Vida na van

Muita gente cansada da rotina tem deixado para trás a casa e o trabalho para se lançar na estrada em busca de uma vida simples, porém mil vezes mais feliz


Por
Lucas Franceschini


EM 2009, o surfista e diretor norte-americano Cyrus Sutton criou o site Korduroy.TV para espalhar o que ele batizou de “aloha digital”: por meio desse projeto, poderia mostrar para milhares de pessoas a beleza e o prazer de se pegar uma van e sair por aí sem se preocupar com mais nada além da busca por ondas perfeitas e grandes histórias para contar. O site virou um fenômeno e se tornou um símbolo muito atual do surf independente incorporado aos ideais do Do It Yourself (Faça Você Mesmo). Ao compartilhar suas experiências em vídeos e fotos, Cyrus tem inspirado uma longa lista de pessoas a abraçar a chamada Van Life, ou “vida na van”, um estilo de vida despretensioso cujos adeptos abrem mão de confortos e bens materiais para viajar e curtir experiências intensas.

Além do site, o diretor californiano possui uma sólida carreira no cinema. Já ganhou um Emmy com o documentário The Next Wave, a Tsunami Relief Story. E, em 2010, lançou Stoked & Broke, no qual protagoniza uma aventura de oito dias nas praias da Califórnia ao lado de pranchas artesanais, fogões caseiros e nenhum dólar na carteira.

Mas foi ano passado, aos 30 anos de idade, com o lançamento do filme de surf Compassing, que Cyrus ajudou a popularizar ainda mais a van life. A produção, que tem participações dos surfistas Rob Machado e Kepa Acero, colocou esse estilo de vida nos holofotes e acabou dando rosto às pessoas que saem com seus carros atrás de aventuras. Para gravar o filme, Cyrus parou de pagar o aluguel de sua casa em San Diego, se mudou para uma van, toda customizada por ele para dar conta de seus equipamentos de surf, e dirigiu rumo ao México. “No total foram 66 dias, 27 potes de manteiga de amendoim e oito garrafas de tequila”, conta. “Dou extremo valor à criatividade. E ela só surge quando você tem um momento para respirar e tirar um tempo longe da rotina.”

Nos moldes de Cyrus Sutton, o sul-africano Dylan Bellingan descolou sua própria sua van e partiu em busca de uma vida diferente. Morando desde os seus 7 anos no Texas (EUA), Dylan guardou dinheiro depois de trabalhar por dois anos em uma empresa de venda de seguros e se lançou, no fim do ano passado, em um projeto pessoal batizado de My American Dream Tour, uma roadtrip pelos Estados Unidos. “Sinto-me abençoado porque neste momento estou realizando um sonho de criança”, conta.

Essa vontade de viajar de carro surgiu quando Dylan, ainda criança, via as velhas fotos de surf de seu pai, cercado de amigos e dormindo dentro de um carro ao lado de praias paradisíacas. A ideia foi amadurecendo junto com a vontade de levar uma vida mais simples. O sul-africano comprou uma van G30 Chevy, ano 1993, e batizou-a de Pearl (Pérola, em inglês). Fez uma bela reforma no veículo e deixou seu novo xodó do jeito que desejava. “Os pisos são de madeira e há uma cama de casal na parte de trás, que pode ser levantada do chão para que eu usar o espaço.” Dentro da Pearl também moram três pranchas de surf e alguns skates.

Até agora, Dylan e Pearl já passaram por Oklahoma, Arkansas, Texas, Novo México e Arizona. Até o fechamento desta edição, Pearl estava estacionada perto do píer de Huntington Beach, na Califórnia. Dylan criou um diário online para os internautas acompanharem suas aventuras (thessimplelife.tumblr.com).

Não é só fora do Brasil que existem pessoas que mudaram de vida a bordo de um carro. Em maio do ano passado, Leonardo Spencer e Rachel Paganotto embarcaram em uma viagem de três anos ao redor do mundo. A vontade de largar tudo e se reinventar na estrada veio depois de uma aguda crise pós-viagem sofrida por Leonardo quando ele retornou de uma temporada surfando na Costa Rica, em 2012. “Trabalhava em um banco que me proporcionava um padrão de vida alto, mas isso não me satisfazia mais”, conta. “Senti a necessidade de começar um novo ciclo, talvez com menos grana e mais insegurança, porém com mais alegria.”

Outro empurrãozinho que ajudou o casal a partir para a estrada foi uma conversa sobre novos desafios que Leonardo teve com um amigo de infância, durante a qual lhe foi apresentado o livro Challenging Your Dreams (editora Aleph), da brasileira Grace Downey e do inglês Robert Arger. A obra conta a história do casal de autores, que resolveu conhecer o mundo de carro, incluindo passagens significativas pelo Brasil. Menos de um ano depois do desabafo com o amigo e da leitura do livro, Leonardo e Rachel, que também trabalhava em um banco, iniciaram sua jornada.

Na rota traçada, o veículo dos dois partiu rumo à América do Sul, depois para a América Central e do Norte. “Em trechos onde não é possível passar dirigindo, como o Darien Gap (área de florestas praticamente impenetráveis da Colômbia), temos que despachar o carro em um container e seguir de avião”, explica Leo. Depois das Américas, o próximo destino é a Europa e África. A última perna da viagem é a Ásia, com um desfecho na Austrália. Quando deram a entrevista para esta reportagem, Leo e Rachel estavam em Los Cabos, no México.

Um dos lugares mais marcantes para eles até agora foi o Deserto do Atacama, no Chile. Mas também tiveram percalços por lá: todo o equipamento fotográfico da viagem foi roubado enquanto visitavam o país. “Perrengues sempre são inevitáveis. Enfrentamos, por exemplo, chuvas torrenciais dentro de uma barraca com goteira, na Costa Rica.” Para registrar toda a saga, o casal criou o site Viajo Logo Existo (viajologoexisto.com.br).

Mesmo com todo o romantismo que existe na Van Life, nem tudo são flores quando se está na estrada. “Alguns meses atrás minha namorada foi confundida com uma moradora de rua”, conta o canadense Alexander Haro, que mora com sua companheira em uma van na praia de Malibu, na Califórnia. “Nem sempre é fácil encarar preconceitos da sociedade, mas tento enfrentá-los sempre de cabeça erguida.”

Alexander comprou uma Dodge A-100, ano 1980, por US$ 1.500, no Canadá, colocou nele um fogão, uma geladeira, um banco de motorista que vira uma cama de casal e partiu com a namorada para a Califórnia sete meses atrás. “Minha mãe sempre me disse: ‘Você não precisa de mais espaço, precisa de menos coisas’. Ela estava totalmente certa.” Antes de mudar de vida, o canadense trabalhava cortando árvores que interferiam em cabos de energia elétrica. Hoje ele escreve para o site The Inertia.

Apesar dos aspectos negativos de se viver sem endereço fixo, para Alexander tudo vale a pena quando se acorda diante de uma vista incrível para o mar, com o sol brilhando e a namorada do lado. Na van life, coisas simples se tornam motivo de sorrisos largos. “Adoro fazer café depois de surfar de manhã. Parece algo bobo, mas sair do mar, preparar um café com as portas da van abertas e assistir às ondas quebrarem é incrível”, conta Alex.