Revelações chocantes em Titan: A Tragédia da OceanGate mostram como a ambição corporativa e alertas ignorados levaram à catástrofe — e por que essa tragédia ainda nos assombra anos depois.
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O novo documentário da Netflix sobre a implosão do submersível Titan em 2023 revela uma tragédia evitável, construída ao longo de anos. Titan: A Tragédia da OceanGate, que estreou em 11 de junho, mostra como o CEO da OceanGate, Stockton Rush, insistiu em seguir adiante com um projeto fatalmente falho. Fosse por interesses comerciais ou pura arrogância, algo levou Rush a ignorar medidas de segurança — o que acabou resultando na morte de cinco pessoas.
Cobri o submersível Titan anos antes de sua implosão, entrevistei Rush diversas vezes antes do desastre e também contribuí para a cobertura da Outside USA quando o submersível desapareceu. Por isso, assisti ao filme com atenção redobrada, curioso para ver se ele traria novas luzes sobre o incidente.
O documentário expõe os esforços de Rush para silenciar seus críticos. Também revela como, por anos, ficou claro que o sub nunca teve capacidade de realizar, com segurança, repetidas viagens até o Titanic — e como Rush se mostrou determinado a ignorar todos os alertas. Com imagens e entrevistas de tirar o fôlego, o filme mostra que ele estava disposto a arriscar vidas — inclusive a sua própria — para transformar a OceanGate na SpaceX dos mares.
Lançado quase exatamente dois anos após o desaparecimento do Titan, o documentário revela decisões inacreditáveis que levaram à trágica jornada — um desastre que continua a cativar o mundo mesmo anos depois.
Desprezo escancarado pela segurança e arrogância levaram à tragédia
O documentário revela como o “pecado original” de Rush também foi seu erro fatal: construir o casco do Titan com fibra de carbono para economizar dinheiro. A fibra de carbono é formada por longas cadeias de carbono torcidas como fios, depois cobertas com cola ou resina. Ela tem uma ótima relação entre resistência e peso, o que tornava o submersível mais leve e compacto do que modelos tradicionais. Isso barateava o transporte — um ponto essencial nos planos comerciais de Rush.
Logo no início do filme, Bonnie Carl, contadora da OceanGate, revela que Rush sonhava em se tornar um “grandalhão que mudaria o mundo”, comparável a Jeff Bezos ou Elon Musk.
Mas o casco mais barato do Titan tinha uma falha grave. A fibra de carbono pode conter bolsões de ar, e suas fibras podem se romper sob pressão excessiva. O documentário da Netflix mostra Rush e outros realizando testes de pressão em escala reduzida com parceria da Boeing. O primeiro modelo implode antes de atingir a pressão equivalente à do Titanic. O segundo falha ainda mais cedo.
Mesmo assim, a OceanGate prosseguiu com a construção do casco em tamanho real. Em imagens impressionantes do primeiro mergulho profundo do Titan, Rush pilota o sub sozinho. É possível ouvir claramente o estalo e o rangido do casco de fibra de carbono.
Fiquei boquiaberta ao ver Rush reconhecer o som (“Caramba, que p*rra é essa?”), desdenhar (“Isso chama a atenção.”) e continuar a descida (“Desde que não rache, estou tranquilo.”).
“Porque qualquer um que já esteve em um submersível — qualquer um que já trabalhou com subs — sabe que esse é o som da sua morte se aproximando.”
— Rob McCallum
Rob McCallum, especialista em submersíveis, teve uma reação semelhante. “Estava no cinema com Dave Lockridge [na estreia do filme] e, quando aquele som apareceu, segurei o joelho dele e disse: ‘Meu Deus. Como ele fez isso?’”, contou-me por telefone. “Porque qualquer um que já esteve em um submersível — qualquer um que já trabalhou com subs — sabe que esse é o som da sua morte se aproximando.”
