Pela primeira vez desde 1988, nenhum corredor masculino queniano que competirá nos Jogos Olímpicos é considerado favorito para ganhar uma medalha de ouro em provas de meio fundo ou fundo.
Nos eventos que eles uma vez dominaram, desde os 800 metros até a maratona, o melhor desempenho do Quênia é de um segundo lugar para baixo na lista de melhores tempos da World Athletics para os Jogos Olímpicos de Paris 2024. A última vez que isso aconteceu, George Michael dominava as paradas, José Sarney era presidente do Brasil e Eliud Kipchoge tinha 3 anos.
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O declínio não é apenas uma questão de amplitude, mas também de profundidade, e vem ocorrendo há mais de um ciclo olímpico. Nos anos olímpicos de 2000 a 2012, os quenianos possuíam exatamente metade dos 20 melhores tempos mundiais em eventos de distância masculina. Em 2016, esse percentual caiu para 40%. E nos últimos dois ciclos olímpicos, 2021 e 2024, foi apenas um quarto.
“Somente” pode parecer injusto, já que os 55 milhões de habitantes do Quênia representam aproximadamente 0,69% da população global. Mas, pelos padrões quenianos, 25% é pouco.
Sua dominância sustentada é algo nunca visto antes em corridas de distância. Ao longo dos últimos nove Jogos Olímpicos desde 1988, os homens do Quênia ganharam 21 medalhas de ouro em eventos de distância e 59 medalhas no total. Para comparação, os corredores de distância da Finlândia ganharam 16 ouros e 33 medalhas de 1920 a 1936 —embora os Jogos naquela época fossem muito menores, com tipicamente apenas 30 ou 40 nações competindo.
As mulheres quenianas, com 29 medalhas desde 1988 (incluindo sete de ouro), também produziram um acúmulo de medalhas sem igual. E não só o fizeram em um número menor de eventos (o steeplechase feminino só foi disputado a partir de 2008), como também superaram circunstâncias muito mais difíceis, incluindo uma história de violência de gênero sistêmica. Mas mesmo a excelência delas não iguala o que seus colegas masculinos conquistaram.
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Décadas de dominância
No auge de sua era dourada, os homens quenianos eram destaque em comerciais da Nike e anúncios de cartões de crédito. Eles não eram apenas atletas, mas símbolos de uma cultura e nação; não estrelas individuais, mas um coletivo inspirador. E pareciam tão invencíveis que sua mera presença nas corridas criava, na mente de muitos espectadores (e até alguns concorrentes), uma categoria de prêmio separada: o melhor não-queniano.
Europeus e norte-americanos faziam peregrinações a Iten, determinados a descobrir os segredos dos quenianos: seria a altitude? Atitude? Ugali? Correr para a escola todos os dias, descalços, subindo a colina, em ambos os sentidos? Cientistas estudavam seus pulmões, sua marcha, seus genes, tentando identificar uma razão fisiológica para seu domínio. Livros, livros e mais livros foram escritos, uma hagiografia coletiva sobre as virtudes dos corredores quenianos, seu estilo de vida e seu treinamento.
O sucesso deles se tornou lenda —e em alguns cantos, suspeita. Talvez, sussurravam, eles fossem bons demais para serem verdade. Mas se suas performances pareciam irreais, as narrativas que surgiram sobre eles no Ocidente sugeriam uma disposição para suspender a descrença: os quenianos eram virtuosos e nobres, de uma cultura pura, um povo para quem o doping sempre seria uma abominação. Os quenianos (quando testavam positivo) eram não sofisticados e ingênuos, enganados por treinadores, agentes ou médicos sem escrúpulos. Renato Canova, um treinador italiano com uma predileção por holofotes, até afirmou que os quenianos eram feitos de uma substância tão diferente que o EPO não funcionava neles.
Essas histórias podem conter alguma verdade (exceto pela alegação absurda de Canova), mas também transformaram os quenianos em algo menos do que totalmente humanos. Raramente eram vistos como pessoas como nós (se mais rápidas do que nós), tomando decisões sobre seus próprios futuros com base no mundo em que se encontravam. Esse mundo pode ter parecido um paraíso para corredores (particularmente para corredores de outros lugares), com suas milhas e milhas de estradas e trilhas de terra vermelha macia. Mas também era edênico em suas tentações.
Um documentário de 2012 de Hajo Seppelt para a rede de transmissão alemã ADR alegou a ampla disponibilidade de substâncias dopantes no Quênia. Poisoned Spikes, um documentário de 2015 da Citizen TV queniana, corroborou as descobertas de Seppelt. Além disso, a geografia e a infraestrutura do Quênia, bem como a localização remota dos campos de treinamento de atletas, complicaram o teste: a localização dos atletas não era rastreada de forma tão abrangente quanto em outros lugares, em parte porque coisas simples como nomes de ruas ou números de endereço nem sempre estavam marcados, se existiam.
