O futuro chega dropando

MINI MONSTERS: Da esq. para a dir., Dan, de 8 anos, Cahique, de 8, e João, de 11, fazem pose no bowl da Cave Pool, em São Paulo

Em um momento especialíssimo para esse esporte no Brasil, nunca surgiram tantos jovens talentos dos bowls, halfs e banks, que – muitas vezes com menos de 10 anos de idade – já mandam manobras de deixar marmanjo babando e vencem competições nacionais. O futuro da pranchinha no Brasil promete!

Por Erika Sallum
Fotos de Wagner Romano

“DEUS TE ABENÇOE. Você ainda vai ser profissional.” O autor da frase é um dos muitos que estão de passagem – e param, de queixo caído – pelo bowl do novo Parque Municipal Chácara do Jockey, inaugurado em abril em São Paulo. Lá dentro da piscina de concreto, entre grinds, aéreos e front sides, uma figura diminuta de 1,52 metro e 45 quilos domina a cena com segurança impressionante. Ele sabe que é bom. E todos em volta também sabem, mas trazem no olhar a mesma pergunta: como é possível ter tanto talento em um esporte técnico e arriscado como o skate com tão pouca idade? Simples: metade da vida de Victor Ikeda foi dedicada ao skateboard – há cinco anos, esse paulistano simpaticíssimo de 10 anos começou a dar as primeiras manobras na pranchinha e nunca mais parou. “Desde que assisti a um DVD da mega-rampa do Bob Burnquist, fiquei fascinado. Queria muito fazer tudo aquilo que os caras do vídeo. Aí meu pai me deu um skate de presente. E não sosseguei até aprender”, diz ele.

NINJA: Aos 10 anos, Victor Ikeda (fa foto, no bowl do Jockey, em SP) é um dos grandes nomes do skate de sua geração
NINJA: Aos 10 anos, Victor Ikeda (fa foto, no bowl do Jockey, em SP) é um dos grandes nomes do skate de sua geração

Difícil não se derreter diante do garoto mestiço. Cabelos compridos desgrenhados, bermuda larga, meião colorido abaixo dos joelhos, tênis Nike (número 35) e camiseta da Urgh, loja de skate e uma de suas apoiadoras. Apesar do ar maduro e das frases bem articuladas de Victor, é só ele abrir um sorriso formado por dentes que substituíram os de leite não faz muito tempo que sua idade aparece. E nessa hora a gente até esquece que está diante de um dos grandes atletas de sua geração no Brasil, que em cima do skate deixa claro por que gasta horas por dia ali: pelo mais puro amor à diversão que esse esporte lhe proporciona.
Victor faz parte de um novíssimo grupo de brasileiros feras do skate, que nem chegaram ainda à adolescência e que começaram a praticá-lo pouco depois de aprender a andar. A maioria não passa dos 10 ou 11 anos de idade, alguns menores batem na casa dos 5 anos.

Muito provavelmente eles serão os grandes nomes da modalidade em um futuro bem próximo, ajudando a consolidar o Brasil como um celeiro de talentos em bowsl, half pipes e banks. É só bater o olho na lista de competidores jovenzinhos de alguns campeonatos que nos últimos tempos surgiram no calendário nacional: as categorias de base, como kids e mirim, estão cheias de garotos precoces capazes de se jogar em manobras treta, que muitos marmanjos levam anos para dominar.

Victor, por exemplo, já foi campeão brasileiro de skate vertical – vertente do esporte praticada em half pipes e bowls. Consegue realizar manobras como hurricane e stalefish com uma desenvoltura e uma graça que impressionam até quem não entende nada do assunto. No último dia 27 de agosto, ele venceu o São Bernardo Tribanks Amador, na categoria iniciante, deixando o público estarrecido. Também ficou com o primeiro lugar do pódio no Lords of the Bowl, que rolou em Serra Negra (SP) em julho deste ano. “O Victor sempre levou jeito para esportes. Começou a andar de bike com 2 anos de idade, já sem rodinha. Com 3 anos, pilotava aquelas motos cinquentinha”, conta o pai, Fabio Ikeda, de 42 anos, ele mesmo um amante do skate quando era adolescente.