Esse momento resume a obsessão de Rush em concretizar sua visão — custe o que custar. Ele ignorou repetidamente especialistas que alertaram para problemas evidentes, de engenheiros da Boeing a McCallum. E demitiu funcionários que questionavam a operação. Antes dos testes em mar aberto, ele demitiu Lockridge, diretor de operações marítimas da empresa, por registrar possíveis falhas perigosas na embarcação. E deixou claro a todos na OceanGate que ninguém o impediria.
“Ele disse… que, se a Guarda Costeira se tornasse um problema, ele compraria um deputado e daria um jeito.”
— Matt McCoy, técnico da OceanGate em 2017
Tony Nissen, diretor de engenharia da OceanGate, relata que, no mesmo dia em que demitiu Lockridge, Rush afirmou que “não seria nada para ele gastar US$ 50 mil para destruir a vida de alguém”.
“Aquilo mudou minha vida na empresa”, diz Nissen no documentário. “Mudou a forma como gerenciei o departamento de engenharia. Eu precisava garantir que ninguém se manifestasse. Eu trabalhava para alguém que provavelmente era um psicopata clínico em potencial — mas com certeza um narcisista.”
Mesmo após uma rachadura durante um mergulho nas Bahamas, Rush continuou testando o casco de “pipoca” da OceanGate com pessoas a bordo. A resposta, como mostra o filme, foi demitir vários membros da equipe de engenharia, incluindo Nissen. Depois, a empresa construiu um novo casco de fibra de carbono e o enviou para expedições na Nova Escócia.
Nissen não alertou ninguém sobre o uso de um projeto já comprovadamente falho. “Eu não ia enfrentá-lo. Não ia recorrer ao conselho, porque Stockton deixou claro como gostava de arruinar uma vida”, disse ele aos cineastas.
Em teoria, o sistema de monitoramento interno permitiria distinguir ruídos normais dos que indicavam perigo. “O que eu não conseguia entender era: qual o sentido?”, comentou Mark Monroe, diretor do filme, em uma entrevista recente. “Se ninguém jamais levou um submersível de fibra de carbono a essas profundezas, como se define uma referência de ruído aceitável — e o que indicaria que é hora de emergir?”
O sistema, no fim, emitiu um alerta claro. E foi ignorado.
O documentário mostra que, ao final do 80º mergulho do Titan, os ocupantes ouviram um ruído alto enquanto o submersível subia à superfície. Hoje se acredita que foi uma delaminação da fibra de carbono (separação das camadas), o que enfraqueceu significativamente o casco. O sistema de áudio captou o som — e a OceanGate não tomou nenhuma atitude.
“Para mim, é a arma do crime que levou a tudo isso”, afirma no filme o Capitão Jason Neubauer, investigador da Guarda Costeira dos EUA.
Imagens a bordo do navio de apoio após o mergulho mostram Rush minimizando o problema: “Na Missão 4, quando emergimos, o Scott estava pilotando e ouvimos um estouro alto. Nada tranquilizador. Mas estávamos na superfície. Mas como o Tim e o P.H. [Nargeolet, especialista no Titanic] podem confirmar, quase todo sub de mergulho profundo faz algum barulho em algum momento.”
O Titan implodiu no mergulho profundo seguinte.
A Guarda Costeira dos EUA segue investigando o incidente. O relatório final está previsto para este ano e vai detalhar oficialmente o que aconteceu, por quê, e deverá apresentar recomendações para evitar novos desastres. Dependendo das conclusões, o caso pode ser encaminhado ao Departamento de Justiça dos EUA para possível responsabilização criminal.
“Acho que existe uma parte do mundo que admira quem quebra as regras, quem avança custe o que custar”, disse Monroe. “Mas há regras que se aplicam a todos nós. As da natureza. As da física. As da ciência. Não dá para contornar essas — e, quando tentamos, coisas ruins acontecem. Foi isso que aconteceu aqui.”
