Agora que a maratonista mais rápida da história, Ruth Chepngetich, foi pega, será que é hora de desistir e deixar os atletas se doparem?
Ser fã de esportes na era moderna é, em certa medida, estar anestesiado diante do fluxo constante de testes positivos para doping. De vez em quando, no entanto, uma punição é tão impactante que muda o rumo da modalidade. O caso de Ben Johnson, em 1988, quase arruinou o atletismo por uma década. O escândalo BALCO, que no início dos anos 2000 envolveu grandes nomes como Marion Jones e Barry Bonds, levou o combate ao doping para dentro das ligas profissionais. A queda de Lance Armstrong coincidiu com a introdução do “passaporte biológico”, que muitos especialistas consideram ter ajudado a conter as formas mais descaradas de trapaça.
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Agora temos Ruth Chepngetich. A queniana de 30 anos destruiu o recorde mundial da maratona no outono passado, em Chicago. Seu tempo de 2:09:56 fez dela a primeira mulher a correr abaixo tanto da marca de 2h10 quanto da de 2h11. Apenas outras duas mulheres conseguiram correr abaixo de 2h14. Foi uma performance histórica, que definiu uma nova era — e, como escrevi na época, tão improvável que gerou uma tempestade incomum de ceticismo entre comentaristas. E, de fato, a Unidade de Integridade do Atletismo anunciou na semana passada que Chepngetich aceitou uma suspensão de dois anos, após a detecção de hidroclorotiazida (HCTZ), um diurético proibido que às vezes é usado para mascarar a presença de outras substâncias, em sua urina.
A pergunta que fica é: o que vem agora? Será que tudo vai continuar como antes, como já aconteceu depois de punições marcantes, como a da campeã olímpica da maratona em 2016, Jemima Sumgong? Será que haverá uma repressão mais dura ao doping, talvez com aumento dos testes fora de competição financiados pelas maiores maratonas do mundo? Ou punições mais rigorosas para agentes, treinadores e patrocinadores que trabalham com atletas flagrados? Ou será que a queda de Chepngetich — chocante, mas nem tão surpreendente assim — apenas confirma que o doping é onipresente e inevitável, e que, em vez de lamentar, devemos começar a nos empolgar com os Enhanced Games do ano que vem, uma competição pró-doping?
O argumento a favor do “deixa como está”
Existe um lado em que o teste positivo de Chepngetich é, de certa forma, positivo: mostra que nem os maiores nomes do esporte estão a salvo. No passado, autoridades de altíssimo escalão do atletismo chegaram a encobrir testes positivos de maratonistas como Liliya Shobukhova — e aceitaram suborno para isso. A punição de Chepngetich é um desastre para o esporte, mas ao menos não foi abafada.
Ela não é a primeira estrela de peso a cair nos últimos anos — na verdade, nem é a primeira recordista mundial da maratona do Quênia a ser pega. Wilson Kipsang, que bateu o recorde masculino em 2013, foi punido em 2020 após uma série de testes perdidos. O corredor de meia distância Asbel Kiprop, medalhista de ouro olímpico como Sumgong, testou positivo em 2017. Rita Jeptoo, tricampeã da Maratona de Boston, testou positivo em 2014. Fica evidente que o sistema de testes funciona, em alguma medida — e que ninguém está imune.
Mesmo para quem ainda consegue se dopar sem ser pego, há boas evidências de que não é mais possível se beneficiar tanto quanto antes. Em vez de apenas tentar flagrar os trapaceiros com testes de sangue ou urina, o programa do passaporte biológico faz coletas regulares dos atletas para estabelecer seus valores fisiológicos normais. Se um exame apresentar desvios súbitos em relação a esses padrões, o atleta pode ser banido por doping mesmo que não haja resultado positivo para uma substância específica. Uma análise das performances de atletas russas antes e depois da introdução do passaporte biológico no atletismo, em 2012, mostrou que elas ficaram de 2% a 3% mais lentas — provavelmente porque não podiam mais recorrer à dopagem sanguínea com total liberdade.
