“Nunca estamos sozinhas”: como encontrei forças para superar os 1.000km do BikingMan Brasil

Por Helena Coelho*

Helena Coelho relata sua experiência marcante nos 1.000km desassistidos do BikingMan Brasil 2024. Foto: Arquivo Pessoal.

“Nunca estamos sozinhas”. Essa é a frase que eu mentalizo para ter coragem de largar em provas de longa distância, fazer viagens e me aventurar por horas em cima de uma bicicleta, sendo mulher, sem suporte de equipe ou qualquer suporte externo.

Foi assim que larguei para a minha maior aventura: o BikingMan Brasil 2024, uma prova de 1.000km autossuficiente, passando pelos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, por estradas de terra e trilhas. Minha primeira experiência em prova de ultraciclismo tinha sido foi no Chile, em um contexto de segurança (em todos os sentidos) completamente diferente do Brasil.

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Fazer uma prova de ultraciclismo no Brasil significava estar em casa, me sentir em casa e entre amigos. Eram raras as pessoas que não conhecia na prova. Encontrei também desconhecidos no caminho que me chamavam pelo nome, tiravam foto, me acompanharam por alguns quilômetros. Me senti completamente acolhida, no meu país, na minha casa. As pessoas que acompanhavam a prova ao longo do percurso vibravam a cada ciclista que passava.

Pedalando sozinha em provas ou viagens me sinto livre, um sentimento genuíno e quase ingênuo, considerando a conjuntura do país e dos territórios que passamos. Mas não penso em mais nada, minha mente é treinada a ficar vazia, pelos muitos anos de yoga.

Helena foi uma das 10 mulheres inscritas nessa edição do BikingMan. Foto: Arquivo Pessoal.

Na terceira noite, cheguei muito cedo no PC 2, em Areias. Muitos decidiram ficar por lá e eu não tinha essa opção. Um amigo, o Elton, disse que iria seguir e eu tinha acabado de, literalmente, “bater um pratão de macarrão”, o que me daria um sono quase instantâneo. Pensei comigo mesma “esquece o sono, toma uma cápsula de café e segue”. Elton estava começando um segundo prato, esperar ele significaria ficar pra trás (ele é mais rápido) e sair na frente significaria seguir sozinha, já que todos pararam pra descansar. Mas ter alguém atrás e avisar a organização, a princípio, me daria uma sensação de segurança.

Cumprindo meu plano por três dias seguidos, parti às 4h da manhã para o próximo destino: Queluz. Regiões de trechos bonitos, amanhecer na estrada e o calor, mais uma vez, mostrando para o que veio. Reencontrando amigos no percurso, vi com tristeza pessoas queridas e muito fortes abandonando; soube de outros que também tiveram que largar e tive a pior notícia do dia: uma amiga muito próxima havia sido agredida por um homem durante a prova. Essa notícia ficou rondando a minha mente e o efeito disso viria horas depois.

O quarto dia foi mais um dia de grande acúmulo de subida, dormi mal e o sono foi aparecendo no final do dia. O modo competição não passava pela minha cabeça, estava com tempo “sobrando”. Embora minha meta fosse audaciosa, resolvi parar e dormir mais cedo. Fui acolhida na casa do José e da dona Kátia, uns 10km antes do PC, que seriam 1h30 a 2h pedalando já no anoitecer e eu estava mentalmente cansada. Optei por parar mais cedo, dormir bem, me recarregar de bastante energia e carinho das pessoas, evitando dormir em quartos compartilhados.

“A ansiedade, sensações ruins e o dia que parecia não acabar”: esse foi o quinto dia. Começando por horas intermináveis empurrando a bike para alcançar o topo do Itatiaia, sem dúvida um dos trechos mais belos do Brasil, e o quinto mais alto. Eu brincava com os bloquetes, enquanto caminhava e cantava algo pra distrair. Alcançar o topo foi a primeira grande vitória do dia. Sem nenhuma pretensão eu alcancei a segunda colocada também, demos um abraço, dei remédio porque ela estava com dor e ela iniciou a descida antes de mim. Na descida a vi parando e parei preocupada, ela estava descendo devagar e com dificuldade. No final da descida parei, mais uma vez, para esperá-la. Ali imaginava que tomaríamos um café e isso ajudaria ela a distrair e melhorar também. Mas ela passou por mim igual um foguete. Naquele momento eu ri e liguei o modo “vou me divertir e competir um pouco também”, na certeza que esse pique duraria apenas alguns kms, suficientes para distrair a cabeça e fazer o tempo passar mais rápido.

“Reencontrando amigos no percurso, vi com tristeza pessoas queridas e muito fortes abandonando; soube de outros que também tiveram que largar e tive a pior notícia do dia: uma amiga muito próxima havia sido agredida por um homem durante a prova. Essa notícia ficou rondando a minha mente e o efeito disso viria horas depois.”

Nessa brincadeira, rasguei o pneu descendo rápido. Lutei com a bomba elétrica para selar, insistindo na minha fé inabalável de que tudo tem conserto, até um rasgo lateral num pneu. Mas não teve jeito. A Lili (a ciclista que estava disputando o segundo lugar comigo) viu meu pneu furado e entendeu que teria tempo para parar. Eu achei um ponto seguro para arrumar o pneu e segui. Naquele ponto imaginei que ela teria me passado, mas segui forte porque queria acabar aquilo.

No fim da tarde recebo uma mensagem de um amigo dizendo “aproveita o dia”, faltavam muitos quilômetros de terra ainda, os lugares eram ermos, e fiquei muitas horas sozinha, sem ver ninguém da prova. Quando anoiteceu, eu estava sozinha. Pela primeira vez, em muitos anos, comecei a sentir medo e ansiedade. Era como se o que aconteceu com a minha amiga que sofreu a agressão pudesse acontecer comigo a qualquer momento. A organização seguiu alguns quilômetros comigo, o que foi um momento de muito alívio.

Passei muitas horas sem ver ninguém. A sensação de medo trazia pensamentos de desistência. Minha cabeça começou a questionar o que eu estava buscando. Eu queria acabar aquilo o mais rápido possível. Já bem de noite, alcancei o Tarso, um ciclista da prova, e segui com ele. Por volta das 21h paramos em um único bar para reabastecer, banheiro e seguir forte pro fim. Eu estava mentalmente cansada com tudo isso, mas não podia diminuir o ritmo e ficar sozinha. Segui no ritmo dele. Sabia que ainda teríamos a Serra Nova de Campos e essa subida com vento contra e carros passando próximo em uma velocidade muito alta doeu em vários sentidos.

Terminei a prova às 23h50. Eu me sentia exausta, triste, ansiosa. Foi a primeira prova que não sustentei o mesmo sorriso do começo ao fim. Eu abri 4h na frente da terceira colocada, mas o que era uma brincadeira de chegar mais rápido, virou um gatilho de pedalar mais rápido para não ficar sozinha e porque sentia medo. Fiquei em segundo lugar. Consegui aplicar um ano duro de treinamento, testes e acompanhamento. Encerrei mais um ciclo.

*Helena Coelho é idealizadora do projeto Mulheres de Gravel, colaboradora do Rocky Mountain Games, ciclista de gravel desde 2019. Tem sido a única mulher a fazer a série mista do “paralelepípedo dourado” do Clube Randounneurs Mogi das Cruzes, a série de longa distância mais difícil do Brasil. Foi finisher do Across Andes (2023) e do Bikingman (2024).