A ciência comprova que fumar maconha pode melhorar a performance esportiva, esquentando ainda mais a discussão: seu uso deve ou não ser permitido entre atletas?
DURANTE ANOS, A CIÊNCIA E A SOCIEDADE em geral acreditaram que os efeitos da maconha estivessem unicamente relacionados a um relaxamento profundo, a lapsos de memória e a uma visível falta de precisão nos movimentos.
Nos anos 1970, um jornal brasileiro chegou a publicar um estudo feito com sete pilotos de avião que apontava o quanto a planta afetava as áreas da percepção e orientação desses profissionais. “Ficou evidente que os maconhados cometiam muito mais erros quando postos à prova 30 minutos após fumarem”, concluía o artigo.
Desta vez, o assunto chegou ao esporte –na forma de um debate mais aprofundado sobre um tema que ainda causa polêmica e divide opiniões. Quais os reais benefícios que um atleta pode obter com a cannabis? E poderiam esses efeitos serem considerados doping? A maconha é ou não uma droga que melhora a performance, e como as associações reguladoras das modalidades esportivas devem reagir diante dessas descobertas?
O norte-americano Clifford Drusinsky é um porta-voz dos que defendem o uso da planta no esporte. “Sob o efeito de maconha, treino com mais foco e inteligência”, declarou ele, publicamente. Aos 39 anos, Clifford é um ex-jogador de futebol americano da primeira divisão que atualmente dedica-se ao triathlon mais de 20 horas por semana. Nos últimos quatro anos, ele subiu ao pódio das principais provas de triathlon dos Estados Unidos – incluindo uma vitória em sua categoria etária em 2013 no South Beach Triathlon, em Miami. Entre quatro e seis vezes por semana, 30 minutos antes de sair para uma corrida de 20 quilômetros, um pedal de três horas ou uma sessão de três mil metros de natação, Clifford come uma barra energética, que ele mesmo produz, contendo 20 miligramas de THC (tetraidrocanabinol), a substância psicoativa mais presente na maconha.
“Eu só consumo para treinar”, faz questão de deixar claro, já que transportar maconha entre os Estados ainda caracteriza tráfico de drogas nos Estados Unidos. Além disso, os canabinoides (princípios ativos da maconha) ainda estão na lista de substâncias proibidas da Agência Mundial Antidoping (Wada), que dita as regras sobre o que é droga ou não para todas as modalidades.
Na onda das discussões sobre os reais efeitos da planta no desempenho, a revista Outside norte-americana inovou: o repórter Gordy Megroz mascou um chiclete contendo 10 miligramas de THC pouco antes de correr. “Experimentei um leve ‘barato”, relatou. “Porém o mais marcante foi eu me sentir invencível, preparado para atacar as subidas mais íngremes sem medo.”
O resultado não surpreende Keith Humphreys, professor da Faculdade de Medicina de da Universidade de Stanford (EUA), que explicou que a melhora da disposição é um dos efeitos naturais da droga. “Todos nós temos receptores de canabinoides no cérebro, que, ao detectarem a presença do THC, ativam um sistema capaz de reduzir a ansiedade”, acrescentou.
Isso significa que aquela tensão pré-largada, responsável por tirar até atletas favoritos e experientes do páreo de competições importantes, pode ser amenizada com a maconha. Já é sabido também que, durante uma corrida, por exemplo, o corpo humano fabrica endocanabinoides – semelhantes aos canabinoides encontrados na maconha – que, aliados à endorfina, são os responsáveis pela sensação de bem estar que as pessoas experimentam após alguns quilômetros. Em outras palavras, fumar maconha pode te colocar nesse mesmo estado antes de seu corpo começar a produzir toda a química desencadeada pelo exercício.
Ainda não acreditando totalmente nessa reação, Gordy procurou a fisiologista norte-americana Stacy Sims para uma nova bateria de testes. O jornalista, então, fumou um cigarro de maconha e subiu na esteira. “Sóbrio, eu corri 19 dolorosos minutos”, relatou. “Sob o efeito da planta, minha mente se perdeu em pensamentos aleatórios. A dor ainda existia, porém eu não me fixava mais a ela.”
Isso a ciência também explica. Só no site da revista médica norte-americana The Journal of Clinical Pharmacology, referência mundial em pesquisas e resenhas clínicas, existem mais de 900 estudos relacionando maconha e dor. E um consenso entre eles é o efeito antiinflamatório do THC. “O problema é que você pode começar a se achar invencível e, consequentemente, se colocar em situações perigosas”, acredita Keith Humphreys.
O lutador norte-americano Nick Diaz, que já teve uma vitória cassada após um teste positivo para a maconha, também já foi alertado pela Comissão Atlética do Estado de Nevada de que poderia estar se expondo a riscos desnecessários por usar a planta. A justificativa é que a maconha diminui os reflexos e, assim, deixa os atletas mais vulneráveis a golpes violentos. Como um dos grandes defensores da legalização da maconha no meio esportivo, ele apresentou um atestado para uso terapêutico da planta e defendeu-se dizendo que a erva o ajudou a aliviar problemas diagnosticados na infância, como déficit de atenção e alterações de humor. “Como usuário, sou mais consistente em tudo o que faço”, disse em entrevista ao jornal inglês The Times.
