‘Guerra de Luz e Trevas’: a conquista do Monte Roraima

Por Eliseu Frechou

Monte Roraima
Durante 12 dias, Eliseu Frechou, Marcio Bruno e Fernando Leal enfrentaram todos os perigos da montanha para abrir uma via inédita de escalada no Monte Roraima. Foto: Arquivo Pessoal.

“Não posso negar que o Monte Roraima tenha sido o meu ‘sonho de consumo’ durante anos. Depois de uma tentativa frustrada em 2008, a vontade de voltar e tocar naquela parede ficou ainda maior. Histórias como a expedição inglesa que abriu a primeira via na Proa em 1972 ou lendas sobre o espírito do guerreiro Makunaima eram peças de um quebra-cabeça que eu precisava decifrar.

Localizado no extremo norte do Brasil, na fronteira com a Venezuela e a Guiana, o Monte Roraima tem 2.875 metros e seu topo forma um planalto de 17 km de extensão por 6 km de largura, precipitando-se nas beiradas em paredões verticais com mais de 500 metros de altura.

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Minha segunda tentativa aconteceu em janeiro de 2010. Comigo estavam Marcio Bruno, meu parceiro de diversas escaladas difíceis, e Fernando Leal, responsável por todo o suporte e backup que se faz necessário em uma expedição como essa. Chegar ao Roraima já é uma expedição assustadora.

O imponente Monte Roraima e seus paredões verticais. Foto: Arquivo Pessoal.

Você é jogado de helicóptero num lugar de onde é muito difícil de sair. Ou seja, roubada mesmo. Se quiser voltar, vai precisar invocar o espírito de Anhanguera e sair de lá andando. Serão vários dias na mata e muita chance de se perder. Decidimos escalar na porção da montanha que pertence à Guiana, pelo lado da Proa, o maior da muralha.

Além de mais negativas que no restante da montanha, as paredes ali têm entre 450 e 500 metros de altura, cerca de um terço a mais que no restante do morro. Já que estávamos ali por nossa conta e risco, o lance era finalizar a novela da melhor forma possível.

O momento em que o helicóptero te deixa na montanha e vai sumindo no horizonte significa que você terá que terminar a via. O piloto também só conseguirá te pegar no topo, o que também já é uma manobra muito arriscada. A solução é sair por cima. O ‘point of no return’ é a largada.

Essa via batizamos de ‘Guerra de Luz e Trevas’, uma escalada em que tudo caminhava muito bem. Até o quinto dia. A partir daí começou a chover e a casa caiu mesmo. Não há big wall que eu escale e que não chova. Parece maldição, e no Roraima mais uma vez ela se concretizou.

Leal, Bruno e Frechou no topo do Roraima. Foto: Arquivo Pessoal.

Durante cinco dias ficamos nós três num ‘platôzinho’ com 80 cm por praticamente 4,5 metros, o tamanho da nossa lona. A situação já começa precária porque são três adultos em um espaço mínimo. Obviamente aprendemos a lidar com o desconforto, mas chega uma hora em que, independentemente de estar seguro ou não, você precisa tocar para cima. Nada é mais horrível do que a ansiedade de querer sair de uma roubada e ter que ficar parado, mal instalado e sem ter o que fazer.

Para piorar, tínhamos pouca comida e já estávamos surdos com o barulho do vento e da chuva na lona. Também tínhamos data e hora para o helicóptero nos buscar, não poderíamos perder a chance.

A situação mais emblemática foi acontecer no oitavo dia. Marcio e eu subimos por duas cordas fixas que já havíamos colocado no platô onde estávamos bivacando. Essa última corda estava numa barriga negativa, de onde escorria água, muita água.

Sabíamos que ali era um ‘crux’, ou seja, um ponto-chave que precisávamos passar para conseguir acessar uma parte mais positiva da parede. A gente não estava muito longe do topo, mas ele ainda parecia inacessível pelo fato de pingar tanta água. Como sempre, subi com o Marcio, enquanto Fernando ficou responsável pelo rango e por cuidar das coisas em meio a uma friaca surreal.

Acampamento nas alturas em um raro momento de sol. Foto: Arquivo Pessoal

As pessoas pensam que o Monte Roraima é quente, já que está na Linha do Equador, mas isso não é verdade. Ele é alto, venta pra caramba, chove muito – passamos frio todos os dias e até enfrentamos temperaturas negativas.

Por causa do clima hostil, Marcio avisou que ia descer. Ele não conseguia ficar ali porque estava congelando. Já estávamos bastante molhados, então concordamos em adiar a tentativa. No dia seguinte o tempo não melhorou, mas fizemos mais um ataque, só que dessa vez o Marcio começou a tremer muito, rangendo os dentes – ele não conseguia fechar a mão. Eu disse: ‘Cara, você está mal. Desce e fica lá embaixo, eu estou bem e vou continuar’. Existe uma técnica de escalada solitária, que é quando o escalador faz a própria segurança.

Apesar do risco, chamei a responsa e mentalizei que ia passar essa barriga de um jeito ou de outro, e que cada centímetro para cima seria um centímetro mais perto de casa. Depois de muito esforço, uma hora e pouco batendo martelo sozinho, olho para baixo e aparece o Fernando. Quando ele viu que o Marcio tinha passado mal, subiu e me deu uma força sinistra. Naquele momento, vi o quão importante é ter um time entrosado. O Fernando não era um escalador com a técnica mais apurada, mas sua experiência em situações de risco salvou nossa expedição.

Para nossa felicidade, vencemos mais esse obstáculo e seguimos rumo ao cume. O 11o dia amanheceu com o céu azul. Achávamos que nesse dia seria possível pisarmos no topo, mas um enorme totem que avistávamos lá de baixo mostrou ter o dobro do tamanho quando o tocamos. Assim, precisamos ficar uma noite e um dia a mais dormindo na vertical.

E só no entardecer do 12o dia na montanha é que o Fernando se juntou ao Marcio e a mim para comemorarmos, de pé, em cima do Roraima, a vitória sobre nossos medos e dúvidas. Quando nos reunimos no topo, o sonho de abrir uma via na Proa se tornou realidade. Naquele momento tudo era alegria. Iríamos voltar para casa e o que vivemos naquele lugar seria história – história que contamos agora para os amigos.

Momento de pura felicidade. Foto: Arquivo Pessoal.

Com certeza esta foi uma das experiências mais intensas da minha vida. Não foram poucas as vezes em que estive em situações de risco num big wall e, mesmo assim, apesar das promessas feitas na hora do aperto sobre mudar de vida e de esporte, sempre retornei para enfrentar as grandes paredes que me fascinam. Cada vez que entro numa delas passo por apuros: frio, calor, sede, fome e medo são companheiros inseparáveis do escalador que se lança nesse tipo de desafio. Já escalei o suficiente para entender que preciso pagar esse preço.”

Trecho retirado da reportagem ‘Sobreviventes’, publicada na edição 173 da Go Outside.