Ainda assim, esse argumento tem limites. O fluxo constante de casos de doping entre atletas de ponta mostra que os testes funcionam — mas também revela que muitos ainda estão trapaceando. Também chama atenção o fato de que os níveis de desempenho em esportes de resistência, como ciclismo e corrida, têm aumentado nos últimos anos. No caso da corrida, muitos atribuem isso aos “super tênis” — embora eles estejam no mercado desde 2016, e os tempos continuem melhorando. No ciclismo, uma explicação comum é o consumo extremamente alto de carboidratos durante as provas. Mas é difícil não se perguntar se não há uma explicação mais simples — e mais óbvia.
O argumento a favor do combate ao doping
Um dos detalhes curiosos do caso de Chepngetich é que ela testou positivo para HCTZ. Atletas de resistência geralmente são pegos por eritropoetina (EPO), que aumenta a quantidade de glóbulos vermelhos no corpo, ou por violações do passaporte biológico relacionadas à dopagem sanguínea — que envolve injetar sangue extra (próprio ou de outra pessoa) para aumentar a capacidade de transporte de oxigênio. São formas relativamente simples e conhecidas de dopagem — o tipo de coisa que um atleta agindo sozinho poderia fazer.
Em contraste, a HCTZ é um diurético, que pode ser usado para diluir a urina e dificultar a detecção de outras substâncias proibidas nos testes. Minha suposição habitual é que esse tipo de agente mascarante serve para esconder esteroides ou outras drogas relacionadas ao aumento de massa muscular. Há também evidências de que os diuréticos podem interferir nos resultados dos testes sanguíneos do programa de passaporte biológico, por exemplo, elevando os níveis de hemoglobina. Mas manipular o passaporte biológico é algo bem mais complexo — o que sugere uma operação de doping mais sofisticada e sistemática.
Chepngetich aceitou voluntariamente uma suspensão provisória de dois anos em abril, enquanto o caso segue em andamento — o que indica que ela quer cumprir logo a pena para poder voltar a competir. Pessoalmente, eu gostaria que qualquer retorno à competição fosse condicionado a uma divulgação completa e honesta sobre quais substâncias ela estava usando e quem a ajudou. É algo difícil de exigir formalmente, mas, de um jeito ou de outro, precisamos ter uma visão mais clara de como os atletas estão trapaceando.
Há várias maneiras pelas quais o caso Chepngetich poderia servir como impulso para intensificar o combate ao doping — como tornar os agentes responsáveis quando seus atletas testam positivo (vale lembrar que o agente de Chepngetich, Federico Rosa, também representava Sumgong, Jeptoo e Kiprop), ou convencer o grupo World Marathon Majors a financiar mais testes fora de competição antes das provas, e não apenas depois da linha de chegada. A verdade, no entanto, é que essas ideias são basicamente as mesmas que surgem a cada novo escândalo de doping.
O argumento a favor da rendição
No mês passado, Amit Katwala, da revista Wired, publicou a melhor reportagem até agora sobre a ascensão dos Enhanced Games — o evento esportivo que permite o uso de drogas e que está previsto para acontecer em maio do ano que vem, em Las Vegas. Minha reação geral a essa história sempre foi ignorá-la. Esporte, para mim, é (como disse o filósofo Bernard Suits) a tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários. Remover arbitrariamente alguns desses obstáculos — como adiantar a linha de largada ou usar substâncias que concordamos em não usar — simplesmente não me interessa.
O problema, é claro, é que nem todo mundo concorda em evitar as substâncias da lista proibida. Permitir que os atletas tomem drogas, como planejam os Enhanced Games, eliminaria o esforço de fiscalizar essa regra e devolveria a todos um “campo de jogo nivelado”. Eu não acho essa ideia atraente, mas o teste positivo de Chepngetich torna esse um bom momento para perguntar: por que não?
Um dos pontos mais interessantes do artigo de Katwala é como a missão aparente dos Enhanced Games mudou com o tempo. Inicialmente, o discurso era inspirado em ideais libertários — a ideia de que as pessoas devem poder colocar o que quiserem em seus próprios corpos. Mas agora, os organizadores afirmam que todos os participantes treinarão sob supervisão médica e passarão por testes rigorosos para garantir que permaneçam saudáveis. “Longe de romper com as amarras da Agência Mundial Antidoping”, observa Katwala, “parece que os Enhanced Games simplesmente recriaram a agência, com uma linha vermelha um pouco diferente”.
