Na casa dos campeões: os treinos de Daniel Nascimento no Quênia

Por Alexandre Versiani

Treinar no Quênia é o sonho de todo maratonista de elite. Daniel Nascimento (de camisa branca e tênis vermelho) decidiu ir além e mudar para o país africano. Foto: Arquivo Pessoal.

Em muitos aspectos, Iten, no Quênia, se parece com qualquer típica cidade do interior. Numa zona rural montanhosa, famílias vivem em casas modestas, cuidam de plantações ou conduzem seus animais de fazenda por estradas avermelhadas de terra. Há igrejas, uma praça e um mercado no centro da cidade, onde é possível encontrar produtos artesanais a um preço justo. Mas Iten é diferente de qualquer outra cidade do mundo: é indiscutivelmente a capital mundial das corridas de longa distância, uma disciplina que o Quênia vem dominando há décadas.

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Ao desembarcar na cidade, em maio de 2021, a primeira coisa que chamou a atenção do fundista brasileiro Daniel Nascimento, de 23 anos, foi a mensagem no pórtico de entrada do município: “Bem-vindo à casa dos campeões”. Nas ruas, crianças sempre dispostas a interagir com os visitantes brin-cavam de apostar corrida, em vez de jogar futebol. Na preparação para a primeira maratona da carreira, o pacato vilarejo de 42 mil habitantes – localizado a 2.400 metros acima do nível do mar e a 350 km de distância da capital, Nairóbi – parecia o cenário ideal.

Mesmo antes de decidir cruzar o Atlântico, Daniel já era considerado um fenômeno das provas de meio-fundo no Brasil. Natural de Paraguaçu Paulista (SP), ele despontou no atletismo aos 15 anos com a conquista da medalha de ouro nos 3.000 metros dos Jogos Sul-Americanos da Juventude, em Lima, Peru. Depois, passou a colecionar recordes em provas de 1.500 a 10.000 metros, até estrear nos 15 km da São Silvestre, em 2018. Uma lesão no tendão calcâneo, no entanto, quase o fez desistir da carreira. A jovem promessa voltou à sua terra natal, onde trabalhou na roça de mandioca por seis meses, até ser convencido pela mãe e pelos amigos a retomar os treinamentos.

Ao reencontrar a motivação necessária para voltar a competir, Daniel se destacou na São Silvestre de 2019 com o 11o lugar e a melhor participação de um brasileiro no evento daquele ano. No início de 2020 veio o título da Meia Maratona Internacional de São Paulo e a expectativa de grandes resultados, mas a pandemia de covid-19 chegou na frente e forçou o atleta a adiar os planos. Ainda que os eventos tenham sido escassos naquela temporada, o brasileiro seguiu adiante, perseguindo o sonho de conseguir o índice para disputar os 42,195 km dos Jogos Olímpicos de Tóquio.

Depois do primeiro intercâmbio no Quênia, Daniel finalmente estreou em maratonas e, de cara, obteve a tão almejada marca, ao completar a prova em Lima em 2h09min04. Foi a melhor estreia de um sul-americano na história e o melhor tempo de um brasileiro nos últimos nove anos. Assim, Daniel se credenciou para disputar os Jogos de Tóquio, onde chegou a liderar a maratona por alguns minutos – na metade do percurso ele corria sorrindo, ao lado do campeão Eliud Kipchoge –, mas o calor extremo na capital japonesa foi inclemente com mais de 30 atletas de ponta, e o brasileiro também precisou abandonar a prova por desidratação.

Pouco depois da estreia olímpica, Daniel decidiu se mudar de vez para o Quênia, já que os frutos da sua primeira experiência no país foram colhidos num curto intervalo de tempo. Dessa vez, o maratonista escolheu o centro de treinamento de Kaptagat, que fica a cerca de 50 km da cidade de Iten. Localizadas no Vale do Rift, Iten, Kaptagat e Eldoret são cidades vizinhas e celeiro de grandes campeões quenianos, como o próprio Eliud Kipchoge, além de Brigid Kosgei, David Rudisha, Wilson Kipsang, Joyciline Jepkosgei, Mary Keitany e tantos outros.

Em Kaptagat, Daniel passou a conviver com os maiores especialistas em provas de longa distância do mundo e a contar com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar para acelerar ainda mais sua evolução. Acos- tumado a treinar sozinho em Bauru, no interior paulista, ele começou a compartilhar o dia a dia com fundistas que só conhecia por vídeo.

“Os treinamentos no Quênia valorizam muito o aspecto coletivo. Eles são bem unidos e compartilham informações o tempo todo. Conhecer a cultura do país é algo que desejo para todos, não só para quem é atleta. Você aprende sobre simplicidade e humildade. Um ajuda o outro”, conta Daniel, que no centro de treinamento ajuda nas tarefas do dia a dia e passa a maior parte do tempo livre interagindo com outros atletas. “Eles vivem de alimentação natural, então, o que plantam, eles vendem ou utilizam para consumo próprio. Aprendi muitas coisas”, completa o maratonista brasileiro.

