Por Mario Mele
THAÍS PASSOU batido por mim no balcão e foi direto à última mesa. Eu nunca a tinha visto pessoalmente, mas os passos firmes eram um indicativo de que se tratava dela: em julho, Thaís Pegoraro, de 37 anos, completou o Projeto Sete Cumes – um conhecido desafio no montanhismo que consiste em escalar o maior pico de cada um dos sete continentes –, tornando- se também a brasileira (entre homens e mulheres) que mais rápido já fez isso: um ano e nove dias no total. Em pouco tempo, ela passou de uma anônima no montanhismo para dona de um recorde nacional considerável em um esporte que ela começou a praticar há apenas dois anos. Thaís virou manchete em sites de escalada e ganhou espaço nos jornais.
Poucos dias depois de voltar do último de seus sete cumes – a Pirâmide Carstensz (4.884 metros), na Indonésia, o ponto culminante da Oceania –, ela encontrou comigo em um café em São Paulo. Naquela manhã de segunda-feira, Thaís chegou pontualmente. Em traje social, ela está vestida bem diferente das fotos dos cumes, apesar de continuar sorridente. E parece radiante como alguém que acabou de reconquistar a liberdade e vê agora o mundo se abrir à sua frente. É mais ou menos isso o que está acontecendo: desde janeiro de 2015, durante uma tentativa fracassada de escalar o Aconcágua (a montanha mais alta da América do Sul, com 6.962 metros, que seria seu primeiro desafio dos Sete Cumes), na Argentina, sua vida tem sido um cronograma apertado. Uma somatória de treinos duros, viagens longas, aclimatações complicadas e, claro, escaladas em gelo, além do trabalho de coaching, que não deixou de exercer nos momentos que ficava no Brasil, na entressafra das montanhas.
Coaching é uma profissão em que o instrutor (o coach, em inglês) ajuda seu cliente a evoluir em alguma área da vida, que pode ser de “relacionamento” a “emagrecimento”. Thaís é especializada em “carreira” e “negócios”. “Não foi um ano sabático porque continuei trabalhando igual a uma condenada”, enfatiza. Escalar os Sete Cumes era o que ela tinha planejado como prioridade. O resto ia se encaixando: se tinha oito semanas no Brasil até ir para a próxima montanha, preenchia esse tempo com uma agenda de trabalhos. Segundo ela, foi um período de dedicação sobre- humana, em que não teve tempo nem para a vida social. “Negligenciei família e amigos. Apareceram pessoas interessantes, mas que homem no Brasil namoraria uma montanhista? Você está mais ausente que presente”, diz. Pelo menos ela já estava mentalmente preparada para aquilo. “Quando você se propõe a ser coach, é para ajudar as pessoas a mudarem de patamar e, portanto, você também tem que começar a viver com coerência e estar preparado para isso. Caso contrário, será apenas um papagaio de pirata que fica repetindo conceitos aos outros”, explica.
Há pouco mais de 15 anos, Thaís correu uma maratona, porém naquela época não curtia nada que fosse por obrigação. Durante a fase de treinamento, ela não se importava em sair à noite para beber com os amigos. Só que no dia seguinte acordava às cinco da manhã para correr 20 km de ressaca. “Eu ficava quebrada. Você começa a perceber que é impossível ser coerente dessa forma”, admite hoje, mostrando que aprendeu com os próprios erros.
Ao decidir que faria os Sete Cumes, ela sabia que foco ainda era uma de suas maiores fraquezas. Por outro lado, tinha exemplos de que ele pode ser o sinônimo de liberdade. Foi isso o que ela sentiu quando velejou sozinha de kitesurf pela primeira vez, depois de cansar de engolir água. “Quando fiquei em pé na prancha, senti a conexão com o tempo e o espaço”, descreve. “Nessas horas você não está pensando na lista do supermercado nem no cara que não te ligou. O tempo cronológico perde totalmente o significado.”
O montanhista Carlos Santalena, 30 anos, que a recebeu na agência Grade 6 para ouvir sobre o seu plano de subir as maiores montanhas de cada continente, não botou muita fé quando ela terminou a conversa pedindo um orçamento. “Porém a cada escalada fui descobrindo que Thaís é uma mulher de pura fibra, que passou por cima de obstáculos e paradigmas para conhecer mais sobre si mesma através do esporte”, diz ele, o sul-americano mais jovem a concluir os Sete Cumes e, ironicamente, o mais rápido até então.
