O processo de troca de faixa é um ritual famoso no jiu-jitsu. À medida que o praticante avança no sistema de graduação, suas habilidades e responsabilidades no tatame também aumentam.
A família Gracie é mundialmente famosa por ter fundado o jiu-jitsu brasileiro, arte marcial com raiz japonesa que conquistou grandes atletas de diferentes modalidades. Isso deu aos Gracie uma aura única e, mesmo longe de serem invencíveis, os integrantes da família parecem sempre dispostos a colocar os limites à prova.
Aos 33 anos, Cesalina Gracie não foge à regra. Carioca radicada nos EUA, ela era uma legítima “faixa branca” no montanhismo, sem nunca ter escalado uma montanha até alcançar o cume do Everest (8.848 metros) no dia 22 de maio deste ano.
Neta do lendário Carlos Gracie, considerado o pai do jiu-jitsu brasileiro, ela precisou lidar com desafios físicos e mentais extremos durante sua jornada, usando a base no jiu-jitsu como alicerce.
Agora, Cesalina quer dividir os aprendizados da montanha mais alta do planeta com suas alunas na cidade de Los Angeles, onde comanda a primeira e única escola de jiu-jitsu do mundo voltada exclusivamente para garotas.
De sua residência na Califórnia, Cesalina conversou com a Go Outside sobre as grandes lições que trouxe na bagagem depois de sua temporada no Himalaia.
Go Outside: Como surgiu a ideia de escalar o Everest?
Cesalina Gracie: Na verdade isso nunca esteve nos meus planos; escalar o Everest não era um sonho de criança. Apresento uma série aqui nos EUA e em um dos episódios entrevistamos o Nims Purja (Nirmal Purja, dono de vários recordes mundiais no montanhismo). Depois da gravação ele chamou algumas pessoas do programa para saltar de paraquedas, mas fui a única que apareceu. Ele gostou desse comprometimento e me convidou para ir ao Everest. A ideia inicial era fazer o trekking até o Acampamento Base e depois escalar o Lobuche (6.119m), uma montanha que tem vista para o Everest. Eu levei o desafio a sério e me preparei muito pensando em escalar o Lobuche, que tem 6.000 metros, o que não é brincadeira. Mas em todas as minhas anotações eu só escrevia sobre o Everest. Ali o sonho de escalar a montanha mais alta do mundo já entrou na minha vida.
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Como foi essa preparação?
Entre o convite do Nims e o início da temporada no Everest eu tive apenas sete semanas, um tempo curtíssimo de preparação, ainda mais para quem nunca havia escalado uma montanha. Isso já me trouxe os princípios do jiu jitsu, pela maneira como respondemos quando uma oportunidade aparece na nossa frente. Aceitei os riscos, mas sabia que a única forma de minimizá-los seria com um treinamento sério. Isso era inegociável. Procurei o Mike McCastle, um dos grandes treinadores de atletas de alta montanha do mundo, e ele topou fazer meu treinamento, adaptando um protocolo de 20 semanas para as sete que eu tinha.
Foi um treinamento específico para alta montanha?
Sim, tive que fortalecer toda a parte mecânica de tendões, ligamentos, para conseguir escalar sem nada que me impossibilitasse fisicamente. Todas as minhas sessões de treinos duravam entre três e três horas e meia, sempre puxando no limite. Também tive que ampliar minha capacidade de VO2 máximo, porque eu trabalhava muito em uma zona mais explosiva, um pouco por causa da luta. No jiu jitsu são rounds curtos, você treina uma, duas horas no máximo por dia. Nunca tinha feito treinos de 3:30 horas. Já na quarta semana, ainda treinando pro Lobuche, fizemos um camp de três dias em altitude no Oregon. Foi uma imersão para avaliar minha situação, e ali o Mike me disse que pelos números estava em condições de tentar escalar o Everest.
Essa foi a temporada mais mortal de todos os tempos no Everest. Isso chegou a abalar sua confiança em algum momento?
