelo Marrocos

Por Raul Rabaca*

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O vilarejo montanhoso de Chefchaouen, também conhecido como a “cidade azul”. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

Alguma coisa sempre atraiu minha atenção para o Marrocos. Talvez os cenários em Star Wars ou as histórias que ouvi quando minha mãe viajou sozinha para o país, quando tinha 20 anos. Depois de pesquisar um pouco mais, percebi que qualquer um ficaria maravilhado com as oportunidades de aventura que o Marrocos oferece: os choques culturais, as histórias dos nômades que habitavam a região, a magnitude de pisar no deserto do Saara… sabia que algum dia pisaria neste país.

As coisas que te foram prometidas parecem sempre encontrar um jeito de te alcançar, e após um tempo morando na Europa, senti que era o momento de explorar novas perspectivas, cores, cheiros e narrativas. Com uma passagem somente de ida na mão, embarquei para pisar no continente africano pela segunda vez. O plano? Me deixar surpreender pelo que um país novo tem a oferecer e seguir os caminhos que me forem oferecidos.

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Desembarquei em Marrakesh no dia 12 de dezembro e, ao entrar no táxi em direção ao centro da cidade, já senti na pele um privilégio que somente os brasileiros entendem: é impressionante a capacidade que o nosso país tem de abrir um sorriso em rostos alheios. Desde o momento em que desci do táxi no meio da praça que é o coração da cidade, a Jemaa El-Fna, recebi um intensivo do que é a cultura marroquina. É verdade que Marrakech é a capital turística do Marrocos e que nela se concentra uma quantidade avassaladora de vendedores à procura de fazer qualquer negócio com as pessoas que passam pelas suas lojas, e alguns podem sentir uma sobrecarga ao andar pelas ruas estreitas, desviando de vendedores insistentes, evitando os famosos golpes “pega-turistas”, enquanto tentam absorver tudo que a cidade tem a dizer.

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Os coloridos tapetes de Marrakesh: feitos com uma técnica passada de geração em geração. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

Marrakesh não fala somente com a voz, mas com todos os sentidos. Os cheiros dos temperos na rua, o som das flautas que comandam as cobras, o gosto de uma comida que, muitas vezes, é melhor não saber a origem. Por mais que tudo às vezes pareça uma grande encenação para agradar os turistas que passam por ali, andar por Marrakesh é um modo de juntar várias peças da cultura marroquina em um único lugar. Admito que eu estava sob o efeito fantasioso de estar pisando em um lugar que sonhei visitar durante muito tempo, e entendi a função que a cidade se propõe a cumprir.

Pontos turísticos nunca foram o meu forte. Tirar uma foto na frente do Coliseu ou da Torre Eiffel tem seu valor, mas não acho que a viagem deve se moldar ao redor disso. Marrakesh conta com diversos pontos importantes historicamente, como o Palácio Badii e o Palácio Bahia, que eram construções feitas pelos governantes da época para impressionar reis e visitantes importantes, a Madrassa Ben Youssef, uma antiga escola que demonstra a importância que o país dava para a educação, e o Jardim Majorelle, que foi casa do estilista Yves Saint Laurent e é considerado um dos jardins com a maior biodiversidade da época. Todas essas visitas podem ter seu espaço em qualquer roteiro, mas a verdadeira beleza de Marrakesh está nas entrelinhas. 

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As históricas ruas de Marrakesh. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

Se eu tivesse um objetivo nessa viagem, seria passar uma noite no deserto do Saara. São inúmeras opções de tours saindo de Marrakech, oferecendo paradas rápidas em algumas cidades no caminho, e propondo uma “verdadeira experiência” pelo território marroquino. Apesar de essa última frase ser exatamente o que eu queria, eu sabia que não conseguiria isso entrando em uma minivan e pulando de cidade em cidade com pausas cronometradas para fotos e com restaurantes pré-selecionados. Depois de três dias em Marrakesh, parti em um ônibus local, com três horas de viagem até minha próxima cidade, onde passaria também dois dias: Ouarzazate.

O país é dividido longitudinalmente pela cordilheira Atlas, que conta com a maior montanha do norte da África, o Toubkal (4.167 m), e diversos picos nevados, que tornam a área um destino desejado para práticas de montanhismo, esqui e snowboard – sim, tem bastante neve na África. Ouarzazate fica no sentido oposto da cordilheira Atlas, quando comparada com a minha cidade de partida, e adota uma característica que é encontrada em todas as cidades dessa região: a cor amarela.

