Em missão heróica e solitária, o cearense Gideoni Monteiro será o único representante do país no velódromo dos Jogos do Rio 2016 – o ciclista vai encarar a omnium, prova mais exigente do programa olímpico
Por Bruno Romano
PARA REINAR NO CICLISMO, não basta talento. É preciso estar pronto para sofrer. Multiplique essa realidade por seis para começar a ter ideia da missão de Gideoni Monteiro na Olimpíada do Rio de Janeiro. Esse ciclista cearense, de 23 anos, conquistou vaga para a omnium, modalidade que reúne meia dúzia de desafios técnicos e cruéis dentro do seletivo velódromo olímpico. Depois de confirmar sua participação na última chance possível, durante um mundial no último mês de março, ele se prepara agora para um desafio duplo: encarar a elite do esporte, enquanto luta para se adaptar à prova mais nova (e dura) do ciclismo de pista olímpico.
A primeira luz que iluminou esse caminho incerto foi o brilho da medalha de bronze da omnium no Pan de 2015, no Canadá. Gideoni chegou a dominar o ranking do primeiro dia de competições (entenda a modalidade no quadro desta reportagem) e acabou como o terceiro melhor do continente, em seu segundo ano de dedicação ao ciclismo de pista. “A omnium se encaixou muito bem nas minhas características. Mesmo sendo uma prova muito difícil, eu me senti bem competindo nela”, conta Gideoni, que vive agora uma corrida contra o tempo – o do cronômetro das competições e o do calendário até a Olimpíada.
Trabalhar detalhes para evoluir se tornou quase um mantra quando ele fala de sua preparação. Treinar para a omnium, incluída na Olimpíada nos Jogos de Londres 2012 e geralmente definida por milésimos de segundo, é sempre sinônimo de muito esforço. Por isso, Gideoni faz duas sessões diárias. A ideia é passar semanalmente por todas as provas, alternando pedaladas na estrada e na pista, além de um bom tempo na academia. “A carga de esforço é alta, mas meu corpo tem absorvido bem”, conta, depois de mais um treino pesado no velódromo de Indaiatuba (SP), cidade que escolheu para viver quando decidiu focar na pista.
A nova instalação no interior de São Paulo tem atendido, aos poucos, às principais especificações internacionais e deve ajudar a vida de mais atletas brasileiros no futuro. Pela região, Gideoni chega a girar 700 km por semana nas épocas de mais rodagem. Quando está mais próximo da competição, o foco passa a ser a intensidade (leia-se: pernas queimando e ainda mais sofrimento). Nesse período, os trabalhos na pista são diários. “Eu até consigo simular algumas situações na estrada, mas na maioria delas acabo indo para o velódromo, quando chego ao limite do corpo”, relata.
O brasileiro tem se destacado nas três provas da omnium nas quais prevalece a resistência. É o caso da scratch race e das corridas de eliminação e pontos – esta última fecha o programa e costuma decidir as medalhas. A confiança e os bons resultados ainda não apareceram, no entanto, nas etapas em que a velocidade pura fala mais alto. Melhorar a classificação em cada uma delas (não necessariamente ganhar, já que o que vale é a consistência geral) é a meta atual. Chegar à última prova brigando por posições seria a mostra definitiva de que Gideoni conseguiu diminuir o degrau dos favoritos às medalhas olímpicas no Rio.
A OMNIUM PODE SER individual, porém em vários momentos depende da percepção dos adversários na pista. É uma sintonia fina, apurada à base de experiência. Responder bem às decisões dos rivais é uma das chaves para o sucesso. Um erro de estratégia, por outro lado, é capaz de colocar todo o treino, por mais que bem feito, ladeira abaixo. Gideoni já entende bem como se portar nessa jaula de feras que transforma o velódromo em uma competição tão rigorosa. Ele garante que a enorme rivalidade é sadia, ainda que reconheça que foi preciso batalhar pelo seu terreno.
“Todo mundo se respeita, mas há sempre uma tensão no ar”, conta. “O pessoal já me conhece e vê que o Brasil está ali para disputar, não apenas participar, só que eu precisei conquistar meu espaço”, explica o brasileiro. Para intimidar os adversários na omnium, palavras e provocações parecem não ter lugar. A resposta precisa ser dada na pista. A cada prova, curvas e gotas de suor. “Dos 18 classificados para o Rio 2016, todos têm chance de brigar por medalha ou pelo menos lutar para vencer uma das provas”, garante Gideoni.
Talvez o único que destoe da maioria seja mesmo o colombiano Fernando Gaviria, atual bicampeão mundial da omnium, seguido de perto por europeus e atletas da Oceania, em um segundo escalão. O “sangue frio” e a capacidade de desempenhar sob muita pressão, diz Gideoni, talvez seja o segredo de Fernando atualmente. No último mundial, o colombiano conseguiu tirar uma diferença absurda de pontos na prova final do programa para vencer. Tanto Fernando como Gideoni – e, aliás, todos os outros “olímpicos” – não abandonaram de vez as competições em estrada. Elas são parte fundamental da preparação, até mesmo para aguentar a resistência dos desafios mais duros na pista.