No Quênia, Daniel corre em média de 180 a 200 km por semana, com treinos realizados em grupos entre 20 e 30 atletas de elite. O brasileiro convive com diferentes grupos ao longo dos dias e tem o auxílio de até cinco treinadores. Por isso, em Kaptagat, um provérbio africano é seguido ao pé da letra: “Se quiser ir rápido, vá sozinho. Se quiser ir longe, vá em grupo”. Os treinos são bem objetivos e muito profissionais, baseados em competições e muito focados no coletivo, na rotina, no descanso e na alimentação, que também são fatores essenciais para o nosso esporte de alto rendimento”, afirma Daniel.

O ar puro das grandes altitudes do Vale do Rift, com temperaturas amenas que não ultrapassam os 26°C durante o ano, tornam a região de Kaptagat ainda mais perfeita para a prática da maratona. Nessa nova passagem pelo país, os treinos de Daniel são organizados pelo coach e maratonista Mutai Kipkemei, de 34 anos, e baseados em três princípios: simplicidade, foco e trabalho duro.

“Acordamos às 5h nos dias de treinos mais fortes e às 6h nos mais leves. Depois retorna- mos para o acampamento, onde tomamos o kenyan tea e o chapati, como eles chamam o chá e o pão por lá, e então vamos descansar”, conta Daniel. Conhecidos pela consistência e disciplina, os treinamentos no Quênia envolvem basicamente uma sessão matutina e outra vespertina com muita corrida, um pouco de pista e sessões de fortalecimento de core. “O diferencial é que mantemos a mesma rotina durante os sete dias da semana, até no domingo. Repetimos sempre esse ciclo. Na mentalidade dos quenianos, não se pode controlar tudo à sua volta, mas é possível controlar a rotina. Então eles respeitam muito essa questão do horário”, explica.

Nos dias de corridas longas, Daniel completa de 38 a 40 km, mas a distância pode variar de intensidade, de acordo com o calendário de provas dos atletas. Trotes pela floresta, treinos de explosão na pista e exercícios de fartlek também fazem parte do dia a dia do maratonista.

“Os treinos que eu mais gosto são os longões, feitos sempre na floresta, o que é bastante gostoso. No meio da semana sempre tem um, e a distância depende da nossa preparação, mas a gente chega a fazer até 40 km e depois vai baixando. Nos fins de semana são os fartleks – ao contrário do que acontece normalmente no Brasil, onde os longões geralmente são programados para o fim da semana. Nas segundas e terças, a gente tem os treinamentos de pista. Dá mais ou menos de 12 a 15 km de treina- mento na pista, de tiros, repetições etc. Também descansamos muito, porque treinar na altitude não é fácil”, ressalta Daniel.

Entre os maratonistas que treinam frequentemente ao lado do brasileiro estão grandes nomes da atualidade como Titus Ekiru, líder do ranking mundial de 2021, e Elisha Rotich, atual campeão e recordista da Maratona de Paris. Perto de onde treina, Daniel conta que também é possível ver o bicampeão olímpico e recordista mundial Eliud Kipchoge correndo “pra lá e pra cá”, brinca o brasileiro.

No dia 14 de dezembro, logo depois de emplacar o melhor tempo da carreira (2h06min11) na Maratona de Valência, Daniel foi homenageado pelos atletas locais ao batizar uma árvore com seu nome em um espaço de Kaptagat destinado aos grandes maratonistas. Durante o plantio, o brasileiro foi acompanhado por ninguém menos que o próprio Kipchoge.

“Tive o prazer de conversar com ele algumas vezes no Quênia. Fui muito bem recebido por ele e por todos no país. Acredito que quando aparece alguém com potencial, disciplina e bem esforçado, essa pessoa acaba sendo aceita em qualquer lugar. Então eles me respeitaram e mostraram como funciona o trabalho em equipe”, conta Daniel, que exalta o convívio e o aprendizado com os atletas de elite da maratona mundial.

“Os quenianos são muito focados e acreditam no trabalho de longo prazo. Eles se preparam muito para estarem sempre prontos quando a oportunidade chegar. Eu também acredito nessa filosofia, por isso acho que minha mudança para lá deu certo”,diz Daniel. “De tanto treinar com eles, me preparar como eles, voltei a ser quem eu era nas categorias de base, quando estava sempre correndo na frente e saindo para bater recordes. Essa região abriga os melhores maratonistas do mundo, e eu sinto que nasci para fazer isso, então, na hora que decidi pelos 42 km, foi algo leve, natural”, declara.

Apesar da pouca idade para um maratonista e com apenas três provas de 42 km no currículo, Daniel – que em Valência ficou a apenas seis segundos de quebrar o recorde sul-americano da categoria – espera alçar voos ainda maiores com trabalho, disciplina e perseverança. No último dia de 2021, no seu retorno à corrida de São Silvestre, ele mostrou que está pronto para brigar no primeiro pelotão, ao ficar na 2a posição, atrás apenas do etíope Belay Bezabh, quase quebrando um jejum que já dura 12 anos sem vitórias de brasileiros no evento.

Em meio a tantos africanos de ponta, Daniel sabe que aprender e evoluir ao lado dos melhores será fundamental para continuar brigando pela ponta.

“O próximo passo será formar meu time. Também quero levar alguns brasileiros para o Quênia, mas isso vai depender dos meus patrocinadores e de como tudo irá funcionar nos meses que se aproximam. Mas quero morar aqui, construindo uma base sólida para as próximas maratonas e, se tudo der certo, estar em Paris 2024”, finaliza Daniel.

Trecho retirado da matéria “Um treino para chamar de seu”, originalmente publicada na revista Go Outside 172.







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