O centésimo

No fim deste mês será dada a largada do Tour de France 2013, que completa 110 de existência e celebra sua centésima edição. E os organizadores do Tour estão dispostos a mostrar que a competição leal ainda é possível neste esporte

Por Mario Mele

SE NO ANO PASSADO O CICLISMO tomou o maior tombo da história com as comprovadas acusações de doping contra Lance Armstrong, em 2013 a modalidade tem a chance do século para se reerguer: entre os dias 29 de junho e 21 de julho acontece a centésima edição do Tour de France, a prova de ciclismo de estrada mais famosa e assistida do mundo. Serão milhões de televisores ligados em 186 países, fora as centenas de milhares de espectadores que vão se aglomeram em diferentes trechos das rodovias francesas para ver o pelotão passar.

O primeiro Tour foi disputado em 1903 e, de lá pra cá, só deixou de ser realizado nos 11 anos em que aconteciam as duas Guerras Mundiais. “O Tour de France é a nossa herança cultural”, disse Christian Purdhomme, diretor da competição desde 2005, durante a apresentação da centésima edição em Paris. “Somos mais forte do que o doping”, completou.

Há bons motivos para acompanharmos com atenção o emblemático Tour de France de número 100. A seguir, destrinchamos o percurso, comentamos as novidades e destacamos os favoritos a levar a histórica centésima camisa amarela.

100% francês
Se nos últimos anos o Tour passou por países como Bélgica, Itália e Holanda, em 2013 ele será 100% francês. Os três primeiros dos 21 estágios serão em Córsega, a paradisíaca ilha do Mediterrâneo que é administrada pela França. Os ciclistas cortarão as belíssimas estradas de Calanches de Piana, um vale que está na lista dos Patrimônios Naturais da UNESCO desde 1983. Não haverá grandes dificuldades nessa fase inicial – uma etapa é plana e as outras duas são em montanhas intermediárias. É a chance de algum sprinter, como o britânico Mark Cavendish ou o norueguês Thor Hushovd, encabeças o ranking.

Contrarrelógios inéditos
O primeiro dos três contrarrelógios agendados para o Tour deste ano será o disputado em equipe, terá 25 quilômetros e acontece já na 4a etapa. Ele será disputado nas ruas de Nice, cidade no sudeste do país. Alguns críticos acharam essa decisão imprudente, levando em conta o alto número de quedas desse tipo de estágio em 2011 (o que fez com que não houvesse contrarrelógios por equipe em 2012). Para evitar baixas logo na primeira semana de competição, no entanto, a organização está considerando diminuir o número de ciclistas de nove para oito por equipe. Mas o risco será mais uma estratégia e uma cautela a serem levadas em conta pelos 19 times que estarão na disputa. Outros dois contrarrelógios individuais no meio da competição – um na 11ª etapa, com 33 quilômetros, e outro na 17ª, com 32 quilômetros, – são um respiro entre duas sessões de montanha do Tour. O primeiro contrarrelógio é imperdível: sua chegada será na pequeníssima ilha de Monte Saint-Michel, onde um mosteiro construído no século 13 se destaca no meio da paisagem bucólica. O segundo é entre as comunas de Embrun e Chorges, no sul do país.

Pireneus de aperitivo
O primeiro fim de semana da competição será nos Pireneus. É o momento em que o Tour, de fato, começa a definir os ciclistas mais fortes. A subida da oitava etapa, a primeira de alta montanha, terá 7,8 quilômetros com inclinação de 8,2% e chegada no topo: depois de escalarem o Col de Palhères (2.000 metros de altitude), os ciclistas fecham os 194 quilômetros no resort de AX 3 Domaines. Chegadas depois de duras escaladas geralmente não têm muita emoção para quem assiste, pois o pelotão está desmembrado e não há tempo para ataques. No décimo dia (o primeiro de descanso), os ciclistas são levados ao norte. É que, ao invés da tradicional sequência Alpes-Pirineus, no sul do país, o Tour 2013 terá cinco etapas planas (uma delas é um dos contrarrelógios individuais). Depois a prova retorna ao sul para as cadeias de montanha que põem medo até nos melhores ciclistas do mundo.