Implícita nessa mudança está a constatação de que a dopagem sem controle faz mal à saúde. Essa é, claro, a razão fundamental pela qual as drogas são restringidas no esporte — mas as evidências nesse sentido não são tão claras quanto se imagina. Simplesmente não é possível realizar os tipos de estudos necessários para provar, por exemplo, que a EPO engrossa o sangue a ponto de aumentar o risco de ataque cardíaco. Há muito tempo se suspeita que a EPO tenha sido responsável por uma série de mortes entre jovens ciclistas após sua introdução no final dos anos 1980, mas alguns pesquisadores consideram essa ligação como “propaganda antidoping”.
É possível fazer debates semelhantes sobre a maioria das outras substâncias para melhora de performance. Geralmente, há bastante evidência de efeitos negativos à saúde — mas são evidências indiretas ou observacionais. Pode-se argumentar, com razoabilidade, que a terapia com testosterona, por exemplo, traz mais benefícios do que riscos para quem parte de níveis muito baixos. À medida que as doses aumentam, esse argumento fica mais difícil de sustentar — mas determinar exatamente onde traçar a linha é complicado. O ponto central, no entanto, é que há uma linha. Até os Enhanced Games já não defendem mais o doping sem limites.
O veredito
Sempre achei que uma das distinções centrais — porém pouco valorizadas — nos debates sobre doping no esporte é se você enxerga os atletas como “eles” ou como “nós”. A maioria das pessoas com quem já discuti e que defendem a legalização do doping vê o esporte como um espetáculo do qual os outros participam. Por que não deixar essas pessoas se entupirem de drogas, desde que façam isso por escolha própria, para o nosso entretenimento?
Para mim, no entanto, a questão sempre se resume ao que eu me sentiria confortável em fazer pessoalmente — ou permitir que meus filhos fizessem. É claro que há uma grande distância entre maratonistas profissionais e o atletismo escolar. Mas não se engane: esses mundos estão conectados.
Se os profissionais fazem algo, os aspirantes a profissional também terão que fazer. E o mesmo valerá para os atletas universitários, e assim por diante. “Uma vez que uma tecnologia eficaz é adotada em um esporte, ela se torna tirânica”, me disse o filósofo Thomas Murray quando eu escrevia sobre estimulação elétrica cerebral alguns anos atrás. “Você é obrigado a usá-la.” O mesmo vale para as drogas: se liberarmos o uso entre os profissionais, estaremos aceitando seu uso em todos os níveis.
Essa é a verdade incômoda sobre o doping no esporte — mas, ao que parece, os Enhanced Games estão dispostos a dizê-la em voz alta. O verdadeiro objetivo deles é vender sua própria linha de suplementos, inspirada no sucesso corporativo da Red Bull. “Eles compram ativos esportivos para vender uma bebida energética”, disse o fundador do evento a Katwala. “Nosso modelo de negócios é muito parecido.” Eles apresentam isso com o discurso do “aperfeiçoamento humano”, mas, no fim das contas, trata-se basicamente de “anabolizantes para o povo!”.
No fim, é esse o argumento que me convence de que vale a pena continuar lutando contra o doping. Espero que peguemos — ou melhor, desestimulemos — futuras Chepngetiches. Acredito que as entidades que governam o esporte deveriam ajustar suas regras para que a marca sub-2h10 de Chepngetich possa ser apagada dos livros de recordes, mesmo que tenha sido registrada antes do teste positivo. Mas, acima de tudo, estou em paz com a ideia de que essa batalha nunca será vencida por completo — da mesma forma que acredito que o roubo deve continuar sendo ilegal, mesmo sabendo que o furto em lojas nunca vai desaparecer. Porque, se aceitarmos o contrário e decidirmos que o doping está tudo bem, não estaremos mais falando apenas deles. Estaremos falando de nós.
*Alex Hutchinson escreve para a Outside USA.