Durante milênios, os berberes eram os habitantes predominantes do norte da África, ocupando regiões que hoje correspondem ao Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Mali e Níger. Durante a invasão árabe e com a chegada do islamismo no século VII, muito da cultura berbere foi trocada pela nova, mas algumas regiões do Marrocos seguem com características dos povos originais do deserto, especialmente próximo das montanhas. A fisionomia da população é diferente, a língua é outra, assim como a relação com os turistas e a arquitetura das cidades. As cidades berberes se concentravam em regiões estratégicas, próximas de fontes de água e protegidas pelas montanhas.

Os chamados ksar e kasbahs eram cidades feitas de barro, areia e madeira, envoltas por uma muralha para proteger contra ataques de outras tribos, formando uma silhueta que se torna bastante reconhecível quando vista de fora. A kasbah de Ouarzazate é a mais famosa de todo o país, pois foi cenário para a gravação de diversos filmes e séries, como Gladiador, Lawrence das Arábias e Game of Thrones. A antiga cidade ainda abriga alguns moradores, mas hoje serve muito mais como um museu aberto, com lojas de artesãos locais em todas as esquinas.

Todra Gorges, um cânion formado ao redor do rio Todra e parada obrigatória para quem gosta de trilha. Foto: Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

Segui meu caminho em direção ao deserto, e para evitar um trajeto direto de 8 horas, decidi fazer mais uma escala de alguns dias em uma outra cidade berbere, ainda mais intocada, menos turística, cada vez mais real. Tinghir é um ponto de parada para aventureiros que gostam de trilhas, escaladores e exploradores, por estar perto das Todra Gorges, um cânion que foi formado ao redor do rio Todra.

O pouco turismo da região é voltado para trilheiros, o que traz uma energia familiar para a cidade. De resto, encontrei as mesmas casas de barro e mercados onde as comidas e animais são expostos de maneira questionável. Mas aqui cada um vive sua vida, sem a gritaria das ruas de Marrakech, trocando a insistência e agressividade dos vendedores por curiosidade, de um povo que gosta de ver caras novas na sua cidade, que quer mostrar as coisas que faz, desde braceletes e aneis que usam a prata das minas ao redor da cidade até os tapetes que são feitos com uma técnica passada de geração em geração.

No Marrocos, a cerimônia do chá é mais do que apenas uma refeição; é um ato cultural de hospitalidade. O chá de hortelã,  é preparado com grande cuidado e servido como uma boas vindas para aqueles que entram simpaticamente em lojas, e que se torna uma oportunidade incrível de se conectar com a cultura e hábitos dos locais. E já que estamos nesse assunto, a comunicação aqui é muito interessante porque é difícil dizer quais são as línguas oficiais.

Senhor bebendo chá. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

O idioma berber é o mais antigo e falado somente pelos descendentes diretos do povo nômade. O árabe foi implementado no século VII e pode-se dizer que é a língua mais aceita, mas percebi que regiões diferentes do país falam versões diferentes da língua. Por conta da colonização francesa, que aconteceu entre 1912 e 1956, muitos aprendem a língua na escola, além do inglês e espanhol, que muitos conseguem falar graças à interação com os turistas. “Aprendi na escola da vida”, foi o que muitos me responderam.

Grandes cânions formam a paisagem deste pedaço do Marrocos. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.
Cidade nas montanhas. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

O primeiro objetivo da viagem estava cada vez mais perto. Depois de mais 3 dias nessa pequena cidade rodeada de cânions e 5 horas em outro ônibus, cheguei em Merzouga, uma das cidades que servem de entrada para o Saara. A decisão desse trecho foi importante, pois a outra opção, Zagora, oferece uma experiência diferente, com lados bons e ruins.

A primeira opção tem um cenário mais “esperado” de um deserto: dunas de areia gigantescas, como a Erg Chebbi, a maior duna do Marrocos, que atrai mais turistas e é casa de alguns acampamentos de luxo. A segunda conta com uma experiência mais isolada, conectada com as raízes do povo berbere, mas tem um terreno mais composto por rochas. Afinal, o deserto tem muitas caras e formas.

