Como correr uma ultramaratona?

Por Alex Hutchinson, da Outside USA

como correr uma ultramaratona
Imagem: UTMB/ Divulgação.

Logo após tropicar na linha de chegada da Ultra-Trail du Mont-Blanc 2019, o lendário evento de ultra de montanha, 56 corredores chegaram mancando na Escola Nacional de Esqui e Montanhismo na cidade turística francesa de Chamonix. Com o objetivo de descobrir como correr uma ultramaratona, havia uma equipe de cientistas esperando com uma sala cheia de equipamentos de laboratório para fazer uma varredura completa nos atletas.

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O problema: um dos testes exigia que eles corressem em uma esteira por quatro minutos enquanto sua respiração era medida. Mas depois do esforço descomunal de cerca de 170 km, muitos dos ultrarunners não conseguiam ficar na esteira por tanto tempo, então os cientistas alteraram o protocolo na hora e encurtaram a corrida na esteira para três minutos.

Estudar ultras é praticamente tão difícil quando fazê-las. É possível colocar voluntários para correr em uma esteira de laboratório por 24 horas? Bem, sim, você pode – e Guillaume Millet, um pesquisador da Université Jean Monnet Saint-Etienne na França (e ele mesmo um ultrarunner talentoso) fez isso, e publicou o artigo depois. Mas você obtém dados mais abundantes e realistas estudando ultrarunners em seu meio ambiente. Na verdade, é o jeito mais preciso de descobrir, do ponto de vista fisiológico, como correr uma ultramaratona Assim, Millet e seus colegas publicaram recentemente o sexto de uma série de estudos daquele UTMB 2019. Aqui estão alguns dos insights desses estudos sobre o que é preciso para correr pelas montanhas por horas a fio e como seu corpo responde ao desafio.

Longo e curto

Este ano, cerca de 10.000 corredores participarão de sete corridas UTMB diferentes ao longo de uma semana no final de agosto. Os corredores estudados em 2019 correram uma de duas distâncias “curtas” (40 e 55 quilômetros) ou três distâncias “longas” (100 km, 145 km e 170 km). A distância é apenas parte da história: a corrida mais longa, por exemplo, também inclui quase 10.000 metros de altimetria acumulada. O tempo de chegada dos homens em 2019 foi de cerca de 20 horas.

A gama de distâncias forneceu uma oportunidade perfeita para testar como a fadiga muscular da perna responde a diferentes durações de corrida. É bastante óbvio que seus quadríceps e panturrilhas ficarão mais fracos logo depois de correr 170 quilômetros. Mas é menos claro onde essa fadiga se origina. Nos seus músculos? No seu cérebro? A via de sinalização ao longo da medula espinhal que envia mensagens do cérebro para a medula espinhal? Millet e seus colegas submeteram os corredores a uma série de testes de força neuromuscular antes e depois das corridas. Houve um teste de força voluntária, mas eles também usaram estimulação magnética do cérebro e estimulação elétrica dos nervos para provocar contrações musculares involuntárias, a fim de descobrir exatamente onde a força foi perdida.

Depois das corridas longas, a força voluntária dos quadríceps diminuiu 38%, em comparação com apenas 27% nas corridas curtas. Parte da fadiga surgiu no cérebro: embora os indivíduos estivessem tentando empurrar o mais forte possível, o sinal de saída de seus cérebros era menor. Os próprios músculos também eram mais fracos: para um determinado nível de estimulação elétrica, eles produziam menos força (a medula espinhal desempenhava apenas um papel menor). Nos quadríceps, a diferença entre corridas curtas e longas era explicada por mais fadiga muscular, em vez de mais fadiga cerebral.

Surpreendentemente, porém, a força da panturrilha diminuiu 28% tanto após corridas curtas e longas: neste caso, a distância extra não pareceu fazer diferença. Quando você compara esses resultados com estudos anteriores de ultracorridas, fica um tanto confuso. Além de um certo ponto – cerca de 15 horas de corrida, os dados sugerem – corridas mais longas não parecem deixar seus músculos mais cansados. Isso pode ser porque você pode ir mais rápido em corridas mais curtas, e a intensidade é uma das principais causas da fadiga, principalmente se você tiver que encarar encostas íngremes. A imagem científica permanece obscura, mas se acontecer de você participar de uma dessas corridas, você pode adotar o mantra “depois de 15 horas, não vai ficar pior!” para se animar.

Homens e mulheres

Ultrarunning é um dos raros esportes em que as melhores mulheres às vezes vencem os melhores homens – um feito que sempre gera uma discussão sobre as diferenças fisiológicas entre os sexos e se as mulheres têm características amigáveis para ultras ​​que as ajudam a superar o limite em força muscular e contagem de glóbulos vermelhos que os homens obtêm com a testosterona. É um debate longo e complicado, mas uma das hipóteses é que os músculos das mulheres se cansam mais lentamente do que os dos homens. Parece que as mulheres têm, em média, uma proporção maior de fibras musculares de contração lenta ligadas à resistência e melhor fluxo sanguíneo para alimentar essas fibras. Nos dados da UTMB, as mulheres realmente pareciam mostrar menos fadiga muscular após a corrida.

