De 28 de fevereiro a 29 de março, quase dois bilhões de muçulmanos ao redor do mundo observam o Ramadã, abstendo-se de comida e bebida durante o dia — incluindo muitos corredores dedicados.
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São 3h da manhã quando Hebah Hefzy sai da cama em Detroit, nos Estados Unidos. Ela tem uma longa corrida pela frente, que precisa terminar antes do amanhecer, para ter tempo suficiente de comer um suhoor rico em proteínas, a refeição antes do nascer do sol durante o Ramadã. Para ela, isso significa mingau de aveia com pasta de amendoim e castanhas. Em seguida, começa seu jejum de 12 horas. Esse período é dedicado à oração, ao crescimento pessoal e à reflexão, tudo com o propósito de cumprir um mandamento divino e se desconectar de um mundo cada vez mais materialista.
Hefzy fez história no ano passado ao se tornar a primeira hijabi — uma mulher muçulmana que segue a prática religiosa de usar um véu — a concluir a tradicional ultramaratona Western States 100. Ela concilia tudo isso com seu trabalho como neurologista vascular até o iftar, a refeição da noite que encerra o jejum do dia. No dia seguinte, a médica de 42 anos, corredora e mãe de três filhos, fará tudo de novo.
Do anoitecer de 28 de fevereiro até 29 de março, quase dois bilhões de muçulmanos ao redor do mundo observam o feriado, abstendo-se de comida e bebida durante as horas diurnas. Para os muçulmanos, o Ramadã é um dos períodos mais sagrados do calendário islâmico. Mas os treinos para a maratona não param durante esse mês.
Vamos encarar os fatos: jejuar por cerca de 12 horas por dia durante um mês não é o cenário ideal para nenhum corredor. Mas para muitos muçulmanos — incluindo medalhistas de ouro como Sifan Hassan, Mo Farah e Hicham El Guerrouj — correr durante o Ramadã faz parte de suas vidas. E, ao longo dos anos, eles descobriram como fazer isso funcionar.
Seguindo o fluxo
Hassan chamou a atenção do mundo ao vencer a Maratona de Londres de 2023 em sua estreia na distância, apesar de ter parado duas vezes durante a prova. Mais impressionante ainda: ela correu apenas três dias após o fim do Ramadã. Este ano, aos 32 anos, Hassan retorna à Maratona de Londres em 27 de abril com uma experiência valiosa.
“Todos os muçulmanos fazem o Ramadã por Allah Subhanahu Wa Ta’Ala. Mas também é ótimo que continuemos nos exercitando durante esse período, pois isso traz benefícios para o nosso corpo e também para o nosso espírito”, disse recentemente. “O Ramadã é uma das maiores formas de resistência para o corpo, além de fortalecer a mente e a espiritualidade.”
Para algumas pessoas, como Rahaf Khatib — treinadora de corrida certificada pela RRCA e moradora de Farmington Hills, nos arredores de Detroit (EUA) —, a chave é a flexibilidade. Em 2018, ela se tornou a primeira síria a completar todas as seis Maratonas Majors do mundo e, desde então, tem sido uma defensora pública dos atletas muçulmanos. Ela conta que, com o passar dos anos, sua perspectiva sobre treinar durante o Ramadã mudou.
“Eu costumava ser muito rígida com meus treinos, independentemente do Ramadã”, diz ela. “Mas agora, ao passar dos 40 anos, sou mais flexível.”
Ou seja, se ela sente que só tem energia para uma caminhada leve antes do iftar ou precisa pular um treino por completo, ela não força o corpo além dos seus limites. Ela continua mantendo o condicionamento aeróbico, mas reduz os treinos anaeróbicos e de VO2 máximo. Além disso, ajusta o treino de força para trabalhar com pesos mais leves e mais repetições. Para ela, o crescimento espiritual do Ramadã vem em primeiro lugar, enquanto o treinamento fica em segundo plano.
“Este é um momento para ouvir o seu corpo mais do que nunca”, diz ela. “Cada dia é diferente. Seus níveis de energia vão oscilar. Você precisa dar ao seu corpo tempo para se adaptar.”
Apesar do jejum — ou talvez por causa dele —, a nutrição é essencial durante o Ramadã. Khatib foca na hidratação, incorporando eletrólitos para obter o máximo benefício. Ela também consome sopas hidratantes, iogurte grego rico em proteínas e aveia. Esses alimentos ajudam a manter sua energia ao longo do dia.
Hefzy enfatiza a importância de beber muita água entre o pôr do sol e o amanhecer para evitar a desidratação durante o jejum, que pode durar de 12 a 16 horas diárias. Sua regra é ingerir cerca de dois litros de água nesse período.
“Depois de uma semana, é incrível como o seu corpo se adapta”, diz ela. “Seu estômago encolhe bastante, especialmente no último terço do Ramadã.”
Tirando o máximo do momento
Khatib descobriu que o movimento, na verdade, torna o jejum mais fácil. Ela tenta terminar seus treinos cerca de 10 minutos antes do iftar, para começar a se reabastecer logo após a sessão. Mas a flexibilidade continua sendo o ponto principal. O que funciona na primeira metade do Ramadã pode não funcionar na segunda.
Mo Abdin, um treinador de corrida e de força e condicionamento de 29 anos, de Londres, encaixa seus treinos sempre que pode, sem preferência entre manhãs ou noites. Já Haroon Mota, fundador da Active Inclusion Network, treina logo antes do iftar, para poder se reidratar e se alimentar imediatamente após o exercício.
“Minha recomendação é experimentar e encontrar uma rotina que combine com seus níveis de energia”, diz Mota. “Cada dia do Ramadã é diferente. O que parece fácil na primeira semana pode ser mais difícil nos últimos 10 dias, então é essencial ouvir o corpo e se adaptar.”
O poder do apoio mútuo
Treinar como um corredor muçulmano, especialmente durante o Ramadã, pode ser solitário. Foi por isso que Mota criou o Ramadan Challenge, um evento virtual iniciado em 2020, durante a pandemia, para incentivar pessoas ao redor do mundo a manterem a atividade física enquanto jejuam e arrecadar dinheiro para caridade.
“Eu sabia que o poder da comunidade faria toda a diferença”, diz ele.
Sua mãe, por exemplo, completou 150 km ao longo do Ramadã caminhando 5 km por dia. Sua filha, mesmo sem idade para jejuar, já participa da tradição familiar.
Por que correr durante o Ramadã?
Jejuar durante o dia por um mês já parece difícil o suficiente. Por que dificultar ainda mais com os treinos? Para muitos, o Ramadã não é apenas um desafio a ser superado, mas uma oportunidade de crescimento.
Mota, por exemplo, fez quatro treinos longos de 24 a 32 km enquanto jejuava, preparando-se para a Ultra-Trail Snowdonia 55K em maio.
“Ver o que seu corpo é capaz de fazer com o estômago vazio, sem comida nem água, é realmente inspirador”, diz ele. “Isso fortalece sua mente e mostra que seu corpo pode mais do que você imagina.”
Para os não-muçulmanos, o Ramadã pode parecer um período de privações. Mas para quem o observa, há muito a se ganhar — tanto espiritual quanto fisicamente.
“Se você se prepara para suportar dificuldades quando tem escolha, então, quando não tiver essa escolha, será mais fácil”, diz Hefzy. “As pessoas são mais fortes do que pensam. Se você muda sua mentalidade e acredita que pode fazer algo, você será capaz. Tudo é uma questão de força mental.”