Sessão suor
Ponha seu relógio para despertar no dia 14 de julho, domingo. É quando rola a 15ª etapa, que antecede o segundo e último dia de descanso. O dia “off” será necessário, já que os ciclistas terão que gastar até a última faísca de energia para a temida escalada ao Monte Ventoux, nos Alpes Ocidentais. É um estágio com 220 quilômetros de estradas planas até o pé dessa mítica montanha francesa. A partir daí, a tendência é que escaladores se destaquem do pelotão durante a subida de 20,8 quilômetros com 7,8% de inclinação. A chegada é lá em cima. É uma etapa única no ciclismo mundial, com média de velocidade bem alta em 90% do percurso e uma duríssima subida no final.

Sequência alpina
As etapas 18, 19 e 20 – que curiosamente acontecem nos dias 18, 19 e 20 de julho – definirão o vencedor do Tour 2013. Será uma sequência de três etapas de montanha, duas delas com chegada no topo. A primeira termina no Alpe D’Huez. No quilômetro 104, os ciclistas começam uma escalada até o Col de Sarenne, a 1.989 metros de altitude. Então despencam até a comuna de La Ferrière (726 metros de altitude) para depois escalarem novamente o Huez e cruzarem a linha de chegado a 1.850 metros, já com o odômetro marcando 168 quilômetros. O dia seguinte será outro sobe e desce constante: 204 quilômetros, com altitude máxima de 2.000 metros (no Col de Madeleine) e término em Le Grand-Bornand, uma comuna que no inverno vira estação de esqui. No penúltimo dia do evento, uma escalada inédita fecha a passagem da competição pelos Alpes e esgota os competidores. O trecho terá apenas 125 quilômetros de distância, mas com duas duras ascensões: uma ao Mont Revard (1.463 metros) e outra, para finalizar, ao Semnoz (1.655 metros).

Chegada à francesa
Chegou-se a falar que um dos “presentes” que o Tour ganharia pelas 100 edições e 110 anos de vida seria a chegada decisiva no topo do Alpe d’Huez. A prova já teve sua linha final esticada no estádio Parc des Princes, entre 1903 e 1967, e no Vélodrome de Vincennes, de 1968 a 1975. Desde então, o camisa amarela é coroado na Champs-Élyséss, em Paris, uma das avenidas mais famosas e bonitas do mundo. Este ano, depois de pedalarem 3.360 quilômetros pela França, é ali também que os ciclistas da 100ª edição chegarão. Só que, desta vez, à noite. Foi o “charme francês” que os organizadores descolaram para coroar o campeão da nova geração do ciclismo limpo – pelo menos é o que se espera.

A centésima camisa amarela
O britânico Bradley Wiggins, atual campeão do Tour de France, tinha colocado como prioridade para 2013 o Giro d’Italia. No entanto, uma infecção pulmonar o levou a abandonar esta competição na 13ª etapa, num momento em já não figurava nem entre os top 10. Apesar de ter ganhado o Tour em 2012 e, logo na sequência, levado a medalha de ouro na Olimpíadaca de Londres, Bradley atualmente não vive seu melhor momento – tanto que a Team Sky, equipe pela qual Bradley compete há três anos, já anunciou o queniano Chris Froome como ciclista número um deste Tour. Pela visível superioridade dos espanhóis Alberto Contador, Alejandro Valverde e Joaquim Rodríguez na Vuelta a España 2012, a última clássica do ano, não será espantoso um possível predomínio espanhol no 100º Tour – apesar de Joaquim ainda deixar a desejar nos contrarrelógios. A equipe suíça BMC Racing conta com o australiano Cadel Evans em excelente fase para disputar as primeiras colocações, e o norte-americano Tejay Van Garderen, um ciclista jovem e promissor, na manga para surpreender. Os fãs do ciclismo também esperam um retorno digno do luxemburguês Andy Schleck, que se acidentou durante a Critérium du Dauphiné em 2012 e lesionou joelho e quadril, e desde então esteve afastado das grandes Voltas. Schleck tem treinado duro para voltar à grande forma com que ficou entre os primeiros colocados do Tour em 2011.


100% TRANÇA: Pelotão próximo à cidade de Boulogne-surmer, no norte da França,
durante a terceira etapa do Tour de France 2012

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2013)