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Como um triatleta brasileiro tem ajudado a quebrar o tabu do veganismo nos esportes de alta performance

EM PAZ: Marcos feliz com a escolha e os resultados
EM PAZ: Marcos feliz com a escolha e os resultados

Por Bruno Romano

Para triatletas de longa distância, o Ironman do Havaí, que rola todo ano, é a definição máxima de respeito. Conquistar uma das disputadas vagas para o evento é como um prêmio – independente do que acontecer naquele desafiante, calorento e imprevisível circuito de Kona-Kailua. Estar por ali também é um sinal de que tantas horas de treino e esforço tiveram um bom motivo.

O tal “sonho havaiano” chegou à vida do paulista Marcos Faria em 2012, na mesma época em que este triatleta amador trocou sua dieta ovo-lacto-vegetariana para a vegana. Desde então, tem provado a cada dia que sua nova alimentação dá conta do recado – que inclui, nas provas de Ironman, nadar 3,8 km, pedalar mais 180 km e ainda correr 42 km numa tacada só.

Atletas de esportes exigentes, tanto física como mental e emocionalmente, têm adotado dietas veganas e levantado a bandeira de uma nutrição mais consciente e saudável (vide a edição de abril da revista Go Outside). Tudo isso acompanhado de uma porção de bons resultados, seja nos marcadores de saúde ou nos próprios feitos esportivos.

Aos 34 anos, Marcos segue a mesma linha nutricional da escaladora Steph Davis, capa da Go Outside. Desde que se tornou vegano, ele já soma duas participações na prova mais emblemática do Ironman (em 2012 e 2015), sendo um dos melhores em sua faixa etária.

Só em 2014, completou três provas do Ironman, uma em Floripa (SC), outra no Canadá e outra em Fortaleza (CE). É um feito e tanto para um triatleta amador que segue dividindo a dura carga de treinos com o trabalho diário.

Para explicar como a sua dieta à base de vegetais se encaixou perfeitamente no alto rendimento, ele contou sua trajetória pessoal, desvendando alguns mistérios para quem já pensou em seguir o mesmo caminho.

GO OUTSIDE: Você disse que está mais leve e disposto com a dieta vegana. O que isso significa exatamente no seu dia-a-dia de treinos?
MARCOS FARIA:
Quando disse isso, me referia mais ao estado mental, pois não tenho aquele peso de compactuar com a indústria agropecuária e o sofrimento animal. Como consequência imediata, meu corpo começou a responder melhor aos alimentos de origem vegetal.

Essa melhor resposta tem te trazido evolução no triathlon, ainda que a nutrição seja apenas uma parte desta evolução?
Uma dieta vegana tem todos os ingredientes para nutrir um atleta, seja qual for sua modalidade. O grande problema está no equilíbrio e na qualidade e informação sobre o assunto. Muitos equívocos ocorrem durante o processo de transição para o veganismo, como a questão da proteína. Essa busca por “alternativas” à proteína animal não faz sentido, pois temos muitos alimentos de origem vegetal que contem boas proteínas com ótima absorção – e elas são ainda melhores para o organismo quando combinadas com outros grupos alimentares.

Como começou sua relação com o esporte?
Meu pai me colocou na natação quando eu tinha dois anos, porque ele tinha medo que eu me afogasse – e não exatamente para que eu virasse atleta. Nadei por diversão até os 10 anos, quando mudei de escola e fiquei longe das piscinas até os 15. Neste período, engordei e cheguei a pesar 90 kg – sim, já fui obeso. Naquela época, continuava praticando esportes, gordinho mesmo. Mas eu era sempre reserva nos jogos coletivos, conseguia jogar apenas no gol no handball e no futebol. Isso me incomodava muito.