Os homens eram mais fortes antes da corrida e mais fortes depois da corrida – o que faz sentido porque eles tiveram que impulsionar corpos maiores e mais pesados ​​através das montanhas – mas eles tiveram um declínio de força maior. Isso se encaixa com pesquisas anteriores que mostram melhor resistência muscular em mulheres.

Há uma reviravolta, no entanto. Os pesquisadores também pediram a cada corredor para classificar suas “intenções competitivas” em uma escala de 0 a 10, com 0 correspondendo a “Tentei fazer o melhor tempo possível” e 10 correspondendo a “Modo divertido: meu único objetivo era terminar o corrida.”

Os homens pareciam estar mais focados em seu tempo, especialmente nas corridas curtas – que, ao que parece, é onde as diferenças na fadiga muscular eram mais pronunciadas. Isso abre novas possibilidades em relação às diferenças sexuais, em potencial na competitividade.

Por um lado, essa ideia parece irrelevante para a questão de por que as corredoras de elite podem competir com os corredores de elite em ultramaratonas, porque mulheres que ganham corridas claramente não estão no “modo divertido”. Por outro lado, foi repetidamente demonstrado que as mulheres têm um ritmo melhor em provas de resistência, uma observação que pode estar ligada a um ritmo precoce excessivamente competitivo (ou, para usar o termo técnico, “estúpido”) dos homens.

Os novos dados de Millet não podem responder a essas perguntas, mas aumentam as evidências de que os padrões de fadiga tendem a ser diferentes em homens e mulheres. O elefante na sala, porém, são as taxas de participação. Apenas 257 dos 2.543 participantes em 2019 eram mulheres. Até que os números estejam mais uniformes, é arriscado tirar conclusões gerais sobre as diferenças de sexo.

Plano x montanhoso

Não é a primeira tentativa de descobrir quais características fisiológicas são importantes para corredores de ultra trail. Para maratonas comuns, os três parâmetros principais são VO2 max (o tamanho do seu motor aeróbico), limite de lactato (que diz aproximadamente quanto da capacidade do motor você pode usar durante um longo período de tempo) e economia de corrida (o eficiência do motor). Mas esses três fatores são menos úteis em ultras de trilha: outro estudo descobriu que os testes de laboratório padrão tinham uma capacidade preditiva decente acima de 50K, menos valor acima de 80K e pouca utilidade acima de 160K.

Duas das coisas que tornam as ultras de trail tão diferentes são (como o nome sugere) o terreno e a distância. Uma coisa é medir a economia de corrida em uma esteira no laboratório. Mas o quanto sua economia de corrida muda quando você está subindo uma colina íngreme? Ou quando suas pernas endurecem com 20 horas de corrida? Millet e seus colegas exploraram essas duas questões: eles testaram a economia de corrida em uma esteira nivelada e também em um gradiente de subida de 15%, antes e imediatamente depois das corridas.

Aqui, novamente, houve um resultado contra-intuitivo: a economia de corrida piorou (o que significa que os corredores tiveram que gastar mais energia para cobrir uma determinada distância) após as corridas curtas, mas não nas corridas longas. Pesquisas anteriores mostraram que tanto a intensidade quanto a duração do exercício podem prejudicar a economia de corrida, mas parece haver um limite em que, se você estiver indo devagar o suficiente, sua economia de corrida não sofrerá, não importa quanto tempo você estiver lá. Na verdade, um estudo anterior descobriu que a economia de corrida na verdade melhorou após a corrida de 320 km do Tour des Géants, talvez porque a provação é tão brutal que obriga o corpo a cortar brutalmente qualquer desperdício nos movimentos.

Quanto ao efeito da inclinação, pesquisas anteriores descobriram que os corredores mais eficientes em solo nivelado não são necessariamente os mais eficientes na subida: subir montanhas é uma habilidade única e específica. Mas os novos dados mostraram que as mudanças pós-corrida na eficiência em terreno nivelado foram fortemente correlacionadas com mudanças na eficiência em subidas, o que sugere que a causa por trás – provavelmente a fadiga nos músculos que altera a passada, e não mudanças no seu metabolismo – afeta o seu caminhar em qualquer terreno.

Para o bem ou para o mal, nada disso torna o UTMB mais fácil. Millet até mesmo co-escreveu um livro inteiro chamado “How to Succeed at UTMB”, reunindo a pesquisa científica acumulada e a sabedoria prática de corredores e treinadores especializados em ultras de trilha de montanha. É uma leitura pesada e mostra que, do ponto de vista fisiológico, essas corridas não são simplesmente maratonas extralongas. “É mais complicado”, disse-me Millet em uma conferência há alguns anos. “É provavelmente por isso que gosto tanto: é mais interessante.”







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