Por Bruno Romano*
SE, COMO JÁ DISSE o sábio empresário outdoor Yvon Chouinard, a aventura só começa mesmo quando algo dá errado, a jornada dos amigos Otávio Lino e Marcio Sanches tem sua largada oficial na vastidão do Jalapão, no Tocantins. Depois de uma pedra estraçalhar de vez o eixo dianteiro do carro que levara a dupla bem de longe até ali, duas opções se abriram: desistir e voltar para casa ou apostar no “tudo ou nada”. Era como se a Expedição Raiz – nome escolhido para este projeto independente que cruzou 18 Estados do Brasil entre outubro de 2016 e junho de 2017 – se encontrasse com sua verdadeira essência. Com apenas R$ 3 reais restantes no bolso e ainda metade do trajeto planejado a percorrer, a jornada e a estrada ganhavam naquele momento um novo sentido.
Nascidos em São Carlos, no interior de São Paulo, e ambos com 34 anos, Otávio e Marcio sonhavam com momentos assim desde 2012, quando começaram a desenhar uma grande aventura lado a lado. Logo que saiu do papel, essa roadtrip levada a sério visitou 12 cenários típicos brasileiros em busca de gente capaz de personificar importantes culturas tradicionais. Ou nossas “raízes”, como sugere o conceito da expedição.
A bordo de um improvável carro-casa ano 1976, adaptado por eles mesmos para a missão, os amigos embrenharam-se em florestas tropicais, chapadas, cerrados e cavernas, entre outras paisagens de destaque do território nacional – tudo em estilo baixo custo e sem patrocínio. Em oito meses de jornada, puderam viver bem de perto (e de dentro) encontros marcantes, de quilombolas a gaúchos da serra, de pantaneiros a seringueiros. “Descobrimos o Brasil e o brasileiro. Descobrimos a nós mesmos”, proclamou a dupla ao fim da expedição. A seguir, eles contam à Go Outside mais detalhes da aventura.
AS RAÍZES DO CAMINHO
Pesquisar histórias das raízes brasileiras por meio de uma viagem roots não passa de uma “feliz coincidência”, define Otávio Lino. Na verdade, o conceito da Expedição Raiz veio mesmo de uma escolha, lapidada por três anos: documentar e conectar personagens que revelam realidades locais, focando no turismo de base comunitária para trazer à tona importantes relatos de transformações sociais do país. Já a forma de alcançar o objetivo foi mesmo uma necessidade. “Somos dois ‘caipiras’ sem grana”, resume Otávio. “Mas nós sabíamos que era possível e que não seria apenas uma viagem de carro por aí, estávamos realmente em busca de algo.”
LAR AMBULANTE
Para tirar a ideia do papel, a dupla adaptou por conta própria uma Chevrolet Caravan ano 1976, agregando a ela uma oficina mecânica portátil, uma cozinha completa e um espaço para trabalhar. Além de caber no orçamento enxuto do projeto, características como tração traseira e motor forte falaram alto na escolha. Na estrada, o carro se tornou um personagem próprio da saga – para o bem e para o mal. No percurso entre o Maranhão e o Recife, por exemplo, ele só pegava no tranco. Mesmo assim, sempre ajudou a quebrar o gelo por onde passava. “Ele já revelava nossa história, e essa escolha acabou nos abrindo muitas portas”, conta Marcio.
BEM-VINDOS À REALIDADE
Logo no primeiro dia, o carro atolou. Não foi preciso mais de uma semana para o planejamento oficial cair de vez por terra. Dos 127 dias previstos, a expedição durou 241 dias. “Aceitamos isso desde o começo e não nos preocupamos mais em voltar para a casa correndo”, comenta Marcio. A certeza dos desafios – como dormir em qualquer canto, comer o que havia disponível e enfrentar ciladas quase diárias – seguiam ao lado da incerteza dos dias pela frente. “Sabíamos que iríamos conhecer pessoas e histórias incríveis, mas nunca tínhamos ideia de como e quando isso iria acontecer.” Desacelerar o ritmo, experimentar estilos de vida e explorar pequenos detalhes de cantos turísticos consagrados no Brasil acabaram sendo consequências naturais. E, no fim, o grande barato do projeto.
