Diretora de redação da Go Outside, Erika Sallum deixa legado no ciclismo

Por Verônica Mambrini

Erika Sallum

Em 2018, Erika Sallum tinha perdido o RG, e não quis ir fazer um novo. Passou a usar o passaporte quando precisava mostrar um documento de identificação, apesar de ser simples e rápido fazer um RG novo. “Ela sabia que ia assumir uma outra identidade que não era ela, ela queria usar aquele passaporte cheio de entradas e saídas. Ela usou o passaporte até os últimos dias”, conta Caio Guatelli, companheiro de Erika. Era como se o passaporte, além de carregar um mundo de lembranças, fosse acompanhá-la até a última viagem.

Erika Sallum: campanha quer dar nome da jornalista a ciclovia

Leitora voraz desde criança, sempre soube que seria jornalista. Desde os 12 anos, devorava as revistas semanais que a família assinava. Não teve dificuldade em entrar no curso de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP aos 17 anos, em sétimo lugar. Mas sua grande escola foi a Folha de S.Paulo: foi uma década trabalhando nos cadernos Folhateen, Ilustrada e TV Folha, onde se consolidou o crivo exigente, o bom gosto sólido, a visão de mundo ampla e o olhar detalhista que a marcaram como editora. Ela passou ainda pela redação da Veja São Paulo antes de viajar para Nova York com o então companheiro Victor Affaro, onde fez um mestrado em relações internacionais na Universidade de Nova York e ainda trabalhou na ONU, em um estágio concorridíssimo, no qual foi a escolhida entre 3.000 candidatos, conforme conta seu irmão mais velho, editor Jorge Sallum, à Folha de S. Paulo.

A curiosidade pelo mundo levou a outra paixão: viajar. Aos 18, foi para o Japão sozinha, e ainda na faculdade, foi para Cuba com uma amiga. Aliás, foi essa viagem o passaporte para a Folha, pela matéria que ela escreveu, bem ao seu estilo, explorando a ilha por conta própria. Seria assim em muitas viagens ao longo da vida: Erika foi para o sudeste Asiático, para o Oriente Médio, Europa, África e pelo Brasil afora, quase sempre trazendo histórias para despertar no seu leitor o desejo de conhecer um pouquinho mais do mundo. Frequentemente, juntando ao programa outras paixões como o ciclismo, como relatos de pedais no Rio de Janeiro e na Mantiqueira, no Stelvio no norte da Itália, em Mallorca na Espanha. 

Há 15 anos, Erika passou a fazer parte da redação da Rocky Mountain, colaborando nos projetos da casa, das revistas aos festivais – ela abriu até edições do Festival Rocky Spirit como DJ (outra das suas paixões). E tanto nas páginas da revista Go Outside como na revista Bicycling, que ela adorava editar, deixou sua marca. Exigente nas pautas, Erika fugia do popularesco: era como se esperasse muito das pessoas, apostando na capacidade de dar o seu melhor. Ela deixou suas páginas sempre abertas a novos talentos, projetos de ativismo e tendências de comportamento, outras culturas e novos modos de ver as coisas, como uma verdadeira profissão de fé, por palavras e imagens que pudessem mudar a vida dos leitores. 

A editora Rocky Mountain virou uma segunda casa para ela. Nascida num 1º de Maio, no Dia do Trabalho, Erika era apaixonada pelo que fazia, de forma transbordante. Como conta a diretora de conteúdo da editora, Andrea Estevam, “para a Erika, não tinha um limite entre trabalho, lazer e vida: era tudo junto. Era um lugar onde ela podia viver todas as coisas que ela amava, como o esporte e o jornalismo”, conta. E claro, levar a Thailândia. Pouco tempo depois de começar a trabalhar na Go Outside, ela adotou um filhote vira-lata junto com o então parceiro. “Ela aceitou meio mal humorada. Mas no fim, se derreteu pela Thailândia. Ela amava poder levar a cachorra para a Rocky. Elas eram bem grudadas”, lembra Andrea. Com a editora numa casa na Vila Madalena onde cachorros eram bem-vindos, Thai-thai acompanhava Erika ao trabalho quase todos os dias. 

Mas o amor pela bicicleta talvez seja a paixão que ligou Erika a mais pessoas. Ela inspirou centenas, senão milhares de pessoas a pedalarem, de formas diretas e indiretas, seja ao introduzir pacientemente novatas em um pelotão no ciclismo de estrada, ou nas muitas pautas pensadas para estimular o ciclismo urbano. Em 2017, ela passou a assinar o blog Ciclocosmo, da Folha. No mesmo ano, nas páginas da Bicycling, ela compartilhou o tratamento que fez contra o câncer de mama, registrado com sensibilidade pelo fotógrafo e amigo Diego Cagnato. 

Dois anos depois, reencontrou o fotógrafo Caio Guatelli, que conhecia desde 2000, da Folha. Os dois já se conheciam e se admiravam, mas não tinham proximidade. Erika tinha acordado de madrugada para subir a estrada velha da Serra de Campos. Caio descia com um grupo de amigos, e sua bicicleta tinha quebrado. Ele perguntou se ela tinha uma chave allen para emprestar, ao que Erika respondeu: ”Para você, eu tenho todas as que você quiser, Caio”. “Começou ali. Nem olhei mais para a bicicleta”, conta o fotógrafo. Caio foi o parceiro que acompanhou Erika até o fim. Ela já sabia que o câncer havia voltado, dessa vez na forma de metástase nos ossos, e queria viver muito intensamente esses próximos anos. 

O último pedal foi há cerca de um mês, no bairro Boaçava, na zona oeste de São Paulo, pouco antes de ser internada – o câncer havia se espalhado para outros órgãos. Na semana passada, ela leu com amigos passagens do “Livro Tibetano dos Mortos”. Erika morreu às 23h45 de sábado (14), aos 45 anos, abraçada com Caio. Foi enterrada no cemitério do Araçá no domingo. Um pelotão de amigos de bike a acompanhou. “Foi como se ela puxasse o pelote pela última vez”, conta Caio.

Mas a história não acabou: Caio busca, com a ajuda das amigas e amigos ciclistas, uma homenagem com a prefeitura e/ou o governo do estado: batizar uma ciclovia da cidade com o nome de Erika Sallum. “A ciclovia tinha muito a ver com os ideais da Erika. Além de ser um espaço público, era um lugar de encontro de diferentes classes sociais, tendo a bicicleta em comum”, lembra Caio. A ciclovia do rio Pinheiros liga lugares mais privilegiados, a região mais rica da cidade, e Jurubatuba (trecho atualmente fechado), no outro extremo físico e simbólico da cidade. Erika tinha projetos ligados a ciclovia – um deles foi aprovado na semana em que ela faleceu: uma oficina-escola ao longo da ciclovia para ensinar jovens a serem mecânicos de bicicleta. “A ideia era ter também criar pontos de descanso para quem faz entrega de bike por aplicativos, com lugar para descansar, tomar uma água, carregar o celular”, explica Caio.

Outro projeto dela que está correndo é cultural: colocar duas telas de cinema na ciclovia, debaixo das pontes, do Villa-Lobos, e do Cidade Jardim, para projeção de filmes sobre a vida outdoor. “Esse projeto da Erika está vingando”, conta Caio. Ele lembra que ela sempre viu a ciclovia como um espaço democrático, onde todos se encontram, propondo para a administração soluções para conciliar quem treina, quem vai para o trabalho, quem vai com criança. “A grande marca da Erika para mim é pensar no coletivo, distribuir o que a gente conhece. E aproveitar a vida hoje.” 







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