Neste ano, Gideoni venceu o nacional Torneio de Verão pela Memorial, de Santos, equipe que defende desde 2014. Sua carreira, inclusive, foi toda construída no asfalto, antes de se achar na madeira siberiana, típica dos velódromos de ponta. “Tenho muito carinho pelo meu começo no ciclismo e pelas minhas origens”, diz o brasileiro sobre a infância, quando passava a maior parte do tempo entre bikes e peças em uma loja especializada em Aracaju (SE). O dono era seu tio, Roberto, que não só lhe deu sua primeira bike como foi o primeiro patrocinador, ainda em provas juvenis, quando o atleta tinha cerca de 13 anos.
Gideoni nasceu há muitos quilômetros dali, em Groaíras (CE), mas aos 2 anos já foi para Aracaju. Na adolescência, seguiu para Iracemápolis (SP), para correr pelo time da cidade e começar a trilhar o sonho de ser um ciclista profissional. Sair cedo de casa ajudou a formar atleta e pessoa. Da escolinha de Iracemápolis, época em que competiu na categoria júnior, partiu para a Europa. Passou três anos (2009 a 2011) em uma equipe italiana e correu um Giro d’Itália Sub-23. Mais do que aprender uma nova língua e viver em uma cultura diferente, Gideoni formou ali suas bases de profissional. “Quando falo de detalhes hoje, percebo que aprendi a importância deles naquela época. A alta performance é definida nas pequenas coisas”, diz.
Sua trajetória até a Rio 2016 ainda teve passagem pela Suíça, em um intensivo intercâmbio em duas rodas, ainda no ciclismo de estrada. Gideoni também correu duas temporadas pela equipe de Ribeirão Preto (SP), em 2012 e 2013, terminando sua fase mais “estradeira” da carreira. Por pouco, não foi obrigado a se afastar do esporte, devido a um acidente. Junto de um companheiro de equipe, ele pedalava durante um treino pela região de Ribeirão. Um caminhão cruzou a pista na contramão e o atingiu em cheio. Risco de vida, grave fratura na bacia e três meses de molho. “São momentos em que você amadurece bastante”, resume Gideoni sobre a experiência.
A partir de 2014, sua história muda mais uma vez, agora com um tom bem mais feliz. Há apenas dois anos, Gideoni decidia focar na omnium, com apoio de treinadores como Emerson Silva e dirigentes da Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC). Uma mudança corajosa, feita quase no escuro, mas amparada pela equipe fora da pista. “Experimentei a omnium, gostei e vi que poderia ter bons resultados”, lembra. De “cobaia” a promessa, e de promessa a realidade, tudo foi muito rápido, como cada volta de 250 metros (inclinada e em altíssima velocidade) que marca o ciclismo em velódromo. “Quero ser muito competitivo no Rio e sei que o resultado será consequência de tudo o que fizer até lá.”
Além de talento e força de vontade, Gideoni tem consciência de onde está. Sua dedicação já o levou ao grupo olímpico, fruto de uma seleção natural absurda, baseada em muito esforço e em uma perícia acima da média em cima da bike (já tentou pedalar em um velódromo?). “Continuo aprendendo até hoje, e a cada prova conheço um novo detalhe. Mais para frente, com certeza vou colher o que estamos plantando agora”, avalia Gideoni, sobre os caminhos que tem ajudado a abrir. Se não fosse sua biografia de superação, alguém poderia até duvidar dessas palavras. Mas ele tem escrito sua história com mais ação do que falação – o único jeito, aliás, de se dar bem em um velódromo.
Bem-vindo à omnium
Entenda a modalidade mais dura do ciclismo de pista, com seis provas em dois dias*
DIA 1
> Scratch race: Todos na pista, como em um pelotão de estrada; vence quem cruzar a linha de chegada na frente após 15 km (ou 70 voltas).
> Perseguição individual: Batalhas homem a homem de 4 km na luta pelo menor tempo.
> Corrida de eliminação: Prova coletiva; o último de cada volta é eliminado, até sobrar apenas um atleta.
DIA 2
> Contra-relógio: Duelo individual pelo menor tempo em 1 km (ou 4 voltas).
> Volta lançada: Disputa explosiva e solitária em volta única (250 metros), largando em movimento.
> Corrida de pontos: Etapa coletiva de 40 km (ou 170 voltas), fechando o programa.
* Cada etapa gera pontuação (menor para os primeiros, maior para os últimos) baseada nos tempos. Vence a competição geral quem somar menos pontos.
Cadê o velódromo?
Obra mais atrasada da Rio 2016, pista olímpica teve evento-teste cancelado
O velódromo da Olimpíada do Rio só deve receber atletas no fim de junho, em uma série aberta de treinamentos. O evento-teste da modalidade, marcado para abril, foi cancelado devido ao atraso nas obras, estipuladas em R$ 147 milhões. A decisão teve aval do Comitê Olímpico Internacional (COI), depois de o Comitê Organizador e a empresa Tecnosolo, responsáveis pela construção, alegarem demora na entrega das lâminas de madeira importadas – a instalação da pista é feita por uma companhia alemã especializada. Quando finalizado, o espaço terá capacidade para cinco mil espectadores, dentro do Parque Olímpico, na Barra da Tijuca. As provas de pista estão marcadas de 11 a 16 de agosto; saiba mais em gooutside.com.br.