A partir daí como evoluiu para o triathlon e para o Ironman e como se deu a aproximação com o veganismo?
Voltei a nadar para acelerar a perda de peso e mudei radicalmente a minha alimentação. Não me tornei vegano naquele momento, mas parei com a carne vermelha. Eu já começava a me preocupar com o que eu estava comendo. Em três meses, perdi 23 kg. Comecei a buscar conhecimento até evoluir para o veganismo. Sou vegano há quatro anos, antes disso já era ovo-lacto-vegetariano, ou seja, ingeria derivados de leite e ovos. O contato com o triathlon ocorreu em duas fases na minha vida: de 1998 até 2003 e de 2009 aos dias de hoje. Todo triatleta sonha em fazer um Ironman, e eu não fugi à regra. Já são mais de 10 Ironmans até hoje, além de alguns Ironmans 70.3 (metade das distâncias) e de maratonas isoladas. Em 2012, quando me tornei vegano, participei da final do circuito, em Kona, pela primeira vez. Foram sete Ironmans sendo vegano. Olha eu aqui, contrariando os “especialistas”.

Na prática, você tem tido muito mais trabalho para planejar e preparar a sua alimentação?
Eu mesmo preparo a minha comida. Não tenho trabalho algum em deixar algum tipo de leguminosa de molho de um dia para o outro, cozinhar algumas batatas, mandiocas e preparar uma salada fresca. Na verdade, é bem mais fácil do que as pessoas imaginam.

Ainda é difícil encontrar um consenso entre os próprios nutricionistas sobre a dieta vegana voltada para atletas?
Eu cursei nutrição, mas não finalizei. Faltaram alguns estágios, já que na época tive que começar a trabalhar para me sustentar em outra área. Mas ganhei uma boa noção do assunto, pois completei todas as matérias. Mesmo assim, posso afirmar que 90 % do conhecimento que tenho hoje obtive pesquisando, testando e sentindo como meu corpo reagia. Alguns médicos e nutricionistas ainda preferem dizer algo como: “Se você se tornar vegano, perderá saúde e performance”. Já ouvi isso inúmeras vezes. Parece que é muito mais cômodo simplesmente negar esta possibilidade do que de fato pesquisar e obter o conhecimento necessário para discutir sobre dietas veganas e performance.

O que esse mergulho no assunto, junto com sua prática pessoal, tem te ensinado nos últimos anos?
Existem veganos que se alimentam mal e onívoros que se alimentam mal. Essa é a questão quando se avalia nutrição e performance. O que me incomoda muito é quando eu fico resfriado, por exemplo, ou quando não me saio bem em alguma prova e alguém fala que a explicação deve ser porque eu não como carne. No mundial de Ironman de 2015, quando tive um dia miserável, bem no final da bike, um brasileiro que estava na prova me passou tirando onda: “Aê vegano, vê se come uma carninha da próxima vez, viu?”. Fiquei quieto e continuei. Aquilo ficou na minha cabeça. Eu conhecia de vista esse atleta, muito bom por sinal. Pena que ele não se lembrava muito bem de todas as outras vezes que eu ganhei dele sendo vegano.

O crescimento no número de adeptos do veganismo em esportes já é uma realidade?
Sim. Acredito que esse movimento se deve à consciência que cada um atinge. Não temos mais espaço para fazer tantos animais sofrerem pelo simples fato de agradar nosso paladar. Tenho amigos veganos que desempenham bem, mas isso se torna secundário, pois o que vale mesmo é a consciência, a grandiosidade desta mudança para você e para o meio que vive. Viver em paz não tem preço.

Muito se fala sobre a vitamina B12. Como você lida com esta questão na sua alimentação?
A questão da B12 é controversa. A deficiência desta vitamina ocorre na mesma frequência em veganos e não veganos. Fatores internos de cada um podem influenciar, além da quantidade de vitamina ingerida. Eu uso um complexo vitamínico que contém uma boa quantidade de vitaminas do complexo B, inclusive a B12. Temos capacidade de estocar esta vitamina, mesmo que ingerida em micro doses. Essa particularidade tem sido pesquisada há algum tempo. Por isso, sempre vale realizar exames para verificar a quantidade dela no sangue.

Alguma dica para quem quer seguir o caminho do veganismo nos esportes?
O acompanhamento de médico e nutricionista fica a critério de cada um. Temos bons profissionais destas áreas com bastante conhecimento sobre o assunto, mas a esmagadora maioria deles é avessa ao veganismo. Se você quiser realmente entrar de cabeça nessa, pesquise, se informe, entre em grupos específicos, troque informação, vá atrás. Não custa nada, e quem ganha é você – e o mundo ao seu redor.







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