Patagônia zen

Emoção,endorfina e autoconhecimento acompanham a jornada de 63 quilômetros de nossa diretora de redação na Patagonian International Marathon

Por Andrea Estevam
Foto Eduardo Hernandez


TRICOLOR: Andrea corre e os Cuernos del Paine, ao fundo, testemunham

EU PRECISAVA DE UM “TRATAMENTO DE CHOQUE”. Algo que me fizesse voltar a buscar em mim o melhor do que sou capaz. Estava com saudade de treinar com frio na barriga e foco em um grande desafio que me enchesse de temor e fascinação. Queria voltar a estender meus limites. E nada melhor do que ir ao fim do mundo resgatar tudo isso.

Assim me inscrevi, faltando dois meses, na Patagonian International Marathon, prova que aconteceria no dia 28 de setembro no icônico Parque Nacional de Torres del Paine, no Chile, e que, apesar do nome, oferece quatro opções de distância: 10 quilômetros, 21 quilômetros, 42 quilômetros e 63 quilômetros. A “vozinha” da razão me dizia para ir para os 42, afinal, estou há mais de dois anos longe das competições, tem aquele tendão que sempre inflama, já não sou mais uma menina e como é que eu ia arrumar tempo de treinar e blablablá. Mas era da paixão que eu estava em busca, e nos 63 quilômetros eu certamente teria mais tempo e chão para encontrá-la.

“Agora vou treinar”, disse para mim mesma. E treinei – o que deu. Meu maior longão foi de três horas, na Mantiqueira, o que dá uma quilometragem irrisória se comparada à que me esperava na Patagônia. Mesmo assim, estava animadíssima com a perspectiva de correr tanto, num lugar tão lindo, como nos velhos tempos. “Você tem base, sabe sofrer”, consolou-me meu treinador, João Bellini, às vésperas da partida. Animador. Era verdade: embarquei para o Chile consciente de que precisaria fazer valer minha experiência em corridas de longa distância. Teria que cuidar do meu corpo e aguentar firme os momentos difíceis que certamente enfrentaria. Uma lição eu não havia esquecido: endurance é seguir em frente. Quem não desiste chega.

Já que seria uma questão de saber sofrer, aproveitei a longa viagem (tinha esquecido como a Patagônia é longe!) para reler o incrível Do Que Eu Falo Quando Falo de Corrida, de Haruki Murakami. Escritor ninja e maratonista dedicado, Murakami corre há 25 anos. No livro, ele fala de corrida como só pode fazer quem conhece as dores e as delícias desse esporte. É uma obra incrível e tem um capítulo inteirinho sobre sua primeira ultra, uma prova de 100 quilômetros no Japão. No avião e depois nos traslados, li e reli esse capítulo. Encarei-o como treino mental que substituiria os quilômetros que faltaram. A Patagonian International Marathon seria, para mim, coração e mente, e eu sabia que podia contar com eles.


A LARGADA, A ZERO GRAU, foi margeada por grandes blocos de gelo translúcido que se desprenderam do Glaciar Grey, logo ao lado. Coincidentemente, havia 63 corredores para os 63 quilômetros, e dez deles eram mulheres. Será que eu seria a última? O que aconteceria com cada um desses estranhos nas próximas sete, oito horas? Que delícia não saber.


Os primeiros 20 quilômetros eram bem planos. A estrada cascalhada era larga, e o céu da manhã ainda insistia no rosa que, aos poucos, iria amadurecer e virar só azul. Os corredores à frente soltavam baforadas de ar quente que subiam a cada respiração. Era engraçado ver as cabecinhas subindo e descendo e as nuvenzinhas acompanhando-as como se fossem pensamentos. Se pudessem ler os meus, seriam meio McDonald’s: amo muito tudo isso. Passei os 10 quilômetros em 50 minutos. Os 21 em menos de duas horas. Correndo solta, a respiração fácil. Se me perguntasse ali, eu diria que poderia fazer isso para sempre.

À esquerda, os Cuernos del Paine, tricolores e únicos, acompanhavam minha catarse. Entre torres e guanacos e corredores vindos de tantos lugares diferentes do mundo, eu me reencontrava e fortalecia. Poucas coisas na vida me fazem sentir mais plena, livre e conectada com minha essência do que correr pelas montanhas. Lembrei do Murakami: “Não sei o significado de correr 100 quilômetros, mas deve ser uma forma diferente de autoconhecimento. Te dá elementos a mais para conhecer quem você é. E, como resultado, a visão que você tem da sua vida, de suas cores e formas, se transforma. Para melhor ou pior, isso aconteceu comigo e eu fui transformado”. O percurso, nada técnico, de certa forma facilitava essa transformação. Eu podia olhar para dentro de mim sem correr o risco de cair de boca no chão.