AH, MULEKE: Dan Sabino tem 8 anos de idade e anda de skate há seis anos
AH, MULEKE: Dan Sabino tem 8 anos de idade e anda de skate há seis anos

Um ano depois, empolgado com uma edição dos X Games que acontecia na época e mostrava alguns dos skatistas mais corajosos do planeta, Fabio comprou um skate de plástico para o primogênito. Foram duas semanas praticando sem parar no tapete de casa, que ajudava a amortecer as quedas e a dar confiança ao garotinho. Percebendo a facilidade do filho em ficar em pé no board, Fabio decidiu matriculá-lo em uma escola de skate de São Paulo. O problema é que Victor era novo demais para frequentar o curso. “Deixa ele fazer uma aula só hoje, e aí a gente vai embora”, pediu Fabio. O professor não conseguiu esconder a surpresa ao ver o guri em ação – e liberou as aulas para o futuro caçula da turma. Depois de seis meses, o mesmo instrutor chamou o pai de lado e confessou: Victor não precisava de aulas, sabia intuitivamente aprender sozinho, tinha uma aptidão fora do comum para manobras e poderia seguir se desenvolvendo de forma mais livre.

Aos 7 anos, Victor tornou-se campeão brasileiro de bowl na categoria mirim, e aos 9 anos consagrou-se campeão brasileiro vertical de half pipe. Nessas vertentes, consideradas bastante técnicas, não se coloca o pé no chão, e é preciso saber “ler” o bowl e a rampa, criando previamente linhas imaginárias por onde se deve deslizar com o skate. “Dropar” (descer) suas paredes arredondadas requer não apenas coragem, mas doses extras de autoconfiança. E isso o skate tem dado de sobra ao menino. “O skate ajudou muito na timidez do Victor. Nas primeiras aulas, ele mal conseguia dar ‘oi’ para o professor, era bem retraído. Em pouco tempo, mudou e se tornou muito mais despachado. Acho que é porque se trata de um esporte que vai trabalhando a confiança, além da agilidade e da perspicácia para entender as linhas a serem feitas”, conta Fabio.

PARADINHA: Dan Sabino no bowl da Cave Pool, em São Paulo
PARADINHA: Dan Sabino no bowl da Cave Pool, em São Paulo

VICTOR NASCEU COM APTIDÃO para o skate, mas sua trajetória não é um fenômeno isolado nos skate parks do Brasil. O país vive um momento especialíssimo para esse esporte – algo semelhante ao que vem acontecendo com o surf. Nos anos 1980 e 1990, havia alguns poucos bons atletas brasileiros nas duas modalidades, mais com jeitão de aprendizes dos grandes nomes gringos que promessas de pódio. O skate em si também passava por uma fase mundial difícil, após um boom provocado por gente como o skatista, produtor e documentarista norte-americano Stacy Peralta e os Z-Boys. Os campeonatos e eventos, assim como os prêmios em dinheiro, foram minguando nos EUA, em uma maré baixa que se refletiu em outros países.

Porém o skate é resiliente e aos poucos foi recuperando as forças (apesar de nunca mais ter desfrutado da dimensão de décadas atrás). Em terras brasileiras, um protagonista serviu de inspiração para milhares de meninos que curtiam skateboard: o carioca Bob Burnquist, hoje com 40 anos e um das maiores estrelas da história do skate mundial. Na esteira da reestruturação da indústria do skate após a crise de grana e criatividade que assolou o esporte, outros atletas locais também foram abrindo caminho para as novas gerações, a exemplo de Sandro Dias e Léo Kakinho. Além de lenda nacional da pranchinha, Léo é pai de Vi (de Vinicius) Kakinho, de 17 anos, que faz parte da “Brazilian Storm” do skate – para brincar com a alcunha que os novos talentos do surf brasileiro, como Gabriel Medina, ganharam da mídia internacional.

MATADOR: Aos 8 anos, Cahique "Cacá" voa alto sobre a escada do bowl da Cave Pool
MATADOR: Aos 8 anos, Cahique “Cacá” voa alto sobre a escada do bowl da Cave Pool

Os então jovens skatistas e surfistas brasileiros dos anos 1980 e 1990 foram amadurecendo, casando e tendo filhos. E lá iam eles com os pequenos e seus amigos para as sessions no mar e no concreto, especialmente em lugares como Florianópolis. A capital de Santa Catarina se tornou meca nacional do skate. Era exatamente ali que André Barros, um então skatista e surfista, levava seu filhinho para curtir as primeiras ondas. Com menos de 2 anos de idade, Pedro Barros subiu em um skate e nunca mais largou o hobby. Aos 21 anos, o rapaz é hoje o principal nome do skate bowl no Brasil e um dos melhores do mundo, com incríveis seis medalhas de ouro nos X Games. Para incentivar o filho ainda criança, André começou a construir um complexo de pistas de skate na própria casa da família, no Rio Tavares, com direito a minirampa, bowl e half pipe que hoje se tornaram point cobiçadíssimo de quem frequenta Floripa.