Quando realmente decidi escalar o Everest, com o sinal verde do Mike e do Nims, tive só duas semanas para deixar tudo pronto, inclusive conseguir os equipamentos específicos para 8.000 metros, então a pressão aumentou ainda mais. E assim que pousamos no Nepal a primeira notícia que veio foi sobre a morte de três sherpas experientes que instalariam as cordas na Cascata do Khumbu. Então antes do desafio físico da montanha, o desafio mental já estava ali. Até ali, eu tentava compensar a falta de experiência com muito treinamento e aprendizado sobre técnicas do montanhismo, mas as mortes, o clima adverso, são coisas que fogem do nosso controle. Não tinha ideia o quanto os princípios do jiu jitsu seriam cruciais na minha jornada.
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Foi a base no jiu jitsu que te fez seguir adiante?
A maioria das pessoas pensa que o jiu jitsu é uma prática física. “Ah, eu vou aprender essas técnicas, essas finalizações, vou ficar forte fisicamente e usar meu corpo para sair vitorioso”. Mas a parte física é só uma consequência do treinamento. Na verdade, o jiu jitsu te prepara para lidar com qualquer tipo de emoção, te dá autoconfiança, permite ver as coisas com mais clareza e tomar decisões difíceis. É uma arte marcial que te oferece ferramentas para controlar o seu sistema nervoso em situações de perigo e desconforto. Tudo de uma forma construtiva, sem traumatizar. Costumamos tomar as piores decisões da vida quando estamos pressionados e com medo, e normalmente esses são os momentos em que desistimos.
Poderia falar mais sobre o seu mindset nestes dias na montanha?
A habilidade de tomar decisões em momentos de estresse e de perigo. É uma característica que vem totalmente do jiu jitsu. Esse princípio de conexão, de estar conectado consigo mesmo e com o ambiente ao seu redor, também é reflexo do jiu jitsu, um esporte onde o tempo todo tem alguém ali querendo te enforcar. E no Everest esse oponente é a montanha. A montanha te testa de todas as maneiras que você possa imaginar.
Como foram os dias de aclimatação?
A maioria das pessoas faz dois ciclos de aclimatação, ou até três, antes de atacar o cume, mas fiz apenas um. Isso porque estava me sentindo muito bem. Todos os dias fazia 30 minutos de uma técnica de respiração que aprendi no jiu jitsu com minha família. Um problema que acontece na montanha e muita gente não sabe é que nosso pulmão começa a falhar, você começa a usar cada vez menos ele, então no final da viagem seu pulmão está operando numa capacidade bem menor. A respiração permitiu que meu corpo se mantivesse saudável. Estava transportando oxigênio para as minhas células e para meu cérebro. Só fui usar máscara de oxigênio saindo do Camp 3 pro Camp 4 já no ataque ao cume. Não usei oxigênio em nenhum outro momento. Não tenho a menor dúvida de que essa minha disciplina também vem do jiu jitsu, de ter um sistema de rotina montado e seguir aquele sistema.
Fale sobre alguns desafios que não esperava encontrar.
A montanha é um ambiente predominantemente masculino, então as mulheres sofrem muita pressão, muito bullying. Várias vezes tive que usar o jiu jitsu verbal e a postura no tatame para impor limites com os líderes da minha própria expedição. Fui ameaçada de cancelarem minha viagem, recebi ordem no rádio para voltar ao Base Camp; passei por várias situações que, sem a força interna e a postura do jiu jitsu, a autoconfiança de não me submeter a pessoas abusivas, me impediriam de chegar ao topo. Além de toda a guerra que é enfrentar o ambiente perigoso da montanha – com direito a pegar uma avalanche no meio do Khumbu e cair em uma fenda – como mulher também precisei me impor diante de vários comentários desrespeitosos e uma pressão externa que dizia que não ia conseguir.
Quem foi o Sherpa que estava com você?
