Respeito é bom e conserva os dentes, já diziam nossos avós. Por isso, e para poder praticar seu esporte sempre em paz, é preciso prestar atenção em algumas “regras do esporte” que na verdade tratam de boa convivência nas ondas, nas paredes e nas trilhas.

Não estamos sugerindo que você cumprimente um por um do crowd toda vez que varar a arrebentação, nem que peça desculpas cada vez que passar por uma poça de lama com sua bike e respingar no seu parceiro de pedal. Estamos falando em respeito, tolerância e colaboração mútua entre os atletas – ingredientes essenciais para um lorde outdoor. Veja a seguir alguns exemplos de boa e má educação, e as consequências que essas atitudes podem trazer.

Vale lembrar que com a pandemia que se espalhou pelo mundo a partir de março de 2020, uma regra de ouro passou a valer: cuidado para não contaminar os outros. Ao usar um espaço público aberto para treinar, use máscara se houver pessoas ao redor. Mesmo que elas estejam a mais de um metro de você. Não marque eventos com aglomeração, não cumprimente os outros tocando-os, mantenha o distanciamento social. E respeite as regras locais de restrição de movimento.   

Surf

Os exemplos mais clássicos de desentendimentos estão no surf, já que os picos de ondas boas e solitárias estão cada vez mais raros. Quase sempre, há mais surfistas do que ondas e, quando o mar bomba, é comum ver até oito braços remando numa mesma onda.

As regras do esporte: A preferência será sempre do surfista que estiver mais perto da espuma, e que, portanto, terá uma extensão maior da “parede” para percorrer. Se você for um surfista de fora num mar cheio de locais, o ideal é que não fique disputando ondas na remada, como se fosse surf competição. Tenha paciência que certamente uma virá exclusivamente pra você.

As gafes: rabear (dropar na frente de outro que está na preferência). Dar uma lavada (“rasgar” próximo a outro surfista, jogando a rabeta da prancha para frente e espirrando água) num desconhecido. Revelar seu espírito competidor num fim de tarde ameno e propício à diversão.

As tretas: Há lugares onde o localismo é levado a sério e qualquer vacilo pode fazer o couro comer – como aconteceu no final da década de 1980, com os irmãos Almir e Picuruta Salazar, em Rocky Point, Havaí. Almir vinha surfando e, ao desviar de um outro surfista que voltava ao outside, deu uma lavada nele. “O cara era um black trunk [surfista havaiano pouco amigável com os haoles ou surfistas de fora] e juntou uma galera na praia querendo socar o Almir”, conta Picuruta. “O Fast Eddie [Eddie Rothman, “chefão local”] ofereceu 100 dólares por cada brasileiro que fosse esmurrado”, completa. Os irmãos precisaram recorrer ao consulado dos Estados Unidos no Brasil, porque nem a polícia havaiana estava disposta a ajudá-los. “Demorei quatro anos para retornar ao Havaí. Depois fui até patrocinado pela DaHui, a marca do Rothman, e ficamos amigos dos black trunks”, diz Picuruta.

No tow-in, modalidade em que o surfista é rebocado por um jet-ski em ondas que ultrapassam os 20 pés, também rolam umas saias justas. O pernambucano Eraldo Gueiros, grande representante mundial desse estilo de surf, já passou um sufoco em Jaws, na ilha havaiana de Maui. Sem perceber que estava interferindo na preferência da dupla americana Brad Gerlach/Mike Parsons, seu parceiro Carlos Burle insistiu em colocá-lo na onda. “Tive que dropar, não dava pra hesitar. Só que o Gerlach estava na minha frente e atrás de mim tinha um lip monstruoso querendo me esmagar”, recorda-se Gueiros.

Nem a presença feminina ameniza a briga pelas valas. “Os homens costumam aliviar uma disputa se o crowd está tranquilo, mas ceder uma onda para uma mulher eu já acho difícil”, conta a surfista Maya Gabeira. Já para Silvia Nabuco, que tem algumas temporadas no Havaí na bagagem, há ainda aqueles que dão uma de joão-sem-braço. “Eles simplesmente dizem ‘não te vi’, e não gostam quando chamamos a atenção deles. Chego a pensar, será que se essa pessoa estivesse dirigindo um caminhão, ela entraria numa estrada movimentada sem olhar, só por se sentirem maiores?”, desabafa.

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Windsurf

A disputa por ondas também é tema do windsurf, esporte que sofre total influência dos ventos.

As regras do esporte: se dois windsurfistas vierem em sentidos contrários, a preferência é daquele que está a favor do vento. No wind wave (windsurf em ondas), aplicam-se as mesmas regras do surf.

