Por Fernanda Beck
2016 foi um ano complicado para a jornalista Erika Sallum, redatora-chefe da Go Outside, minha chefe e grande amiga. Logo no começo do ano, Erika foi diagnosticada com um câncer de mama que viraria sua vida do avesso e suspenderia a maioria de seus hábitos diários por um bom tempo, substituindo-os por uma dolorosa e assustadora rotina de tratamento. Menos um: o ciclismo, que ela pratica há mais de 15 anos e que serviu como uma grande força motora no caminho para sua recuperação plena.
A satisfação em pedalar, a alegria de estar na bike, o incentivo e o companheirismo do pelotão e as amizades que a bike trouxe e traz para a vida dela são, inegavelmente, a ela muito caros e queridos. A bicicleta é uma fatia larga e saborosa da existência da Erika – não dá para pensar nela sem pensar na bike. E durante sua batalha contra o câncer, para a surpresa de muita gente, não foi diferente: as duas se mantiveram inseparáveis.
Através de um texto escrito em inglês para o site norte-americano Pretty Damned Fast, voltado para o ciclismo feminino, Erika conta sua história com suas próprias palavras, descrevendo como a força para pedalar e a força para continuar viva eram a mesma. Acompanhando o texto, algumas das fotos fortes de Diego Cagnato, amigo próximo que a registrou em momentos dramáticos e marcantes.
Lance Armstrong tuitou ontem sobre o relato, solidarizando-se com a colega ciclista e sugerindo-o como “um texto inspirador para começar bem o dia”. É mesmo uma história comovente sobre o período mais vulnerável da vida da Erika, em que havia muita dor e pouco consolo – tirando, é claro, um bom chá de selim.
Leia seu depoimento em tradução livre abaixo (o original pode ser visto aqui):
O pedal rumo à recuperação
“Quanto tempo vou ter que ficar longe da bike?”. Juro que esta foi a primeira questão que me passou pela cabeça quando meu médico disse as palavras mais aterrorizantes que eu já tinha ouvido: “Sim, é câncer”. Só depois eu pensei em quimioterapia, mastectomia, carequice e enjoos. “Você acha que vou conseguir pedalar durante o tratamento?”, perguntei. “Claro. É essencial que você faça isso”, disse, sorrindo com todo coração.
Eu nunca tinha estado tão em forma. Nunca fumava. Bebia apenas socialmente. Pedalei muito durante os últimos 13 anos. E o caroço que eu encontrei no meu peito esquerdo durante o banho nem parecia um tumor, de acordo com o meu médico. Além do quê, eu era jovem, tinha só 39 anos. Mas era câncer. Um tipo raro, chamado carcinoma mucinoso, mais comum em mulheres acima dos 65 anos de idade.
Isto foi em janeiro de 2016, em São Paulo. Tudo aconteceu tão rápido, tanto quanto as rodas da minha bicicleta um dia antes da minha cirurgia, em fevereiro. A químio começou em março. Meu namorado neo-zelandês foi um idiota e saiu da minha casa em abril (“Ouvi dizer que a químio pode ser perigosa para a minha saúde”, ele disse, enquanto eu olhava para ele pensando que meu cabelo poderia começar a cair a qualquer instante). Como editora das revistas Go Outside e Bicycling, fui convidada a acompanhar o Tour de France feminino em julho – e fui para lá muito magra e careca. Também pedalei o Rapha’s Women 100 em julho (sim, durante a químio). Em agosto, meu corpo inchou por causa da cortisona, adicionando quilos à minha silhueta, que simplesmente não vão embora. Minha última sessão de químio foi em setembro. Minha nova vida começou em outubro, e em novembro viajei ao Irã para celebrá-la, na companhia do meu irmão.
Nunca deixei de pedalar durante aqueles meses. O ciclismo me ajudou a manter a sanidade, mesmo quando eu estava ridiculamente frágil e mal conseguia pedalar. “Você é a ciclista mais forte e a mulher mais incrível que já conheci”, me disse minha amiga Talita, enquanto eu lutava para vencer uma subida que antes eu deixava para trás com facilidade. Meus olhos estavam cheios de lágrimas. Mas eu continuei pedalando. Era mais do que uma obsessão; era a força que me mantinha viva.
Alguns dias antes da minha cirurgia, o campeão mundial Peter Sagan visitou o Brasil. Pedalamos juntos por alguns minutos, que me fizeram esquecer brevemente o pesadelo que eu estava vivendo. Naquele dia, meu amigo e fotógrafo Diego Cagnato me perguntou: “Como vai tudo?”. Não hesitei: “Eu tenho câncer”. Na mesma semana, nos encontramos novamente em uma festa, e ele me perguntou se poderia documentar meu tratamento com sua câmera. Ele estava lá quando eu cheguei no hospital às cinco da manhã. Quando eu quase vomitei durante a químio. Quando eu cortei meu cabelo. Quando eu chorei porque o câncer não era nada perto da dor de um coração partido…
Um ano depois, eu olho para estas fotos e sinto gratidão não só por ter tantos amigos maravilhosos que seguraram a minha mão, mas também pela minha paixão pelo ciclismo. Minha bike sempre esteve ao meu lado, e nunca me decepcionou. Nunca. Pode parecer um clichê, mas é verdade – minha bike me mostrou que eu sou mais forte do que pensava. O ciclismo nunca foi tão incrível.
A vida continua. Como os pedais de uma bike. Subidas puxadas vêm e vão, como as divertidas descidas. Estou curada agora. Mais sábia. Ainda me recuperando do tratamento. Ainda tentando voltar à minha velha forma. Vou seguir em frente. Haja o que houver”.