Cruce de Los Andes: tudo sobre a emblemática travessia entre Argentina e Chile

Por Alexandre Versiani

Quem decide encarar e cruzar a Cordilheira dos Andes encontra, além dos desafios das montanhas nevadas, muitos rastros do passado. Foto: Ivan Zumalde.

Os Andes atraem e desafiam os seres humanos há séculos. A cadeia montanhosa mais extensa do mundo já foi território de grandes civilizações indígenas e hoje é palco de um dos trekkings mais fascinantes do Hemisfério Sul: o Cruce de Los Andes. No início deste ano, o montanhista brasileiro Ivan Zumalde percorreu a passos lentos e persistentes os quase 70 km da emblemática travessia que começa no Vale de Uco, região vinícola de Mendoza, na Argentina, e termina do outro lado da cordilheira, em Santiago, capital do Chile.

Apesar das belas paisagens, esta região dos Andes Centrais ainda é pouco frequentada pelos turistas. Zumalde foi o único brasileiro em uma expedição que reuniu seis trekkeiros: três homens e três mulheres dispostos a atravessar rios de geleiras e montanhas acima de 4.000 metros.

Veja também
+ O que o “outlive” de Peter Attia tem para nos ensinar?
+ Everest e Lhotse: Olivia Bonfim é a primeira brasileira a fazer o Double Head
+ Across Andes: como fui de uma lesão para uma prova de ultraciclismo de 1.000 km

Para muitos, o caminho também é uma forma de experienciar a bravura do general José de San Martín e seus soldados, cuja travessia mudou o curso da história sul-americana. Em 1817, San Martín organizou um exército de 5.800 soldados, usou seis passos montanhosos diferentes para surpreender os espanhóis e conquistar a independência do Chile. Até hoje o feito é considerado um dos grandes marcos da história da Argentina, bem como uma das maiores manobras militares de todos os tempos. Assim, é impossível não comparar a dura travessia dos Andes daquela época com as expedições de trekkings atuais.

cruce de los andes
Última subida rumo a Paso Piquenes, a 3950m, na fronteira entre Argentina e Chile. Foto: Ivan Zumalde.

“O Cruce é uma jornada introspectiva, onde os únicos sons que escutamos muitas vezes são os do próprio passo ou da respiração”, conta Zumalde. “Cruzar esses picos, vales, rios e desafiar subidas íngremes torna este trekking diferente de qualquer outro”, relata o brasileiro, que já percorreu caminhos icônicos do país como Monte Roraima e Trilha do Ouro. “O branco da neve, a fauna e a flora abrem nossos olhos e nos fazem entender melhor como a natureza e o planeta em que vivemos é uma entidade maior que nós, a qual devemos respeito. A natureza nos Andes se manifesta na voz de ventos gelados e cortantes. E avisa, pelos rios que descem mais caudalosos e violentos esse ano – em razão do calor excessivo das últimas temporadas – que a crise climática causada pelo homem vai ser parte da nossa realidade daqui para frente.”

A travessia dos Andes também encontra um eco profundo na trágica história do acidente aéreo do time de rugby uruguaio, em 1972. Em um trecho do percurso, os trekkeiros chegam a cerca de 150 km do Vale das Lágrimas, onde o avião chocou-se contra a montanha. Isolados em um dos ambientes mais inóspitos do planeta, os sobreviventes mostraram uma resiliência extraordinária e foram forçados a tomar decisões desesperadas para conseguir comida. A história é contada em livros e também no recente filme espanhol “Sociedade da Neve”, indicado ao Oscar. Assim, para Zumalde, o trekking também exige uma mente mais aberta para entender a natureza inóspita do local.

“O filme trata de como a Cordilheira dos Andes se impõe sobre os humanos. O Cruce também carrega esse sentido de respeito à grandeza das formas pontiagudas e ao silêncio quase absoluto das montanhas. Parecem entidades imponentes desafiando aqueles que ousam atravessá-las. É uma natureza que assusta e encanta ao mesmo tempo”, diz o fotógrafo. “Antes de subir, é preciso sentir e escutar a montanha. É preciso estar aberto e se preparar para deixar os Andes atravessarem você”.