Merzouga, apesar de ser mais turística, conta apenas com uma rua, com vista constante para as dunas, e onde na faixa de pedestres atravessam também camelos. Para entrar de fato no deserto e passar uma noite, basta escolher um acampamento, seja por meio de aplicativos de hospedagem ou sendo abordado por um dos vários locais que oferecem suas acomodações, quadriciclos para aluguel, passeios de camelo e outras atividades.

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A turística e pacata Merzouga. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.
As infinitas dunas do deserto marroquino. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.
Camelos cortam as areias. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.
Acampamento no deserto. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

O deserto é mágico, e não à toa que ele é inspiração e palco para tantas lendas e histórias. Subir em um camelo e andar por 2 horas até chegar em um acampamento, passar uma noite olhando para um céu quase branco de tantas estrelas, sentar ao redor de uma fogueira com os locais e ouvir as percepções desse povo que valoriza tanto a liberdade, passar um dia inteiro sentado no topo de uma duna, admirando as mudanças do vento, a areia na pele, o movimento do sol, os círculos que os gaviões fazem no ar. Essas são experiências que ficam marcadas. Minhas duas noites no Saara passaram rápido, mas duraram uma eternidade ao mesmo tempo.

Parti em direção ao norte do país, estava cada vez mais decidido a passar a virada do ano na praia, coisa que eu havia me prometido fazer desde o último réveillon. Apesar de ainda ter 9 dias até o fim de 2024, havia algumas coisas que eu queria ver no caminho, sempre mantendo a filosofia de viajar devagar, com tempo para absorver o que cada lugar tem a oferecer. Cheguei em Fès na véspera de Natal.

A capital cultural do país e uma das mais importantes historicamente tem muito a dizer. As cidades marroquinas são geralmente divididas em áreas: a Medina, região mais antiga e fortificada, onde a entrada de carros é proibida e os mercados locais tomam conta das infinitas ruelas, e a parte nova da cidade, onde se concentram alguns edifícios, ruas mais largas e que têm um pouco menos de identidade. A Medina de Fès é a maior área restrita a pedestres do mundo, e é impossível entender ou seguir qualquer sinalização lá dentro. Achar o hostel já é uma aventura por si só.

A universidade mais antiga do mundo fica em Fès, capital cultural do Marrocos. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.
Artesão de tapetes em Fès. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.
Interior da Medina. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

A casa da universidade mais antiga do mundo que segue em funcionamento e de diversos curtumes, a cidade se assemelha à Marrakesh em relação ao número de pessoas nas ruas e à constante abordagem de vendedores durante qualquer caminhada pela cidade. Mas em contrapartida, se nota facilmente que ali as coisas são mais autênticas do que na capital turística. Os tapetes são de melhor qualidade, as cerâmicas são feitas na rua pelos próprios vendedores, a comida tem gostos mais específicos. Parece uma versão melhorada, original, de Marrakech, com uma cultura mais específica, ao invés do mix que existe na cidade mais famosa do país.

Cada cidade que visitei, apesar de relativamente próximas, tem características e personalidades muito distintas. O caos de Marrakesh, conhecida também como “cidade vermelha”; o tom amarelado e os kashbas de Ouarzazate e Tinghir; os labirintos da Medina de Fès; e agora estava na vez de Chefchaouen, a “cidade azul”, um vilarejo no meio das montanhas, onde o laranja do deserto é trocado pelo verde das árvores ao redor, e onde as casas azuis, pintadas pelos judeus que foram expulsos da Espanha em 1492, e moldam uma cidade tranquila, sem pressa. Uma boa cidade para deixar o tempo passar, e se deixar desacelerar da frenesi das cidades marroquinas.

Crianças brincam na cidade azul de Chefchaouen. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.
Cenário de filme em Ouarzazate. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

O ano novo estava se aproximando, e no dia 30/12, parti para Tânger, a cidade que é considerada a porta de entrada para a África, do ponto de vista europeu. Isso porque os barcos que cruzam o estreito de Gibraltar, vindo da Espanha, chegam ali, e trouxeram com eles toda a influência espanhola no norte do país desde o século XV, e foi acentuada ainda mais durante o Protetorado Espanhol, de 1912 a 1956. Essa influência ainda pode ser sentida, e chegar na cidade depois de 15 dias no Marrocos traz a sensação de estar no sul da Espanha, pela diferença na arquitetura dos prédios, limpeza da cidade, tamanho das ruas. Praças arborizadas no meio da cidade e ciclovias na beira-mar, Tânger é o mais próximo de uma cidade europeia que se pode encontrar no Marrocos.

