Quando se está pelado, outras pessoas prestam mais atenção em você. É exatamente por isso, para protestar contra o descaso dos motoristas que não os vêem no trânsito, que todo ano milhares de ciclistas no mundo inteiro tiram a roupa para pedalar. Nosso repórter participou do Pedalada Pelada em São Paulo – de bermuda, porém de peito aberto para entender melhor a manifestação
Por Mario Mele PÂMELA FOI A PRIMEIRA A TIRAR A BLUSA. Com tinta laranja, pintou os seios, que viraram duas rodas de bicicleta, com quadro e componentes rabiscados em verde e preto. O desenho parecia ter sido feito em uma aula de artes do primário, mas o importante é que a bike estava bem identificada em seu peito. Naquela noite do dia 15 de março, Pâmela era uma das participantes da sétima edição da Pedalada Pelada de São Paulo. Foi com o amigo Marcos Antônio, que, para acompanhá-la, tirou a cueca logo em seguida. Parecia uma cena ensaiada de tão natural: fotógrafos miraram suas câmeras para o busto da moça, jornalistas estenderam microfones e gravadores, e a dupla de cicloativistas se pôs a falar.
“Decidimos vir aqui pedalar sem roupa para mostrar que o ciclista não tem escudos quando se locomove pela cidade no meio dos carros”, começou Pâmela, que adotou a bike há pouco tempo para economizara a grana da condução ao ir e voltar da faculdade de engenharia. “Só ficando pelado para os motoristas notarem a presença dos ciclistas nas ruas”, continuou Marcos Antônio, que, além de tênis, usava barba comprida e uma boina vermelha que lhe dava um ar de “Che Guevara naturista”.
Eram quase oito horas da noite, horário marcado para o início do pedal nu e coletivo, e mais de 300 ciclistas já ocupavam o canteiro central da Avenida Paulista, em São Paulo, em uma área conhecida como Praça do Ciclista. Pouco a pouco, eles foram se desinibindo e tirando a roupa. Muitos pintavam frases de protesto pelo corpo, como “menos CO2, mais amor” e “cuidado: frágil”.
Talvez por uma questão cultural, as mulheres limitavam seus “strip-teases” ao topless, protegendo os seios com frases ou desenhos. Apenas uma morena magra, de uns 20 anos – que preferiu não se identificar porque “não quer ver seu nome circulando pela mídia” –, não se importou em deixar claro a preferência pela depilação Brazilian wax. A liberdade impera na Pedalada Pelada, e a única regra é que a roupa é opcional. Pode-se ir vestido ou não, pouco importa. O que vale é fazer coro para que os motoristas percebam a fragilidade de quem optou por se locomover em duas rodas pela capital.
O evento paulistano faz parte de um movimento internacional batizado do World Naked Bike Ride (WNBR), cuja primeira edição aconteceu em 2003 na Espanha e rapidamente se espalhou pelo mundo. Hoje, do Paraguai ao Japão, são 33 países e centenas de cidades que já aderiram à manifestação. Só no Brasil, o WNBR acontece em oito capitais. Em alguns lugares, como a sempre agitada Portland (EUA), há mais bikers totalmente nus, e os participantes lotam as ruas da cidade.
Em todos os lugares onde a Pedalada Pelada acontece, os ciclonudistas costumam entoar rimas enquanto desfilam por duas e avenidas. O hit da edição paulistana é “você aí parado, vem pedalar pelado!”, que cai bem tanto aos motoristas presos no engarrafamento quanto aos pedestres, que diminuem o ritmo para ver o excêntrico pelotão passar. Neste ano, em São Paulo, o primeiro grito de guerra foi “fora Pânico!”, para expulsar um casal de apresentadores do famoso programa de humor da TV. Mesmo “despidos” a caráter, eles foram hostilizados pelos ciclistas-manifestantes, que não conseguiam enxergar uma razão senão a “depreciação do movimento” para o programa estar ali. Xingamentos em coro foram direcionados à dupla, que ainda tentava manter a pose fazendo piada. Ao meu lado, um cara de aproximadamente 30 anos, vestindo calça, camiseta, tênis e boné – e sem bicicleta – abriu o compartimento de seu canetão e despejou toda a tinta preta na apresentadora popozuda, que ainda fez uma dancinha sensual e balançou a cabeleira loira que acabara de ganhar mechas escuras.
A grande maioria dos ciclistas da Pedalada Pelada é tão normal quanto os corpos que exibem. Não se tratam de mulheres tipo Pânico, com coxas de rã esculpidas na academia, muito menos de caras saradões que competem no supino. “Popozudas não combinam com isso aqui”, disse uma ciclista, inconformada com a presença do programa e mostrando que até os libertários ciclonudistas do evento têm lá seus preconceitos. Seguranças tiveram que montar cordão de isolamento para conter a pressão contra a equipe do Pânico, e os apresentadores foram perdendo a graça.
“Esses programas são babacas, banalizam e distorcem tudo”, me diz Kelly, enquanto pedala sua estilosa bike urbana usando apenas uma calcinha de renda e um chapéu chique de praia. Quando pergunto se a manifestação não poderia aproveitara audiência da TV para transmitir ao grande público a mensagem do WNBR, ela aponta para um prédio cujos moradores lotavam as janelas de todos os andares para admirar os ciclistas nus. “Isso já é suficiente”, diz. Kelly, que é filósofa, acha importante existirem manifestações em prol da bicicleta, mas não parecia a fim de entrar em longas reflexões naquele momento.