Amanhecer na área do acampamento no 1º dia. O dourado do sol marca as montanhas enquanto os rios marcam a trilha com o degelo dos Andes. As paradas do trajeto da expedição eram determinadas pela proximidade dos rios. Foto: Ivan Zumalde.
O Trekking

Com apoio de guias e de gauchos locais, responsáveis pelo manejo dos cavalos e preparo das refeições, o grupo partiu de Manzano Histórico até penetrar nos Andes rumo à fronteira com o Chile. A maior parte do percurso é feita do lado argentino, país que oferece alguns dos trekkings montanhosos mais fascinantes do mundo. Por causa das temperaturas mais amenas e a ausência de neve, a travessia do Cruce só é possível durante o verão no Hemisfério Sul. Mesmo assim, as temperaturas ficam perto dos 5ºC durante o dia e abaixo de 0ºC à noite. A expedição dura em média seis dias, com o primeiro reservado para aclimatação de altitude e terreno.

“No primeiro dia caminhamos por três horas em um trajeto aberto com muitas pedras. Tudo muito seco, com pouca fauna e flora. Ao chegar no primeiro acampamento logo percebemos a atmosfera andina que nos acompanharia durante todo o trajeto. Vales cercados sempre por muitas montanhas e picos nevados”, relembra Zumalde.

Os trekkings seguintes são mais longos. O grupo se levanta às 6 horas para fazer o dia render, parando apenas para comer e descansar. A noite cai pontualmente às 18 horas, então é preciso armar as barracas ainda de dia, relata o viajante brasileiro. “Acampamos sempre ao lado de um rio e dormimos sob sua sinfonia. O céu estrelado é outro brinde da cordilheira. À noite sobra tempo para conversar, contemplar e sentir o tempo dos Andes. Também é possível perceber o quanto a falta de sinal dos celulares já nos deixa melhores. Talvez se estivéssemos nas telas não notaríamos a rica fauna que começava a aparecer na medida em que entrávamos em outras camadas das montanhas”, pontua.

cruce de los andes
A diversidade é uma característica marcante da Travessia dos Andes. As paisagens durante os seis dias de trekking passam por área nevada, rios e vegetação endêmica.

Apesar das condições extremas, os Andes Centrais abrigam uma rica biodiversidade, com espécies totalmente adaptadas ao frio e às grandes altitudes. Os animais não apenas sobrevivem, mas desempenham um papel crucial no ecossistema. “Logo no segundo dia avistamos de muito perto um grupo dos icônicos condores andinos. Também vimos os trajetos deixados pelos guanacos e lebres que se escondem entre a vegetação, que também vai ganhando cores surpreendentes, como amarelo, roxo e verde, florescendo mesmo em um ambiente inóspito.”

Ao longo da empreitada, a distância percorrida vai se adaptando ao ritmo do grupo, sendo determinada pelo tempo gasto no ataque aos cumes maiores. O Cruce passa ao lado de muitas montanhas de grande altitude como o Tupungato (6.800m), o San Juan (6.400m) e o Marmolejo (6.100m). Também é preciso atravessar passagens e fendas abertas com cerca de 4.000 metros. “Nos primeiros dois dias de travessia, o tempo, a distância e altura dos montes são menores e caminhamos cerca de 5 a 10 km diários, mas o terceiro dia é o mais desafiador. São 18 km percorridos em 10 horas de caminhada e uma subida de pedras extenuantes”, conta Zumalde.

Enquanto o sol rachava a pele e as pedras dificultavam o avanço, Zumalde lembrou da importância de ter se preparado três meses antes para o trekking, fazendo fortalecimento das pernas e treino cardiorespiratório. A travessia também exige equipamentos adequados como um anorak e uma bota resistente. “Tudo isso conta ao chegar no ponto mais alto da travessia, El Paso de Portillo, uma abertura entre os cumes por onde o vento passa e rasga dividindo dois vales”, diz Zumalde.