Segui assim, semidoidona de emoção e endorfina, até o quilômetros 30. Foi quando chegou a dor, convidada indesejada de qualquer prova desse tipo. Pulou de trás de uma moita, com um sorriso meio sacana, perguntando “pensou que eu não viria?”. Não, não pensei. Estava te esperando. Aceitei-a, resignada. “Sinto-me como um bife sendo lentamente amassado por um moedor de carne. Como um carro tentando subir uma ladeira com o freio de mão puxado”, escreveu Murakami. “Diferentes partes do meu corpo, uma após a outra, começaram a doer. Todos os pedaços do meu corpo tiveram a chance de tomar o centro do palco e gritar suas reclamações.” Ah, Murakami, é assim mesmo. E, seguindo seu exemplo, deixei que gritassem. Gritem até cansar, porque não vou desistir.


Lembrei das pessoas que me incentivaram a ir à Patagônia competir, naquelas que me ajudaram a treinar. Dedicava um quilômetro para cada um. Pensei na minha labradora, que ficara doentinha em casa. Dizia para mim mesma que a cada dolorido passo eu estava um pouco mais perto da chegada. Quando tudo isso falhou, usei o mantra do Murakami: “Não sou humana. Sou uma máquina”. Uma máquina de correr que segue em frente, pé ante pé.


MEIO HOMEM, MEIO MÁQUINA: Corredores diminuem a quilômetragem; abaixo, local da
largada dos 63 quilômetros

OS GUANACOS SEGUIAM COMENDO seu capim, sem nenhum interesse nos dramas que aconteciam ao seu redor. Alguns competidores da ultra andavam, desolados; outros, dos 21 ou 10 quilômetros, conversavam animadamente enquanto trotavam. Uma das coisas bacanas dessa prova é que os 740 competidores dividem o mesmo percurso. As largadas são escalonadas, e os corredores vão se somando no trajeto. No fim estávamos todos, corredores de 10 a 63 quilômetros, juntos e misturados, seguindo em direção a um único pórtico.


Os cuernos ficaram para trás e surgiram então as torres. As subidas, que na primeira dezena de quilômetros pareciam gentis, foram se tornando mais e mais doloridas (realidade ou ilusão?). Mas a máquina seguia em frente, bem azeitada. A cada 10 quilômetros, reabastecia a mochila de hidratação. A cada 50 minutos, gel. A cada hora, cápsula de sal. Para animar, o quitute: azeitonas sem caroço. “Levar a si mesmo à exaustão máxima dentro de seus limites individuais. Essa é a essência da corrida, e uma metáfora da vida”, escreveu Murakami. Esgotada, eu seguia fazendo o melhor que podia, a cada metro.


Até que em certo ponto, quando faltavam pouco menos de 10 quilômetros, atravessei algum tipo de barreira psicofísica. E comecei a me sentir bem, veja só. Pelo menos, bem melhor do que nas duas últimas horas. Os músculos haviam voltado a me obedecer. “Essa louca vai continuar com isso, melhor ajudarmos para acabar logo”, devem ter pensado. A respiração era tranquila, o dia estava lindo (nem sinal do vento patagônico que poderia ter tornado tudo mais difícil) e o coração batia sem angústia.

Faltavam agora pouco mais de três quilômetros. À minha frente, a norte-americana Krissy Moehl e o sul-africano Ryan Sanders já tomavam a segunda ou terceira cerveja comemorando os primeiros lugares nos 63 quilômetros, mas era eu quem começava a sentir um gostinho de vitória. E, para minha própria surpresa, consegui apertar o ritmo. Nada mais doía. Ao passar outros corredores, eu os encorajava: “Vamos, falta pouco! Mais duas curvas e acabou! Estão ouvindo a música?”. E então surgiu o pórtico. O relógio marcava incríveis 6h43min.


“Um novo sentimento começou a crescer em mim. Um sentimento de felicidade e alívio por ter aceitado encarar algo arriscado e tido a força para superar”, escreveu Murakami sobre sua chegada após 100 quilômetros de corrida. Minha sensação era parecida, só que havia também um delicioso sentimento de realização e de privilégio. Me senti uma das pessoas mais sortudas do mundo por poder passar por tudo aquilo – uma vida condensada em poucas horas. Era isso, lembrei, que sempre me fizera voltar.


No dia seguinte, eu descia escadas de lado e mancava de lá para cá. Até dormir foi difícil, de tanta dor muscular. Era de se esperar: corri com pouco treino, mas com muito coração e muita cabeça. E nem precisei sofrer tanto. Murakami e as pessoas que eu amo me ajudaram para que não fosse preciso.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2013)