GERALMENTE CLASSIFICADA como uma “droga menos prejudicial” – inclusive quando comparada ao álcool ou ao tabaco –, a maconha começou a chamar a atenção do meio científico apenas no final do século 20. E isso se deve, em grande parte, às comprovações de seu poder medicinal.
Em 1980, uma pesquisa inédita realizada no Brasil mostrou a eficácia do canabidiol (CBD) – que, ao contrário do THC, é uma substância não-psicoativa das plantas do gênero cannabis – para fins terapêuticos em epiléticos: dos oito pacientes testados, sete tiveram uma melhora significativa do quadro clínico. E, em 1996, a Califórnia foi pioneira ao legalizar a erva para fins medicinais, uma decisão que até hoje abre portas para discussões nas mais diferentes esferas.
No meio esportivo, o canadense Ross Rebagliati se tornaria a grande referência da ala pró-maconha em 1998. Ele tinha 26 anos quando fez história ao ganhar a primeira medalha de ouro do snowboard olímpico. No dia seguinte, porém, o chefe da delegação de seu país entrou no quarto onde Ross estava hospedado para informá-lo sobre seu exame de urina: positivo para maconha. O canadense chegou a perder a medalha, mas a recuperou porque o THC não integrava a lista de substâncias proibidas da Wada. O caso foi um marco também porque os canabinoides passaram a ser oficialmente condenados nos esportes a partir de então.
Ross voltou aos noticiários em 2009, depois que o nadador norte-americano Michael Phelps foi fotografado em uma festa de estudantes tragando a erva. “É zero caloria e zero gordura”, opinou o snowboarder sobre o “flagra” do maior medalhista olímpico de todos os tempos. Sua declaração, dada ao vivo na rede norte-americana NBC, só foi levada a sério cinco meses depois, quando Phelps quebrou o recorde mundial dos 200 metros borboleta. “Hoje, toda vez que um atleta se mete em apuros por causa de maconha, a mídia quer me entrevistar”, diz Ross, que recentemente ganhou uma licença para plantar maconha para fins medicinais no Canadá.
COM MAIS DE 200 MILHÕES de usuários no mundo, a maconha é, de longe, a droga ilícita mais consumida. E, já que nem esportistas escapam dessa estatística, a WADA decidiu, em 2013, redefinir os níveis toleráveis para cannabis em atletas pegos em exames fora de competição. Passou de 15 ng/ml para 150 ng/ml (Ross foi flagrado com 17,8 ng/ml). Na prática, isso significa que, a não ser no dia da prova, a maconha está praticamente liberada.
A decisão não funcionou apenas para atletas fumarem em momentos de lazer, mas também como uma espécie de habeas corpus para que usuários das mais diversas modalidades se declarassem adeptos da erva, entre eles Clifford Drusinsky e Nick Diaz.
Em 2019, após dois anos de discussão, a Wada passou a prever no seu novo regulamento que comprovarem ter consumido a erva até 24 horas antes da prova, terão uma punição leve, de três meses de suspensão.
Porém tanto a Wada quanto as instituições esportivas ainda mantêm a visão conservadora quando o assunto é liberar o uso da erva. “A maconha é uma droga controversa, e eu concordo em enquadrá-la como doping pela imagem negativa que ela passa à sociedade”, diz o advogado Thomaz Mattos de Paiva, presidente da Comissão Antidopagem da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt).
Políticas de liberação visando o uso recreativo da maconha ainda estão cercadas de fumaça. Apesar de algumas já terem sido colocadas em prática em países como Estados Unidos, Uruguai e Portugal, essa é uma discussão longe de terminar.
Por outro lado, a comprovação de que a maconha colabora com uma significativa melhora do potencial atlético será, provavelmente, uma boa justificativa para mantê-la afastada dos esportes.
Cortando a brisa
Casos da história recente em que atletas tiveram problemas por causa da maconha
1993 >> O jogador de futebol americano Todd Marinovich é suspenso da temporada da NFL por testar positivo para maconha.
1998 >> Em fevereiro, o canadense Ross Rebagliati ganha a primeira medalha de ouro do snowboard olímpico (categoria slalom gigante) durante os Jogos de Nagano, Japão. Ross é barrado no exame antidoping, que detectou THC em sua urina. Chega a perder a medalha, mas a decisão é revogada em seguida.
2000 >> Depois de nocautear o polonês Andrew Golota, o boxeador norte-americano Mike Tyson testa positivo para a maconha, o que faz com que a luta fique sem vencedor.
2006 >> Dias depois de se tornar campeão mundial de luta greco-romana, o norte-americano Rob Van Dam é pego com uma pequena quantidade de maconha no carro. Perdeu o título e foi banido dos esportes por um tempo.
2011 >> Maxime Fortin, um dos principais atletas da patinação de velocidade do Canadá, é afastado das competições por dois meses depois de ter testado positivo para cannabis.
2012 >> O judoca norte-americano Nick Delpopolo é expulso dos Jogos de Londres depois que um teste antidoping detectou a presença de canabinoides em seu organismo.
2018>> Skatista Pedro Barros é flagrado no doping para maconha em campeonato em Santa Catarina e correu o risco de não poder disputar as Olimpíadas de Tóquio. Após julgamento, Wada deu punição leve ao atleta.
Matéria originalmente publicada na Go Outside 116, de março de 2015.