Carlos esteve com Thaís em cinco das sete montanhas. Só não compareceu ao Maciço Vinson (4.892 metros), o cume da Antártida, e ao Kilimanjaro (5.895 metros), o teto da África. “No começo era difícil imaginar aquela mulher magrinha na montanha, onde as máscaras caem, mas ela foi autêntica para vencer seus medos sem perder a conexão com a natureza.”
A DECISÃO DE FAZER os Sete Cumes foi o desenrolar do antigo sonho que Thaís tinha de escalar o Everest. Em Bauru (SP), sua cidade natal, em uma época que se vendiam enciclopédias de porta em porta, ela viu o verbete “Everest” e nunca mais se esqueceu. Essa é a única explicação que ela encontra para seu amor pelas montanhas – uma paixão que passou anos adormecida, mas sempre viva. “Bauru é uma planície quente, sem nenhum morrinho que pudesse despertar meu interesse pelo montanhismo”, diz Thaís.
O sonho de infância voltou à tona em um curso de coaching que ela fez em 2014, 25 anos depois de saber da existência do Everest por meio das enciclopédias. Em uma espécie de dinâmica de grupo, Thaís foi cobaia de um exercício cujo objetivo era resgatar coisas que são importantes em sua vida, mesmo que seja algo que ficou esquecido no passado, incompleto, ou que mal teve um começo. O exercício é se enxergar no momento da conclusão do tal sonho e, então, viver a história de trás para frente. É um jeito de se certificar que se trata de algo possível. A regressão mal começou e Thaís já se viu no topo do Everest. “Vira e mexe alguém que estava presente naquele curso me escreve no Facebook lembrando desse episódio”, diz. “Pode parecer batido, mas digo sempre ‘se o seu Everest é fazer aulas de dança de terça e quinta à noite para vencer a timidez, vá em frente’.”
Thaís escolheu o montanhismo pela riqueza de experiências. Ao se tornar coach, Thaís criou a empresa S.E.T.E, cujo significado é “Superação com Experiências que se Transformam em Ensino”. Foco, disciplina e planejamento eram qualidades que ainda podia aprimorar, por isso ela foi sua primeira cliente. “O ser humano guarda entre 80% e 90% daquilo que vive em comparação a 10% a 20% do que ouve ou vê.” Em outras palavras, chega uma hora em que é preciso experimentar.
Para entrar no clima, ela fez um curso de dois meses de escalada em rocha no Rio de Janeiro, onde mora atualmente, mas achou aquilo muito fora do contexto das expedições de alta montanha. “Percebi que existe uma rixa de conceitos. O escalador de rocha chega de bicicleta à base da via, não há grandes investimentos. E parece comum ele questionar sobre os motivos que levam montanhistas a gastar uma grana naqueles equipamentos caros para pisar em ambientes extremos.”
O próximo passo foi testar a adaptação na escalada em gelo, o estilo que a ajudaria a subir o Everest. Fisiologicamente, não é todo mundo que se habitua à altitude e, para saber como se sairia, Thaís fechou um curso que aconteceria na Bolívia com a mesma Grade 6 de Carlos Santalena. Foi surpreendente, com três montanhas em duas semanas: Huayna Potosí (6.088 metros), Pequeno Alpamayo (5.425 metros) e Tarija (5.200 metros). “Minha aclimatação foi relativamente boa e, além disso, amei a sensação de estar isolada no gelo. Esse esporte não é 100% seguro, é como uma aventura real deve ser.”
Em janeiro de 2015, pensando estar pronta para o Aconcágua, partiu confiante para a primeira montanha de seu projeto Sete Cumes. “Achei que estava preparada para o Aconcágua”, diz. Isso até conhecer o mirante do abismo. Uma inesperada dor de barriga a obrigou a ficar para trás do grupo e, quando já estava aliviada, resolveu correr para encontrá-lo. “Só que o meu crampom enroscou na calça e eu tropecei , dando uma cambalhota e parando na beira de um precipício.” Era mais uma lição que ela aprendia na prática: a de que acidentes fatais podem acontecer na montanha se você vacilar por alguns segundos.
