Continentes perdidos

Expedições inéditas levam brasileiros, italianos e venezuelanos à descoberta de imensas crateras dentro de montanhas remotíssimas da Amazônia, lançando luz às mais antigas e intocadas cavernas do planeta

Por Bruno Romano

HÁ UM CONTINENTE INTEIRO escondido no interior da Terra. Ele é intocado, escuro, frio e misterioso. E se divide em “ilhas” submersas, isoladas de qualquer intervenção até poucos meses atrás. É isso que revelam as primeiras investidas em cavernas recém-descobertas dentro dos chamados tepuis, gigantescas formações montanhosas que se espalham pela floresta amazônica. Em expedições ousadas e totalmente pioneiras, um coletivo de espeleólogos já conseguiu colocar os olhos nas entranhas desses verdadeiros santuários. A primeira espiada revela galerias e rios subterrâneos imensos, em uma paisagem tão incrível quanto improvável. Os próximos passos para dentro dos tepuis, dizem os especialistas, podem desvendar segredos da origem da vida na Terra.

The Churun River flows through the Diablo Canyon in the middle of Venezuela's Auyan Tepui.
SANTUÁRIO: Vista do cânion do Diablo e do rio Churún, ao norte do tepui Auyan, em uma remota região da Amazônia venezuelana (Fotos: Alessio Romeo/ La Venta)

Para chegar a esses “buracos” é preciso ir para cima. E para bem dentro da selva. Foi assim que exploradores de cavernas italianos e venezuelanos atingiram em 2014 o topo do tepui Ayuan, morada da maior queda d’água do planeta, o Salto Angel, na Venezuela. A viagem relevou que um experiente piloto venezuelano, Raúl Arias, estava certo ao suspeitar da existência de cavernas em seus recorrentes sobrevoos de helicóptero pelo parque nacional venezuelano Canaima, onde fica o Ayuan. O que ninguém sabia, no entanto, era que vários desses tepuis guardam surpresas científicas, abrigando únicos e ricos ecossistemas. Cada um completamente diferente do outro. Todos esculpidos sem a presença humana ao longo de milhões de anos.

Os registros do interior do Ayuan impressionam pela variedade de formas e cores. E pelo tamanho do complexo: pouco mais de 20 quilômetros de passagens já foram desvendadas. O local recebeu de seus descobridores o nome de Imawarí Yeuta ou “casa dos deuses”, no idioma indígena local. Tudo indica que nem sequer os nativos do pedaço, desta ou de outras gerações passadas, chegaram perto do enorme achado, tamanha a dificuldade de acessar sua entrada.

A huge gallery in the newly discovered Oköimo Yeuta cave in the Auyan Tepui. The expedition was in March 2014.
SALÃO DE GALA: Visual das galerias de quartzito venezuelanas da Imawari Yeutá

O espeleólogo venezuelano Freddy Vergara tenta colocar em palavras a sensação de entrar no tepui Ayuan. “Imagine que cofres de tesouro foram criados há milhões de anos com toda a informação genética do planeta”, diz. “Agora nós descobrimos como abrir esse cofre e estamos diante de verdadeiras jóias”, completa Freddy, presidente do grupo de espeleologia venezuelano Theraphosa e um dos privilegiados que acompanhou as primeiras descobertas em tepuis.

A REVELAÇÃO DE QUE O AYUAN escondia um novo universo embaixo da terra chamou a atenção de espeleólogos brasileiros do grupo Bambuí, coletivo presente em nove das dez expedições nas maiores cavernas e grutas do país nos últimos anos. A experiência no assunto levou os aventureiros a unirem forças com as equipes do grupo internacional La Venta, com base na Itália, e do Theraphosa, liderado por Freddy e outros aficionados pelo tema na Venezuela.

Na metade de 2015, La Venta e Bambuí elevaram o nível de suas expedições ao extremo e atingiram o interior de um imenso tepui na serra do Aracá, uma região amazônica a leste do Pico da Neblina, na divisa do Brasil com a Venezuela. Ali, um novo horizonte se abriu para os pesquisadores. Aracá e Ayuan marcam uma nova era na exploração do “submundo” do nosso planeta – e a aventura está só começando.

Loredana Bessone, a member of 2014 Young Laureate Francesco Sauro's expedition to the Auyan Tepui in March 2014, examines a forest of columns in the Ramo del Sangre (blood branch) of the Imawarì Yeuta cave.
AMAZÔNIA ÀS AVESSAS: Espeleóloga do grupo La Venta observa o interior do tepui Auyan, na Venezuela

Importantes descobertas como esta, no entanto, passam bem longe do glamour. Saindo de Manaus até a cidade de Barcelos (AM), no último mês de julho, o grupo de cinco brasileiros e quatro italianos enfrentou quatro dias intensos navegando pelos rios Preto e Aracá e outros dois dias de caminhada só para atingir o platô no alto da serra do Aracá. A investida contava com a guiada de nativos e um arsenal de comida e equipamentos, chegando a quase 700 quilos na balança (só de corda, eram mais de mil metros).

O espeleólogo brasileiro Ezio Rubbioli, de 52 anos, foi um dos que encarou o novo desafio. “O acesso aos tepuis era pior do que a gente imaginava”, conta Ezio, que participa de expedições do Bambuí desde 1984. Junto de outros integrantes do grupo, ele esteve em uma viagem inicial em 2014 para sobrevôo do tepui nacional e estudo da logística local. Só no ano seguinte, a trupe encarou de vez a mata úmida e as serras escarpadas. “O Aracá é diferente de tudo o que já vimos, até mesmo dos tepuis da Venezuela”, revela Ezio. Para entender ainda mais o novo ambiente, os espeleólogos buscam juntar mais recursos (e viabilizar acessos de helicóptero) para novas empreitadas em 2016. Até agora, toda a expedição contou com a ajuda de patrocínios isolados, incluindo até marcas de equipamentos de escalada.