Além disso, o controle de doping no Quênia raramente realizava testes de sangue, porque as amostras precisam ser armazenadas a uma temperatura abaixo de 3 graus Celsius e entregues a um laboratório dentro de 60 horas. O Quênia não tinha um laboratório de testes acreditado até 2018. Antes disso, o teste adequado, armazenamento e transporte de amostras era caro e incerto. Como resultado, passaportes sanguíneos autólogos (na medida em que desestimulam o doping) não eram muito úteis para rastrear os perfis sanguíneos dos atletas no Quênia.
Com um orçamento limitado, em condições difíceis, o controle antidoping no Quênia realizou menos de 600 testes por ano em seus corredores entre 2004 e 2018. Em comparação, a Agência Antidoping dos EUA (USADA) normalmente realizava entre 600 e 900 testes por trimestre durante o mesmo período, apesar de ter menos atletas de atletismo no pool de testes. Como resultado, 86% dos atletas quenianos pegos com doping durante esse período foram descobertos por testes de competição —que, como se diz, é mais um teste de QI do que um teste de doping. Como os atletas conhecem o timing dos testes, eles são capazes de parar o uso de drogas e eliminá-las do corpo. “Apenas os mais burros são pegos” pelos testes de competição, disse o meio fundista Mathew Kisorio, que, ironicamente, testou positivo para esteroides no Campeonato Queniano de Atletismo de 2012.
Quando testes fora de competição aconteciam, eram… diferentes dos realizados no Ocidente. Em 2016, Reid Coolsaet, um maratonista canadense que treinou no Quênia, tuitou: “Teste de anti-doping ao estilo queniano. Notifique-nos na noite anterior. 1 hora de viagem até o local de teste às 5 da manhã. Muitos medalhistas olímpicos na casa.” Ele afirmou ainda em uma entrevista ao National Post que o oficial de controle de doping se desculpou por não tê-lo informado sobre o teste mais cedo.
Os PEDs estavam amplamente disponíveis. O teste era quase inexistente. E o PIB per capita anual do Quênia era de US$ 400 (cerca de R$ 2,2 mil) em 2000 —menos do que o prêmio em dinheiro para o oitavo lugar em um meeting da Diamond League ou para o décimo em uma maratona importante. A racionalidade econômica não se alinhava com as regras do esporte, o que não quer dizer que todo atleta queniano dopava —ou mesmo a maioria. Os indivíduos tomaram decisões individuais.
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Um declínio de 10 Anos
O Campeonato Mundial de Atletismo de 2015 marcou o auge da dominância queniana: seus homens ganharam cinco ouros, liderando a tabela de medalhas com onze no total. Talvez não seja uma coincidência que o presidente da World Athletics, Sebastian Coe, tenha ameaçado banir o Quênia dos Jogos Olímpicos de 2016 se a nação não tomasse medidas para lidar com o doping.
Depois de perder dois prazos obrigatórios da WADA, o Quênia fortaleceu suas leis e a aplicação do anti-doping, e manteve sua elegibilidade para os Jogos de 2016. Mas no Rio, um treinador da equipe queniana, Michael Rotich, foi mandado para casa (e mais tarde recebeu uma suspensão de 10 anos) após surgirem alegações de que ele havia solicitado subornos para dar aos atletas aviso prévio sobre os testes—ele sabia quando os testes estavam agendados porque os testadores frequentemente pediam sua ajuda para localizar os atletas. E em 2017, Asbel Kiprop, medalhista de ouro olímpico de 2008 e tricampeão mundial nos 1500 metros, testou positivo para EPO—embora, segundo sua própria admissão, ele tivesse recebido aviso prévio sobre o teste e pago um suborno ao oficial de controle no momento do teste.
Mas o Quênia não era como a Rússia, que realizava um esforço estatal e bem financiado para ajudar os atletas a dopar e evitar a detecção. O problema queniano era, em muitos aspectos, o oposto: um esforço antidoping mal financiado por um órgão governamental nacional que preferia a ignorância feliz (ou pelo menos a negação plausível) aos esforços sérios para resolver o problema—um pecado de omissão em vez de comissão.
Em 2019, Brett Clothier, chefe da Unidade de Integridade do Atletismo da World Athletics, desafiou os líderes dos World Marathon Majors e das corridas de estrada Gold Label a ajudar a resolver o problema ou, ele disse, enfrentar “um escândalo de doping comparável aos piores do esporte”. Os organizadores de corridas de estrada e seus patrocinadores (principalmente empresas de calçados) prometeram $3 milhões anuais para ajudar a Unidade de Integridade do Atletismo da World Athletics (AIU) a financiar testes fora de competição, principalmente em países da África Oriental. Esta iniciativa, inicialmente prejudicada pela pandemia de COVID, só foi totalmente orçamentada em 2023.
