Vivemos de sonhos e projetos: estar no mar e na montanha, pedalar o mundo, chegar a cumes, conhecer outras culturas. Estas três mulheres se prepararam para viverem grandes projetos em 2020. Fizeram o pé de meia, venderam tudo que tinha e caíram na estrada. A pandemia estourou durante suas viagens, com a palavra de ordem de “ficar em casa”. Mas o que fazer quando durante a viagem interrompida você não tem mais uma casa para voltar?
Mônica Martins: isolada no paraíso
A designer Mônica Martins passou o ano de 2019 preparando seu mochilão de volta ao mundo, economizando e pegando trabalhos extras. Vendeu tudo que tinha, entregou a casa e partiu em 5 de setembro.
Nos primeiros meses de viagem, conheceu Malta, fez o Caminho de Santiago de Compostela na Espanha, Portugal, Suíça, França, Bélgica, Holanda, Irlanda, Estados Unidos e Tailândia. “Planejei uma viagem econômica e fiz trabalho voluntário em troca de hospedagem e comida em vários desses lugares”, conta Mônica. Com a pandemia, boa parte dos locais onde ela poderia fazer este escambo não vai sequer funcionar. “Eu iria ficar três semanas na Tailândia escalando e depois fazer um trabalho voluntário em um centro de mediação perto de Bangcoc, mas foi cancelado.”
No momento, ela está na praia de Tonsai. Ela entrou no país pouco antes do agravamento da pandemia. “Conversamos com bastante gente e vimos que na Tailândia ainda estava tranquilo – não tínhamos ideia de que a crise ia tomar essa proporção”, conta. A ideia era ficar três semanas, mas conforme a situação mundial agravou, ela se viu presa lá, devido às fronteiras fechadas. “Vamos ter que ficar aqui por mais tempo, é um lugar bem isolado, onde tem poucas pessoas, só se chega de barco. Muita gente voltou para casa antes das fronteiras serem fechadas e está bem vazio”, conta.
“Tive sorte de estar num país barato e de conseguir alugar um bangalô. Quem chegou um pouco depois já teve problemas por ser visto de forma mais suspeita”, conta. Como as fronteiras estão fechadas, ela não pode fazer nada além de esperar a poeira baixar. “Já desisti de conhecer melhor a Ásia. Eu estava pensando em ir para a Nova Zelândia para trabalhar, agora já não sei se será possível.”
Com o veto de escalar e risco de prisão para quem desobedecer, ela passa o tempo com outros turistas isolados, que formam uma rede de apoio. “Pelo menos é um lugar isolado e paradisíaco. Eu estava muito empolgada com a viagem, mas a pandemia trouxe um momento de reflexão. Dei sorte de explorar tantos países antes do corona. São experiências que não tem preço”, diz. Por hora, ela sequer pode fazer planos. “Só vou saber o que é possível fazer quando as fronteiras reabrirem.”
Camila Caggiano: vanlife adiada
A fotógrafa Camila Caggiano passou meses se preparando para ir até o Alasca com Safira, seu motorhome. Já contamos aqui como ela fez todas as adaptações sozinha em uma Fiorino, preparando-a para encarar do frio patagônico ao calor de desertos, escalando nos picos mais incríveis do caminho. Ela partiu de São Paulo em dezembro de 2019 rumo ao sul, e estava em Bariloche, na Argentina, quando a pandemia estourou.
Sem poder pagar 15 dias de hotel, sem poder acampar ou dormir no carro pelas regras da quarentena, achou um chalé abandonado numa propriedade isolada e se recolheu ali com um amigo. Mas o alarme da gravidade da situação foi quando apareceram militares do Exército argentino. “Fomos denunciados, e veio o Exército argentino averiguar. Mas eles mesmos nos disseram que não estávamos fazendo nada de errado. Fotografaram nossos passaportes, nos recomendaram de não sair dali e disseram que mandariam oficiais de saúde para checar como estávamos”, conta.
Com a quarentena decretada oficialmente, ela não poderia ir comprar comida com frequência e as multas para estrangeiros furando o isolamento são pesadas. Além disso, com as fronteiras fechadas para o turismo, ela não poderia mudar de país antes de vencer o visto de turista. Sem falar nos riscos à própria saúde e ao coletivo. “É o momento de estar em casa. Morando num carro me põe em risco e circular põe em risco os outros.”
A única opção de Camila foi retornar ao Brasil, deixando para outro momento a viagem. “Conseguimos entrar em Bariloche para ver nossa situação com o consulado e aproveitamos para nos abastecer com comida suficiente para cruzar a fronteira. Mas a mesma situação de todos os lugares: fila fora e no máximo três pessoas dentro do supermercado”, conta. Chegando ao Brasil, ela ficou chocada em ver aglomerações e pessoas agindo normalmente. “Estou rezando para que depois da pandemia as fronteiras não se fechem para o Brasil, porque o país está sendo visto como uma terra de loucos delinquentes que não tomam providência nenhuma.”
Julia Boratto: casa na bicicleta
A artesã Julia Boratto está no Sul do Brasil, em uma viagem de bicicleta sem data para voltar. “Entreguei minha casa em Santos, no estado de São Paulo, para fazer essa viagem. Não tenho uma residência para voltar”, conta.
Ela se apaixonou por viagens de bike quase por acaso. Num dia de estresse, Julia saiu para um pedal mais longo e fez seus primeiros 100 km em 12 horas. “Comecei a imaginar que dava para chegar em qualquer lugar de bicicleta.” Depois de mais algumas viagens curtas, decidiu cair na estrada para conhecer a América do Sul e vendeu tudo que tinha.
Julia partiu em dezembro e foi pega de surpresa pela pandemia. “Agora, nenhum lugar te recebe: camping, hostel. Não estão deixando as pessoas serem recebidas em lugares turísticos. A única forma de conseguir um lugar para pernoitar é chegando com algum contato, alguém que te abra a porta.” Por meio de amigos ou redes sociais como o Warm Showers, ela tem conseguido ajuda para acampar ou hospedagem solidária, em cidades pequenas.
“A parte do desespero e do susto já passou. Em Araranguá (SC), eu não estava acompanhando muito as notícias. Sou ourives e estava fazendo uma encomenda no atelier de uma pessoa conhecida. Quando a polícia chegou e começou a fechar os estabelecimentos, me dei conta da gravidade da situação”, conta a artesã.
A mudança de planos, contudo, foi parcial. “Estou vivendo um dia após o outro, vendo quais são as opções reais. Eu não tenho uma casa para voltar, minha vida agora é essa. A ideia inicial era ir para Uruguai e depois para a Patagônia argentina. Esse plano eu já cancelei. Estou pensando em me manter pelo interior, para ficar mais longe do Covid-19”, diz. Julia tem receio de em algum momento pegar o coronavírus e transmiti-lo a outras pessoas, então está tomando precauções de distanciamento social e evitando aglomerações.
Embora tenha encontrado muitas pessoas solidárias até agora, Julia sente que a pandemia mudou um pouco as relações. “Sempre existem os olhares de curiosidade quando você viaja de bike, mas percebo agora também os de julgamento”, diz. “Os alforges na bicicleta denunciam que você é viajante. Mas sigo acreditando que tem pessoas que vão entender a situação e querer ajudar. Como eu não tenho um lugar para retornar, não pretendo voltar para São Paulo. Eu tenho que continuar minha vida”, conta.