O CARDÁPIO DE PERRENGUES na exploração dos tepuis é bem farto e variado. Durante cerca de seis meses do ano, os rios da região do Aracá não são navegáveis; esqueça fazer todo o trajeto caminhando, carregado de tralhas. Mesmo com ajuda de transporte aéreo, o tempo na região é bastante instável, e a chance de os tepuis ficarem cobertos de nuvens é uma realidade constante. Não há trilhas marcadas, e os próprios nativos têm dificuldade em achar caminhos. Na última expedição ao Aracá, um rio subiu repentinamente e alagou parte de um dos acampamentos. Outro dia, várias horas de caminhada na floresta foram perdidas após a equipe atingir um instransponível paredão. E por aí vai.

Foto Alessio Romeo (4)
EXPLORAÇÃO: Aqui e abaixo, cenas da expedição rumo à Serra do Aracá, com passagem pela caverna Maroaga, no Brasil (Fotos: Alessio Romeo/ La Venta)

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Para completar, o ambiente no topo dos tepuis é completamente diferente do que está abaixo. Como o alto dessas montanhas em formato de mesa está a mais de mil metros acima da floresta, surge ali um novo ecossistema, que mantém a típica umidade amazônica, mas traz novos elementos, como fortes ventos e mudanças bruscas de temperatura. Caminhar sobre os tepuis também é uma tarefa extremamente difícil e perigosa. Outro traço que faz as cavernas dos tepuis ainda mais únicas e desafiantes é o fato de serem esculpidas em maciços de quartzito – bem diferente do calcário, elemento comum na maioria das cavernas do globo.

Na explicação do espeleólogo Daniel Menin, um dos organizadores da expedição do Aracá, o quartzito é instável, e fica difícil fazer segurança para cordas, principalmente nos trechos mais verticais. “Esse tipo de rocha traz desafios à parte e exige técnicas diferentes de tudo o que a gente já fez até hoje”, conta Daniel. “Qualquer erro gera uma necessidade de resgate que se torna muito difícil, para não dizer impossível”, acrescenta. Por mais que a enorme experiência de brasileiros e italianos conte muito a favor (todos voltaram sãos e salvos), estamos falando de missões inéditas e imprevisíveis.

A visita inicial ao tepui brasileiro no Aracá aguçou os sentidos dos especialistas. As dificuldades da viagem não permitiram uma investida tão a fundo, mas já se confirmou algo importante: cada tepui é completamente diferente do outro. O único que eles guardam em comum é o fato de abrigarem importantes testemunhos do nosso planeta. Como explicam os estudiosos, o topo dos tepuis representava o antigo relevo da região. Tudo o que ficou para baixo, na altura da selva atual, foi erodido. É por isso que as formações por fora e por dentro dos tepuis são consideradas as mais antigas do planeta. “Como o acesso a eles é muito difícil, fauna e a flora evoluíram em um mundo à parte”, diz Daniel. Sobrevoos recentes revelaram novas fendas em tepuis a serem desvendadas em outras áreas remotas de Brasil, Venezuela, Guiana e Colômbia.

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PRECIOSA: A cachoeira do Eldorado, na brasileira Serra do Aracá

As futuras viagens e possibilidades de descobertas empolgam um dos maiores experts no assunto, o italiano Francesco Sauro. “Os tepuis são completamente distintos de qualquer caverna em que estive nos últimos 15 anos”, diz Francesco, sobre as inéditas formações vistas por ele no Ayuan e no Aracá. Na Venezuela, o italiano testemunhou a descoberta de um novo mineral e de imensas colônias de bactérias do tipo stromatolites, consideradas as criaturas mais antigas do planeta.

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AMPLIDÃO: A caverna Maroaga, no Brasil

“As fotografias que tiramos das cavernas são verdadeiros retratos do passado, e alguns cientistas estão chamando os tepuis de ‘ilhas no tempo’”, explica o especialista, que participa do grupo La Venta, reconhecido mundialmente após descobrir as minas de Naica, no México, morada de gigantescos cristais. Em palestras pelo mundo na busca por patrocínios para desvendar os tepuis, Francesco gosta de citar o clássico livro The Lost World, de Arthur Conan Doyle, escritor britânico que descreveu regiões remotas da Amazônia na década de 1910. Para Francesco, os tepuis são mesmo verdadeiros mundos perdidos. Sobretudo o que permanece isolado dentro deles.

“Queremos ir ainda mais fundo”, promete o italiano. A grande aposta da vez é o tepui Marahuaca, que se eleva a quase três mil metros do nível do mar em um pedaço inóspito e traiçoeiro da Amazônia venezuelana. Se encontrada a entrada certa, ele pode revelar um complexo sem precedentes. O prêmio de tanto risco e ousadia é promissor. Esse novo “continente negro” deve ajudar a decifrar segredos das conexões entre os mundos mineral e biológico. Também pode trazer novas respostas sobre a evolução dos seres vivos. Na imensidão e no isolamento dos tepuis, e nas suas improváveis cavernas, esses mistérios seguem muito bem guardados.

* Matéria publicada originalmnete na Go Outside 127, de março de 2016







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