Enquanto isso, em 2022, o Quênia novamente se viu ameaçado de suspensão dos Jogos Olímpicos pela World Athletics. Em resposta, o governo queniano reforçou as leis criminais contra doping e encobrimentos e orçou um adicional de $5 milhões por ano para combater o doping. O governo, a Athletics Kenya e sua agência de anti-doping reconstituída, a ADAK, parecem, pela primeira vez, ter se comprometido com a luta de forma séria. A ADAK realizou mais de 2.000 testes em 2023. Naquele ano, antes dos Campeonatos Mundiais de Budapeste 2023, os atletas da equipe queniana foram submetidos a uma média de 7,4 testes fora de competição. Em comparação, a média da equipe dos EUA foi de 4,4. Apenas a China, com 9,3, teve uma média mais alta.
Atualmente, o Quênia tem 91 atletas na Lista Global de Pessoas Inelegíveis da AIU, e mais seis foram suspensos provisoriamente, totalizando 97, o maior número do mundo. (A Rússia é a segunda com 78.) Por mais estranho que possa parecer, isso é um bom sinal, especialmente porque o número de positivos fora de competição aumentou de 14% para 34%. A localização dos atletas é mais formalmente registrada, e a ADAK tem melhor acesso aos campos de treinamento. Testes surpresa são mais propensos a serem verdadeiras surpresas.
Os fãs de longa data do atletismo têm muitas cicatrizes—cada atleta que admiramos e que acabou sendo um trapaceiro com drogas deixou uma marca. A esperança é uma coisa perigosa, mas os esforços no Quênia oferecem um vislumbre, uma razão para acreditar que esforços coordenados contra o doping podem fazer uma diferença real e nos aproximar do sonho talvez impossível de um esporte verdadeiramente limpo.
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Para Paris e além
Em 2024, Seppelt, o cineasta alemão, retornou ao Quênia e mais uma vez encontrou PEDs facilmente disponíveis em farmácias e consultórios médicos; apesar dos avanços da ADAK, o problema persiste. Mas se o doping continua a ser um problema no Quênia, não é um problema exclusivamente queniano — suspeita-se que Seppelt encontraria o mesmo em uma turnê por academias e clubes de fitness nos EUA. Atletas de outros países também trapaceiam; o doping não explica completamente os anos de sucesso corrido do Quênia, assim como não explica sua atual desventura. Afinal, as mulheres quenianas viram apenas uma ligeira queda em suas classificações nos últimos dois ciclos olímpicos, apesar de terem sido suspensas em números aproximadamente iguais aos homens.
Mas se a repressão ao doping não é a causa do crepúsculo queniano, o que aconteceu? Talvez o declínio queniano seja, como escreveu Edward Gibbon sobre o Império Romano, “o efeito natural e inevitável da grandeza imoderada”. No caso da corrida queniana, um efeito inevitável de sua grandeza é que o resto do mundo aprendeu com eles. A verdadeira história pode não ser uma de declínio queniano, mas de atletas ao redor do mundo—na Etiópia, Uganda, Noruega e até mesmo nos EUA—se aproximando.
O exemplo queniano —grande quilometragem em alta altitude — ajudou a empurrar os corredores americanos para fora das marasmas de baixa quilometragem da década de 1990 e levou a um novo compromisso com o treinamento em altitude: Quase todos os grupos de elite nos EUA (aqueles que podem pagar, pelo menos) agora realizam blocos significativos de treinamento em lugares como Flagstaff, Arizona, Park City, Utah ou Albuquerque, Novo México—versões domésticas dos campos de treinamento em alta altitude do Quênia.
Embora os atletas quenianos tenham revolucionado a corrida, deixaram uma impressão mais profunda nos momentos em que sua grandeza transcendia classificações ou medalhas ou tempos ou mesmo vitórias —momentos de beleza, maravilha e inspiração. O esforço desesperado de Paul Tergat para manter a imbatível Haile Gebreselassie nos Jogos Olímpicos de Sydney. David Rudisha liderando do início ao fim nos 800 metros nas Olimpíadas de Londres, desafiando a sabedoria convencional sobre como e quando os recordes poderiam ser quebrados e como as medalhas de ouro eram conquistadas. Sammy Wanjiru desafiando os deuses do tempo (e qualquer mortal que tentasse acompanhá-lo) na maratona olímpica de Pequim, estabelecendo um ritmo que o norte-americano Ryan Hall chamou de “insano” no calor opressivo. Eliud Kipchoge — seus recordes, sua longevidade (ele ganhou sua primeira medalha olímpica em 2004) e a realidade de que ficamos sem superlativos para descrevê-lo.
Será que veremos novamente algo como a era queniana? Talvez não, embora a dominância das mulheres etíopes em 2024 se assemelhe à dos homens quenianos no início dos anos 2000 — em todos os aspectos. Também há a possibilidade de que a era queniana não tenha realmente acabado. Em 1988, a última vez que os homens quenianos entraram nos Jogos Olímpicos como tais azarões, ganharam quatro ouros, duas pratas e um bronze.
*Artigo originalmente publicado na RUN.