As gafes: Velejar com um equipamento já bastante usado quando o mar estiver em condições pesadas, ou seja, quando a velocidade do vento estiver acima dos 25 nós – as chances de o mastro quebrar ou de a vela se soltar são grandes. Fazer alguma manobra sem prestar atenção se há outro windsurfista vindo logo atrás, o que pode causar uma colisão.

As tretas: “Tem vezes que você está vindo na onda e o outro cara inverte a base, aplica um upwind e acha que tem a preferência”, diz Kauli Seadi, um dos principais windsurfistas brasileiros e campeão mundial de wind wave. Upwind é quando o atleta deixa a mão direita na frente, mais próxima do mastro, o que indica que está indo a favor do vento, e por isso tem a prioridade. “Coisas desse tipo costumam acontecer no Havaí, mas os windsurfistas em geral são pacíficos. Somos uma grande família. O que pode ocorrer é uma ou outra confusão em regatas, por conta das ultrapassagens, mas nada sério”, explica Seadi.

BRIGA DE GIGANTES: Jason Polakow (vela azul) foge da interferência de Björn para seguir na onda

Escalada

Na maioria das vezes, o stress que rola na escalada é devido à alteração de vias.

As regras do esporte: Respeitar a natureza e não bater grampos muito próximos ou desnecessários, que “poluem” a rocha. Não cruzar vias, o que pode causar um tombo fatal se houver escaladores em ambas – uma corda “queima” a outra e há o risco de uma arrebentar, como duas linhas de pipa que se cruzam. Não abrir novas vias muito próximas a antigas, o que os escaladores chamam de “plágio”. Não monopolizar uma via que se está malhando.

As gafes: Fixar grampos extras quando encontrar alguma dificuldade, o que injuria os conquistadores da via. Atirar a corda para baixo durante um rapel sem avisar ou soltar pedras sem saber se há alguém logo abaixo. Acender um cigarro no alto da falésia. Construir vias de cima para baixo, no rapel, sem saber se isso vai contra os princípios dos locais. Arrancar a vegetação para dar sequência à construção de alguma via. Levar aparelhos de som para a falésia, fazer arruaça. Ninguém vai vigiar se você levou uma cervejinha para o fim da escalada, mas exageros que perturbem os outros e os donos da propriedade rural onde está a falésia são imperdoáveis.

 

As tretas: “Certa vez, colocaram um grampo numa via que eu tinha batizado. Mas foi por um motivo perdoável: fazer a ancoragem da corda para descerem de rapel. Senão o mérito da conquista vai por água abaixo”, diz escalador Alexandre Portela.

Mountain bike e ciclismo

Ao contrário das ondas, lugar para pedalar é o que não falta. Mesmo assim, ainda rolam mancadas nas trilhas e estradas. Nas competições é onde o bicho pega mesmo: pode ir se acostumando com esbarrões e brigas por ultrapassagens.

As regras do esporte: Pedir licença com educação para fazer uma ultrapassagem, de preferência avisando se vai passar pela direita ou esquerda. Numa trilha, caso precise empurrar a bike, fique no canto e facilite a passagem de outros ciclistas que vêm mais rápido. No ciclismo de estrada e no moutain bike cross country, é normal alguns pelotões se formarem durante as competições, para que os primeiros sofram com o vento enquanto que os demais, “encaixotados” no vácuo, façam menos esforço. Até aí, tudo certo, desde os ciclistas se revezem nessa liderança.

 

As gafes: Trancos, ombradas e berros ao pé do ouvido. Ficar só no conforto do fim do pelotão.

As tretas: “Já levei uma ‘tatuagem’ da coroa da bicicleta de uma adversária em uma Copa do Mundo, quando estávamos carregando nossas bikes”, relata a mountain biker mineira Jaqueline Mourão.

O bicampeão da Copa Internacional de mountain bike, Edivando Souza Cruz, critica o blefe de alguns ciclistas na hora de revezar o vácuo. “Quando há dois ou mais atletas, a ideia é ir se substituindo no vácuo para tentar abrir vantagem dos demais competidores. Só que sempre tem aquele que acaba dizendo que está se sentindo mal e que não tem forças para puxar o bloco. E, na reta final, por estar mais descansado que o restante, o espertinho toma fôlego e ultrapassa todo o pelotão”. É uma mancada feia, que quebra as regras do esporte não ditas. Nessas horas, o grito de “sai da frente, porra” do ciclista que anuncia uma ultrapassagem não é tão indelicado assim.

 

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2007 e atualizada em janeiro de 2021)

 







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