Imediatamente Thaís foi tomada pela adrenalina, que fez suas pernas tremerem pelas próximas quatro horas. E mesmo dominando técnicas de concentração, não conseguiu “virar a chave” para retomar o equilíbrio, embora continuasse andando em direção ao cume. “Quando eu estava a 300 metros do topo do Aconcágua, o guia local que me acompanhava disse que tínhamos duas horas para chegar até lá e nos preparar para a descida”, lembra. Ela olhou para o alto e pensou duas vezes antes de concluir que a exaustão era mais forte naquele momento. “Chegar ao cume não seria um problema, mas eu queria voltar inteira, sem ninguém me carregando nem precisando tomar injeção de dexametasona”, conta, referindo-se ao medicamento usado para reverter os sintomas do mal da montanha.
Com a decisão de retornar antes de chegar ao cume, Thaís ganhou o apoio dos pais e do irmão, que até então achavam que ela, que nunca foi adepta de esportes radicais, estava ficando louca por querer escalar montanhas de altitude. “Eles finalmente perceberam que eu tenho limites, que estava consciente do que estava fazendo.”
Já Thaís percebeu que mil metros fazem toda a diferença no ar rarefeito. A altitude máxima que ela tinha chegado até então eram os 6.000 e poucos metros do Huayna Potosí, sendo que o Aconcágua beira os 7.000. “Eu ainda descobriria que, quando você atinge os 8.000, é outro esporte.” Resumindo, era preciso treinar muito se quisesse realmente escalar o Everest (8.848 metros), o topo da lista dos Sete Cumes.
Ao voltar para o Brasil, Thaís contratou o preparador físico e fisiologista Anderson Brandão, que ela conheceu em um de seus cursos de coaching. Anderson era inexperiente na preparação de atletas para a alta montanha, mas abraçou o desafio depois de um estudo de caso em que chegou a uma conclusão: especificidade. “Treinos meramente aeróbicos, como de natação ou de corrida, não servem para nada para quem vai escalar no gelo”, diz Thaís, que passou a subir escadas com caneleiras de 5 kg em cada perna e a usar uma mochila de 20 kg nas costas. Exercícios de agachamento para fortalecer as pernas e a região da lombar também ganharam prioridade sobre a corrida. “Eu precisava de mais potência, força e resistência”, considera.
O ACONCÁGUA JÁ TINHA DADO o recado pessoalmente. “Menina, você se enganou se estava pensando que seria fácil chegar até aqui”, interpretou Thaís, que em junho de 2015, menos de seis meses após o fracasso naquela montanha, chegava mais cascuda ao Monte Denali (6.190 metros), no Alasca. “O Carlos [Santalena] havia organizado uma expedição privada e me convidou, pensando que pudesse ser uma boa oportunidade para o meu projeto.”
Um pouco devido ao instinto conservacionista dos norte-americanos (expedições comerciais são proibidas ali), um pouco por conta da localização afastada, o Denali é uma montanha realmente selvagem, sem estrutura de portadores ou acampamentos avançados. Quem não está hábil para carregar a própria bagagem nem se atreve ali. “Eu me senti em um filme”, descreve Thaís. “Raspei gelo para construir blocos de proteção, montei barraca em condições adversas, puxei trenó para lugares totalmente ermos.”
Thaís viu que testar limites é se dar conta do quão primitivo a gente ainda é – vivemos geralmente nos ambientes previsíveis e controlados das cidades e raramente testamos nosso potencial de “bicho”. Não foram poucas as vezes que ela chegou a pensar “não aguento mais nem um dia nesta situação”, e na manhã seguinte via que estava equivocada. E ficava surpresa com a própria disposição, que devia estar escondida em algum lugar dentro do contexto de “vida confortável.”
O sucesso no Denali abriu caminho. Também com Carlos, Thaís escalou o maior pico da Europa (o Monte Elbrus, na Rússia, de 5.642 metros de altitude) e, em seguida, embarcou sozinha para a África para escalar o Kilimanjaro (5.895 metros), na divisa entre a Tanzânia e o Quênia. Sem voltar ao Brasil, esticou até a Antártida e “conquistou” o Maciço Vinson (4.892 metros), o ponto culminante do continente gelado. Foi importante para “viver a montanha” sem a companhia de seu guia particular, que àquela altura poderia estar ganhando o significado de fiel escudeiro e, de certa forma, enfraquecendo- a ao criar uma sensação de segurança que não existe na alta montanha.