Por que ainda somos obcecados pelo Titan?
O novo filme levanta uma questão: por que somos tão rápidos em agir para salvar poucas pessoas em uma crise imediata, mas tão relutantes em ajudar as multidões que enfrentam tragédias lentas que ignoramos todos os dias?
Ao menos cinco países se mobilizaram para vasculhar uma área maior que o estado de Connecticut. Os EUA gastaram cerca de US$ 1,2 milhão (R$ 6,4 milhões) nas buscas, enquanto a Guarda Costeira do Canadá desembolsou cerca de US$ 3,1 milhões (R$ 16,6 milhões). Essas mesmas agências normalmente discutem por muito menos para ajudar milhares de seus próprios cidadãos — mas mobilizaram tudo isso por cinco pessoas de diferentes países, numa emergência.
Esse fenômeno se repete em outras situações dramáticas de resgate. O mundo inteiro parou para acompanhar o resgate da bebê Jessica presa em um poço nos anos 80, dos mineiros chilenos soterrados por 69 dias em 2010, e do time de futebol infantil preso em uma caverna inundada na Tailândia, em 2018. O caso da Tailândia rendeu dois filmes. Outras tragédias, no entanto, passam batidas.
Para tentar entender esse descompasso, consultei o Dr. Paul Slovic, psicólogo da Universidade de Oregon, nos EUA, que há décadas estuda os mistérios da compaixão e da indiferença humanas.
“A emoção é o fator principal… e ela não responde à escala do problema”, afirma ele.
Na verdade, acontece o oposto: quanto maior o problema, mais a emoção se retrai. “Nossa pesquisa mostra que, quanto mais pessoas morrem, menos nos importamos”, diz Slovic. Ele chama isso de “aritmética da compaixão” — um cálculo emocional falho que nos leva a subestimar crises em massa, mas nos torna eficazes em agir quando poucos precisam de ajuda.
À medida que as situações se tornam mais complexas e amplas, entra em cena a “pseudoineficácia”: ficamos tão desanimados por não conseguirmos ajudar todos que acabamos não fazendo nada. Pequenas ações são abandonadas, mesmo que tenham impacto real — pois parecem insignificantes diante da necessidade imensa.
Ao mesmo tempo, nossa capacidade de sentir empatia diminui quanto mais pessoas são afetadas — um paradoxo conhecido como “entorpecimento psicológico”. Nosso cérebro reage mais ao sofrimento de poucos do que ao de muitos, explica Slovic. E, quanto mais o problema se arrasta, mais anestesiados ficamos.
Histórias de resgate como a da bebê Jessica ou do time tailandês geram enorme engajamento público porque envolvem poucas pessoas com as quais nos conectamos, têm duração limitada, desfecho definido e uma real chance de resolução.
O fim trágico do Titan reunia todos esses elementos para mobilizar nossa empatia: cinco rostos, um cronômetro, definição clara de sucesso e a sensação de esperança.
Mas essa não é a única lição que a pesquisa de Slovic oferece sobre o Titan. Tudo o que levou àquela implosão dramática reflete as tragédias lentas que ignoramos diariamente. Pessoas viram o perigo, mas ficaram caladas, se omitiram — ou foram afastadas. O risco, gradualmente, foi sendo tolerado, normalizado, racionalizado, até tornar-se irreversível.
Nesse sentido, a OceanGate não é uma exceção. É um espelho.
Vivemos cercados por tragédias em câmera lenta: mudanças climáticas, pobreza sistêmica, crises de saúde pública. Vemos os dados. Ouvimos os alertas. Mas a ação demora — quando vem — porque é difícil manter a urgência diante de colapsos que não acontecem de uma vez só.
É por isso que o Titan ainda nos prende. Não apenas por ser uma história de risco extremo e morte evitável, mas porque reflete algo desconfortavelmente familiar. A OceanGate pode ter desaparecido, mas os sistemas que a condenaram continuam entre nós.