A pessoa mais importante é seu Sherpa. Acho que eles merecem muito crédito. Quando estava no Acampamento 2 me colocaram com um guia que nunca havia subido o Everest. Isso me deixou totalmente insegura, achei um absurdo. Ele ia descobrir a montanha junto comigo? Era um montanhista experiente, mas nunca tinha feito aquilo, e eu queria alguém que já tivesse feito aquela rota. Decidi trocar de sherpa no meio da jornada e tive que brigar com minha agência por isso. Nesse impasse conheci o Lakpa Dendi Sherpa, que é recordista mundial em números de escaladas no menor tempo no Everest. Ele estava voltando de outra expedição e topou subir comigo, fazendo um grande sacrifício físico, até pra ele. Por causa de várias situações que passamos durante a subida, como pegar duas garrafas extras de oxigênio no Camp 4 do Lhotse, fui percebendo que se não fosse ele jamais teria chegado ao cume.
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Pensou em desistir em algum momento?
Não pensei em desistir, mas isso não quer dizer que não ficava me perguntando o tempo inteiro o que estava fazendo ali (risos). Você realmente se questiona sobre tudo. Será que eu consigo? Será que vou morrer? Passa um filme na cabeça. Mas sabia que era o maior desafio da minha vida, e nesse ponto a conversa que temos com nós mesmos é a principal lição que podemos tirar. Apesar de sempre buscarmos por mentores, é a conversa interna que determina o nosso futuro e o que somos capazes de atingir. Então antes de começar eu sabia que enquanto eu estivesse respirando e andando com minhas próprias pernas, não iria parar. Se a qualquer momento eu me permitisse pensar em desistir ou voltar pro Base Camp para dar uma recuperada, esse depois nunca chegaria. Você tem que ter habilidade de se recuperar no mesmo momento e seguir em frente.
Quais as principais lições você leva do Everest?
Quando fui para o Everest achei realmente que iria usar apenas as técnicas de montanhismo que tinha desenvolvido e que o foco do jiu jitsu poderia me ajudar na subida, mas vai muito além disso. O que essa experiência me mostrou, (uma pessoa que nunca tinha escalado) é que um esporte como o jiu jitsu pode compensar a falta de experiência em outras áreas. Cada experiência na montanha é única, mas uma coisa em comum é que todos somos colocados à prova em situações extremas, onde precisamos tomar decisões sob pressão. E a principal habilidade que a gente tem que ter na vida é essa nossa capacidade de tomar decisões e lidar com conflitos. Isso é universal. Vale para quando você decide trocar de emprego, quer sair de um relacionamento difícil, curar algum trauma, a gente precisa tomar decisões difíceis sempre. Então essa viagem ao Everest mudou a minha vida porque reforçou muito mais o propósito do jiu jitsu para mim.
Pretende se dedicar mais ao montanhismo?
Todos me perguntam isso. É claro que escalar logo de cara uma montanha como o Everest abriu novas portas, mas agora eu só quero voltar para as minhas alunas e compartilhar as experiências que tive na montanha. Meu propósito nunca esteve tão forte. Hoje temos uma metodologia totalmente baseada em uma abordagem holística do jiu jitsu, que usa psicologia. Muito além da técnica da arte marcial, trabalhamos postura, linguagem corporal, inteligência emocional, técnicas de liderança, aprender a falar em público. É um jiu jitsu voltado para a vida, com metodologia baseada em situações do dia a dia, mas que agora tenho certeza que podem ser aplicadas até em condições extremas, as de um Everest.
Conheça a técnica de respiração milenar usada pela família Gracie e que ajudou Cesalina a chegar ao topo:
1) Inspire passivamente e expire vigorosamente pelo nariz – 30 segundos
2) Respire lentamente pelo nariz por 3 a 5 segundos – Expire pela boca por até 30 segundos
3) Respiração intensa: inspire vigorosamente pelo nariz e expire pela boca – 30 segundos
4) Vácuo abdominal usando a técnica do yoga Nauli Kriya – 30 segundos
5) Respire lentamente pelo nariz por 3 a 5 segundos – Expire pela boca por 6 a 10 segundos
6) Inspiração profunda pelo nariz / dupla expiração pela boca – 30 segundos
7) Respire lentamente pelo nariz por 3 a 5 segundos – Expire pela boca por 6 a 10 segundos
8) Controle do prana através da respiração usando a técnica do yoga Pranayama – 2 minutos
Repita todo o processo de 3 a 4 vezes.