OBSTÁCULOS NATURAIS
Escondida no traiçoeiro solo arenoso do Jalapão (TO), uma pedra deixou os amigos em apuros. Após horas para finalmente conseguir resgate, seguidas de 25 dias com o carro no conserto, a expedição chegava ao fim dos recursos financeiros, entrando de vez em um dilema. “Uma hora o dinheiro iria acabar, mas quando acontece é bem diferente”, diz Marcio. Quebrados de grana e morando há um mês de favor em uma oficina mecânica, Otávio e Marcio conseguiram ajuda emergencial de um amigo, o suficiente para arrumar o carro e seguir até a próxima parada.
PARCERIA
“Nessas horas você precisa de alguém que entenda exatamente o que está se passando”, conta Marcio, sobre os dias tensos que marcaram um novo rumo do projeto. Após digerir dúvidas e reflexões, a opção de arriscar tudo e seguir adiante venceu. “As coisas passaram a acontecer de outra maneira a partir dali: uma completa e incrível reviravolta na viagem, quando ficamos mais expostos e abertos à ajuda das pessoas”, completa.
ADAPTAR É PRECISO
Seguindo firmes os objetivos do projeto (e muito mais maleáveis à sua forma), os viajantes abandonaram o carro por 45 dias para uma imersão na Amazônia. Ao readaptar as maneiras de viajar, comer, dormir e gastar grana, passaram também a vender fotografias no esquema “pague quanto quiser”. Assim juntavam verba suficiente para seguir ao próximo destino, conseguindo fechar dessa forma toda a segunda parte da expedição. “Todo dia é uma decisão. Algo que exige agilidade e sintonia. E toda decisão muda completamente a viagem e seus desafios”, reflete Otávio.
OLHOS E OUVIDOS ABERTOS
Uma sequência de acasos levou a Expedição Raiz ao encontro de Dido, em um dos momentos mais marcantes da jornada. Na faixa dos seus 40 anos, esse ribeirinho nativo de Jamaraquá (PA) viveu toda sua existência no chamado Médio Tapajós. “Havia algo impressionante nele”, lembra Otávio. Dido fala quase um dialeto local e se mantém antenado às mudanças do mundo, transformando seu entorno em uma inspiradora estância turística. “É muito bonito ver as comunidades se apropriando de suas raízes”, fala Otávio. Marcio chama a experiência de um capítulo à parte dentro de um universo especial vivido em um tempo “amazônico”. “Aprendemos muita coisa ali, foi um enorme ensinamento de vida”, diz.
PARTIDAS E CHEGADAS
Estar presente em cada segundo da viagem fez a dupla repetir constantemente a expressão “vivimento”, algo como uma vivência elevada. “Os pequenos aprendizados vêm exatamente da vivência implacável dentro da rotina de um lugar”, diz Marcio. “Isso paga todo o preço da montanha-russa emocional que é uma viagem desse tipo.” Ao se despir do supérfluo e das ilusões de que o trajeto seria mais fácil, segue Otávio, “sabíamos que cada conversa seria efêmera e tentávamos nos colocar no lugar das pessoas”. É o que ele chama de ser “conscientemente empático” – um dos segredos em tantas chegadas e partidas.
ENXERGAR A DIANTE
O fim da empreitada, na verdade, apenas fecha um ciclo. “O mais difícil já foi, porém sinto que só agora estamos terminando mesmo a viagem”, conta Otávio, sobre a necessidade de compartilhar o que viveu. Ele tem reunido ao lado de Marcio todo o material produzido na estrada para lançar conteúdos na plataforma digital do projeto (expedicaoraiz.com.br). “A experiência deixa de ser efêmera quando abrimos para mais pessoas”, acredita. Para Marcio, a saga completa o fez olhar para suas próprias raízes. “A viagem mudou a maneira como trabalho, como lido com as pessoas ao meu redor e comigo mesmo”, diz. Logo depois conclui: “É impossível não voltar transformado, colocando-se mais presente e sentindo-se grato às coisas simples da vida”.
*Reportagem publicada na edição nº 145 da Revista Go Outside, outubro de 2017