Foi nesse clima meio tenso, meio hilário que o batalhão de ciclistas dominou todas as faixas da Avenida Paulista e iniciou-se o pedal.
POR ONDE PASSAMOS, A PEDALADA PELADA virou foco das atenções. Na calçada, famílias param e dão risada. Um adolescente leva na boa e brinca tapando os olhos da namorada. Só um pai, em torno de 40 anos, acompanhado da mulher e do filho, tenta mostrar sua indignação gesticulando os braços em direção ao grupo em tom de bronca. Mas rapidamente seu discurso é engolido pelo grito dos ciclistas de “obsceno é o trânsito!”. Já pelas ruas do centro de São Paulo, pergunto a um homem de mais de 70 anos o que ele acha daquilo tudo. “Pelado a gente fica na cama e no banho”, responde ele, sem tirar os olhos das moças e rapazes que passavam em frente às mesas do bar onde estava.
A nudez ainda choca. Enquanto subíamos a rua da Consolação, uma das mais famosas da cidade, uma igreja evangélica fecha suas portas ao se dar conta de que se tratava de um bando ciclistas nus. O objetivo do evento é esse mesmo: ações organizadas como a Pedalada Pelada fazem do tabu seu megafone. Recentemente, nem o papa em visita ao Rio de Janeiro escapou de uma manifestação contra a violência sexual, que só virou notícia porque as ativistas deixaram seus seios à mostra. Pelas ruas de São Paulo, a Pedalada Pelada desperta a curiosidade e faz os motoristas perderem a pressa. Em uma moto, um entregador de pizza acha um absurdo a interdição total da pista e tenta costurar as bikes. Mas os organizadores pedem aos ciclistas que liberem a faixa da esquerda, ao que eles obedecem prontamente. “Está vendo como é difícil ser minoria no trânsito”, grita um cara de cueca.
Na rua Augusta, skatistas em seus trajes normais aderem à manifestação para aproveitar a ladeira livre de carros. Em uma curva à esquerda, sou ultrapassado por um pelado que usa uma peruca punk colorida e tinha o controle total de uma bike gigante de dois andares. Descubro depois que seu nome é Galo. Ele é mecânico de bicicletas e pedala sua tall bike cerca de 20 quilômetros todos os dias, para ir e voltar do trabalho. Durante o WNBR, o segurança de um inferninho da Augusta acena para ele tentando chamar sua atenção. Galo responde acionando a buzina de caminhão que leva no bagageiro. Fica claro que as bicicletas falam mais alto naquele momento. “Costumam me respeitar no trânsito”, conta Galo, que não vê problema algum em enfrentar vias congestionadas, subidas e descidas do alto de um selim a mais dos dois metros do chão. Naquela hora, penso que, para uma parte da galera ali presente, pedalar pelado é o menor dos detalhes.
“TENHO PENA DOS MANÉS que metem o pau nos ciclistas pelados”, me diz Ivan, referindo-se a um post publicado na página do Facebook do evento em que o autor dizia que a Pedalada Pelada é um “desrespeito à sociedade”. “Eu era igual a esse cara há três anos, mas depois que descobri quantos ciclistas são atropelados nessa cidade entendi todo o sentido disso.” Segundo a Companhia de Engenharia e Tráfego de São Paulo (CET), a estatística de 2012 é de um ciclista morto no trânsito por semana na capital. O problema não é exclusivo da maior cidade brasileira. Em março deste ano, Porto Alegre registrou duas mortes de ciclistas em um único dia. Apesar de a Pedalada Pelada já ter chegado à capital gaúcha, os motoristas ainda não parecem dispostos a compartilhar a via.
Quem vai a um evento como o WNBR sabe o que aquelas bikes pintadas de branco espalhadas pela cidade de São Paulo e outros lugares, conhecidas pelo triste apelido de “bicicletas fantasmas”, significam: é para lembrar que um ciclista já morreu atropelado ali naquele exato ponto. Quase todo mundo presente na Pedala Pelada também já passou algum tipo de apuro. Já sentiu na pele o que é tomar uma fechada de um carro que decidiu entrar à direita de última hora, ou já foi espremido por um ônibus descuidado. E, diante de um trânsito feroz e motoristas sem respeito pela vida humana, nada poderia ser mais digno do que pedalar nu em público.
Ali, vendo de perto aquele grupo de ciclistas de peitos e bundas à mostra, concordei que a manifestação é uma forma extremamente criativa de chamar a atenção para os problemas da mobilidade urbana e invocar o poder público a se envolver mais com o assunto. E também a cutucar você, que passa a pé ou de carro do lado deles, a ter mais consciência do quão frágil é um ciclista que decide usar a bike como meio de transporte. Eu não precisei tirar toda a roupa para sacar isso.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2014)
Fotos Alexandre Cappi
VEM PEDALAR: Imagens da ciclopasseata em São Paulo
TESTEMUNHA: A manifestação passa por uma "bicicleta fantasma",
que marca onde um ciclista foi vítima fatal do trânsito