Na Antártida, Thaís se juntou a outras três mulheres e, em um dos lugares mais remotos do mundo, onde é normal ter quase uma “asfixia emocional” por conta do isolamento, ela experimentou uma realidade diferente: a de que o mundo existe para ser transitado, mesmo que você tenha que encarar 45oC negativos dentro de uma barraca. “Passei várias noites difíceis durante o ano dos Sete Cumes, mas lembro da mais fria, na Antártida. Nem o meu saco de dormir, cuja temperatura de conforto é de 40oC negativos, deu conta.” Vestida com todas as camadas de roupas que tinha disponíveis, ela passou a noite em claro. E ninguém que atravessa a madrugada acordado pensa só em coisas boas.
ALTA MONTANHA é mais cabeça do que corpo. Geralmente, é o fator psicológico que vai decidir se você dará o passo seguinte ou meia-volta.
Em maio, poucos meses depois de se curar do trauma do Aconcágua e finalmente pisar no cume dessa montanha, Thaís chegava ao Nepal para a penúltima escalada dos Sete Cumes. O Everest.A ocasião era especial: pela primeira vez ela foi à montanha acompanhada da mãe, que fez parte do trekking e se hospedou em um mosteiro budista enquanto a filha seguia para o topo do mundo. No aeroporto do Nepal, Thaís conheceu Ed Viesturs, um dos poucos montanhistas a escalar as 14 montanhas do planeta com mais de 8.000 metros sem usar oxigênio suplementar e que, com o filho, retornava ao país para dar sequência a um projeto social que instalaria painéis solares em povoados remotos. “Fui meio tiete, eu o conhecia de um livro dele que comprei na Disney. É uma pessoa simples e até um pouco envergonhada.”
O Everest não foi tão receptivo. Devido à clássica superlotação, a senha para o topo da montanha mais alta do mundo demorou a chegar. Foram 21 horas, em grande parte por culpa da fila, para subir ao cume e retornar ao último acampamento, uma canseira à qual ela sobreviveu ingerindo 200 ml de água e duas balas de goma. Alimentar-se em grandes altitudes é complicado, e foi só isso mesmo que ela ingeriu, ela jura. “Pensando em consumo e gasto calórico, é impossível dizer que isso é racional”, admite. “Porém não acredito que me coloquei em risco desnecessário, porque checávamos variáveis importantes, como a saturação de oxigênio no sangue.”
Só uma palavra vinha à mente naquela hora: peregrinação. “Você está andando há oito horas e, quando o sol nasce, de repente percebe que atravessou um portal e está sobre as nuvens, por uma trilha que parece ser o caminho para o céu.” Isso não quer dizer que ela não se sentia intimidada cada vez que era preciso pular uma greta. Suas pernas ainda tremiam, a boca secava e as costas ficavam encharcadas de suor.
Na Pirâmide Carstensz, a escalada derradeira de seu projeto, Thaís novamente se viu sobre o abismo ao ter que atravessar uma passarela feita com cabos de aço. Quem não travaria em uma hora dessas? “Você escala o Everest e pensa que agora vai tirar tudo de letra, mas na real você deu é uma relaxada.”
Nos momentos de fraqueza, entrava novamente em cena alguma técnica de coaching, como deixar a respiração consciente e levar os pensamentos para uma situação que remetesse à calma. Thaís garante que o exercício devolve a concentração ao momento presente, ajudando qualquer pessoa a agir com sensatez nas horas mais tensas. “Você só tem que ter a consciência para colocar isso em prática.”
Nem por isso ela desconsiderou a “força superior” da natureza, e o que a maioria das pessoas definiria como mérito, ela prefere chamar de sorte. “Falo isso justamente para não pensarem que é um negócio fácil”, reconsidera. “Tive sorte nas janelas de cume e também em não me machucar nas expedições nem nos treinamentos. Quando eu estava moída, chorando, parecia que as condições naturais pelo menos conspiravam a meu favor.” Curiosamente, seu equipamento eleito “o mais essencial” deste último ano foi um par de meias. Pés frios inviabilizariam qualquer passo.