Por ser um ponto neutro durante as Grandes Guerras, Tânger recebeu muitos artistas espanhois e portugueses durante a época, o que trouxe uma cultura rica para a cidade, que é cheia de cafés, salas de cinema e lojas de discos. Uma cidade boêmia que alivia o choque cultural de quem chega de barco.

A virada do ano novo fora do Brasil é diferente, e principalmente nos países acima da linha do Equador, essa data não significa uma celebração do mesmo jeito que nós fazemos. O clima frio atrapalha as festas e não estimula que as pessoas saiam de casa para comemorar, quem dirá ir à praia. Eu sabia disso quando cheguei em Tânger, mas estava feliz por ter cumprido a minha segunda missão da viagem: passar o ano novo na praia. A rua estava movimentada à noite, pessoas na rua, perto da praia, e quando virou a meia-noite, ouvi alguns gritos de comemoração, uns fogos de artifício tímidos, e no minuto seguinte todos já estavam de volta fazendo o que quer que fosse. Vida normal, nada mudou.

Já que passei a dividir a viagem em partes, o ano novo marcou o começo de uma terceira: descer o litoral até chegar às praias do sul, que pelas minhas pesquisas e recomendações durante toda a viagem, é um lugar que todos se apaixonam. Mais 7 horas de ônibus me levaram até Casablanca, cidade famosa pelo filme de 1942, e pela imponente mesquita à beira-mar. A mesquita Mesquita Hassan II é a maior do Marrocos, e a maior do mundo que permite a entrada de não muçulmanos, e por isso aproveitei meu único dia na cidade para conhecer o lugar por dentro, que é um espetáculo arquitetônico. De resto, a cidade, apesar de ser considerada moderna, se apresentou suja e desorganizada, nem um pouco convidativa para passar mais de um dia.

Durante meu tempo aqui, tive que responder algumas vezes à pergunta: “Raul, mas até quando você vai ficar no Marrocos?” E minha resposta sempre foi algo na linha de que ficaria até sentir que aprendi o que tinha que aprender, e que vi o que tinha que ver. As cidades até aqui me trouxeram uma percepção ampla do funcionamento das coisas no país, o deserto me contou as histórias da natureza, e as pessoas compartilharam comigo seu modo de viver. Mas existem alguns lugares que nos prendem, e que nos fazem querer aplicar tudo aquilo que aprendemos. A visão do turista é sempre filtrada.

Cheguei em Essaouira, cidade portuária e muito famosa pelos esportes aquáticos praticados na região, e no momento em que pisei para fora do ônibus, parecia ter perdido a noção do tempo. O mercado local, com peixes frescos pescados manualmente, é um open bar para qualquer amante de cultura, gastronomia e fotografia.

A praia é dividida com camelos e cavalos que passeiam pela orla, servindo também como atração turística. Quando a condição está ruim para o surf, provavelmente estará boa para o kitesurf, esporte que aprendi com meu pai quando morava em Florianópolis. Em resumo, tudo o que uma pessoa poderia querer. Com uma câmera na mão e muitas escolas de surf ao redor, não foi difícil encontrar uma oportunidade que me proporcionasse um lugar para dormir, algo para comer e equipamentos para praticar meus hobbies aquáticos. Em alguns momentos da vida não precisamos de nada além disso.

Sinto que Essaouira tem mais a me ensinar, que as praias ao redor devem ser exploradas, e que a cultura dos domadores de cavalos e surfistas da região podem render belas histórias. E no final das contas, viajamos pelas histórias que escutamos no caminho, e meu dever se tornou compartilhar o que vejo, escuto e sinto para quem quiser saber um pouco mais sobre lugares distantes.

Essaouira, uma cidade com lindos visuais e muita história. Foto: Raul Rabaca / @raulrabaca.

Observando as marés no porto de Essaouira. Foto: Arquivo Pessoal.

*Raul Rabaca é fotógrafo e filmmaker. Para acompanhar suas aventuras, siga o perfil @raulrabaca no Instagram.