O sucesso internacional de Pedro e de outros atletas da sua geração, como Felipe Foguinho Caltabiano e Murilo Peres (para citar só dois), tem servido de base para a profissionalização e a popularização desse esporte por aqui – com direito a inauguração de skate parks, cada vez mais campeonatos e, claro, uma legião de novos fãs que sonham em seguir a mesma trajetória. Mais picos para praticar skate ajudam a fomentar uma comunidade local, que acaba chamando a atenção de mais e mais pessoas. Criada há dois anos no bairro do Butantã, em São Paulo, a Cavepool, por exemplo, conta com um bowl exigente, onde às quartas-feiras se reúnem alguns dos mais jovens skatistinhas do pedaço. “A geração passada não tinha tantas pistas legais para treinar bowl. A Cavepool surge dessa necessidade, aliás”, diz Leandro Miranda, de 30 anos, um dos donos da “Cave”. “Hoje há também as redes sociais para ajudar a divulgar a carreira de quem está começando, e vejo cada vez mais talentos skatistas bem novos me procurando para mostrar o que sabem fazer”, conta ele.

ARRASOU: João Vitor faz um stalefish com a desenvoltura de gente grande, também na Cave Pool
ARRASOU: João Vitor faz um stalefish com a desenvoltura de gente grande, também na Cave Pool

 

A Cave conta com um time de skatistas que vão dos 7 aos 53 anos de idade. Na equipe, três pequenos grandes atletas batem ponto semanalmente no bowl paulistano – e, claro, deixam todo mundo vidrado nas manobras casca grossa que fazem como se estivessem brincando de pega-pega. De capacete vermelho com seu nome pintado na lateral, Dan Sabino, o Danzinho, é o mais figuraça da turma. Aos 8 anos, é tipo um mini Lance Mountain, o icônico e divertido skatista norte-americano famoso pelos vídeos da Bones Brigade. Ágil e levinho, o menino quebra tudo no bowl, para logo depois tascar alguma brincadeira em cima da galera ao redor. “Uma das mais fortes qualidades do Dan no skate é que ele é muito esforçado. Não desiste até conseguir. Claro que tem o dom para a coisa, mas sua dedicação é fundamental”, diz o skatista profissional Eduardo Braz, que dá aulas informais para a garotada faz uns anos.
E, se por acaso cair, é só levantar, segundo explica o próprio Dan. “Nunca chorei ao levar um tombo de skate e nem vou chorar”, fala o menino, dando risada. “O skate me deu uma nova família. É um esporte em que eu posso andar pertinho do meu ídolo, todo mundo se trata de igual para igual”, conta Dan, que começou a praticar com 2 anos e é fã de Pedro Barros. Nas competições, Dan já mostrou a garra, vencendo etapas do circuito brasileiro de bowl em Garopaba, Curitiba e Floripa. Aos 6 anos, passou um tempo na Califórnia, um dos berços do skate, para evoluir e conhecer novas manobras. O pai, Hemerson Sabino, revela que a pranchinha foi essencial para acalmar a energia incansável do filho. “O skate salvou o Dan e a gente”, brinca.

Também com 8 anos, Cahique “Cacá” Carneiro Gregório integra a equipe da Cave e já se consagrou bicampeão brasileiro de skate na categoria infantil em 2013 e 2014. “Comecei a andar de skate na barriga da minha mãe”, conta ele, filho de pai skatista. A mãe, Cristiane Carneiro Gregório, acompanha o filho para todos os lados e está pensando em deixar o trabalho de designer para se dedicar mais à carreira de Cacá. “Mas é importante sempre respeitar o que a criança está a fim. Se daqui a pouco ele cansar do skate, tudo bem, jamais vamos forçar nada. O Cacá é muito novo ainda, tem a vida pela frente, e minha preocupação número 1 é que ele seja feliz e se divirta”, diz Cristiane.

Completando o trio que você vê nas fotos desta reportagem, curtindo o bowl da Cavepool está João Vitor Santos, de 11 anos. É um dos mais jovens skatistas brasileiros a conseguir mandar um 540, manobra em que o atleta faz três giros completos no ar. Mesma trajetória dos colegas: iniciou-se no esporte com apenas 2 anos e nunca mais largou. Das primeiras brincadeiras na prancha até performances matadoras em competições, foi um pulo. Na carreira, já possui no currículo diversos pódios em etapas de campeonatos nacionais. E, como os amigos, traz na ponta da língua a resposta à pergunta que muitos lhe fazem de “O que você quer ser quando crescer?”: “Não sei o que eu quero ser, mas sei que quero andar de skate a vida inteira”, diz. Aí ele dá um sorriso de lado, pega o board na mão, olha o bowl e some lá dentro, ao som de rodinhas raspando no cimento. Nessa hora, o futuro parece mesmo que chega dropando de skate.