No Paso Portillo, os Andes parecem abrir as portas para os convidados que conseguiram chegar até ali, atravessando os 4.350m e entrando em uma outra camada de montanhas. “Essa é a parte mais alta da trajetória; do outro lado, se avista um desfiladeiro e logo abaixo uma formação de neve com formas muito especiais em razão dos ventos e condições climáticas. São como estalagmites de neve de baixo para cima”, diz Zumalde. “O guia nos anima: se sobrevivemos ao terceiro dia, os outros serão vencidos”, relembra o montanhista.

No quarto dia, o fotógrafo conta que a sensação é de estar totalmente abraçado pela cordilheira. “Não estamos apenas rodeados por montanhas de todos os lados, estamos imersos nelas. A sensação é de paz e de certa inquietude por estar tão afastado e isolado no meio da cordilheira.” Neste ponto começam os trechos de rios pelos quais o grupo precisa dos cavalos para passar. A correnteza é forte e os gauchos auxiliam todos com destreza. São eles que ajudam a liderar a travessia e o fazem há muitos anos, passando de geração a geração ensinamentos sobre o caminho e outras tradições. “Conosco estava um guia jovem que havia aprendido com os mais velhos quando era criança e agora compartilhava o mate”, afirma Zumalde. “Outros costumes como a cura da carne crua no orvalho servida em churrasco na parrilla também são mantidas. Histórias que se somam à dos povos indígenas, à de exércitos libertadores e à de tantos outros de caminhantes que decidiram cruzar essas montanhas.”

O quinto e penúltimo dia ainda é em território argentino. No meio do trajeto há monumentos em memória de José San Martin e também alguns vestígios dos antigos acampamentos do exército. O cansaço nas pernas toma conta do corpo e o frio deixa a jornada ainda mais extenuante. Nesse ponto, é fundamental tentar dormir bem e se alimentar corretamente para uma boa travessia, diz Zumalde. “A comida preparada pelos gauchos é farta e calórica.” Quanto a dormir, as barracas ajudam a manter a temperatura e cada uma é ocupada por três integrantes da expedição. “Equipamentos como isolante térmico e um saco de dormir com limite de conforto de -7ºC fazem as noites melhores”, diz o brasileiro. O uso de segunda pele ajuda a manter o calor, enquanto camisetas de algodão e meias dão conforto. A mochila ideal sugerida pelo trekkeiro é uma com volume de 60 a 70 litros para carregar em torno de 10 a 15 kg, entre equipamentos, roupas e acessórios. “Todos carregamos nossos pertences e contamos com a ajuda de uma mula que carrega outros mais volumosos ou pesados compartilhados.”

O sexto e último dia reserva mais uma subida. Desta vez rumo ao Paso Piquenes, com 3.950 metros, já na fronteira com o Chile. O grupo acampa na base para logo cedo vencer o desafio de enfrentar pedra, gelo e travessias de rios. O esforço parece menor – ou mais tolerável – quando o fim se aproxima. “O vento vindo do Pacífico se torna mais forte e se mistura com a satisfação e a saudade do que deixamos para trás”, relembra Ivan. No total, foram seis dias de intensa conexão com o entorno dos Andes em um grupo que se tornou família. “Ficamos maiores como as montanhas e a cordilheira permite nos sentir parte da história.”

O Chile logo se aproxima, e alguns quilômetros adiante está o mesmo desfiladeiro que San Martin avistou. O guia hasteia uma bandeira argentina para lembrar a liberdade andina conquistada entre os dois países. “Andes vencidos e a cordilheira entre nós”, finaliza Zumalde. A descida por terras chilenas é feita em duas horas em forma de despedida.

VAI LÁ:

Cruce de Los Andes

Duração do Trekking: 5 noites / 6 dias – 67 km
Desafio Físico: 1 2 3 4 5
Altitude Máxima: Paso de Portillo (4.350m).
Preço: cerca de R$ 5 mil (sem aéreo)
Época Ideal: Dezembro a Fevereiro
Cidade de Partida: Mendoza
Operadora Recomendada: Argentina Extrema