O corredor e deficiente visual Vladmi Virgílio correu os 250 quilômetros de uma duríssima ultramaratona no Atacama, no Chile, dando show de superação, garra e amor ao esporte
Por Maria Clara Vergueiro “O OLHAR DE UMA PESSOA sobre as coisas muda tudo. Quer ver? Eu moro na cidade de Rio Grande, lá no extremo sul do Brasil, perto do Chuí. O começo do mundo, de acordo com meu ponto de vista”, brinca o gaúcho Vladmi Virgílio, paratleta profissional de corridas de longa distância. No último mês de março, ele tornou-se o primeiro brasileiro cego a concluir a Atacama Crossing, prova de 250 quilômetros e sete estágios realizada no deserto do Atacama, no Chile. O evento faz parte do circuito 4 Deserts, com ultramaratonas que percorrem os quatro maiores desertos do mundo (o de Gobi, o Saara e a Antártica, além do chileno). Depois de uma semana atravessando dunas, salares, pedras e montanhas, ele e o corredor-guia Alex Lima – os únicos brasileiros entre os 151 inscritos – desembarcaram na cidade petroleira do Rio Grande do Sul cobertos de glórias, com honrarias dignas dos heróis mais determinados. A jornada até lá não havia sido nada fácil: oito meses antes, Vladmi tentou convencer muita gente a apoiá-lo na empreitada e ouviu, repetidas vezes, que o investimento na inscrição de US$ 7mil para cada um, mais as passagens aéreas, era muito “arriscado”, já que se tratava de um atleta cego, com chances “remotas” de voltar com algum resultado consistente. No fim, conseguiu apoio da prefeitura, do porto e do estaleiro de Rio Grande e foi à luta, com a missão de voltar vitorioso. Retornou com a 67ª colocação geral, uma medalha no peito e o troféu Spirit, oferecido para os atletas com mais espírito esportivo. Aos 42 anos de idade, o gaúcho com sotaque quase espanhol (“entendes?”) corre desde menino. Dos campeonatos regionais escolares, passou para as corridas representando a Marinha, até perder a visão em decorrência de uma degeneração das células da mácula, aos 34 anos. Assim que recebeu o diagnóstico, começou um trabalho consigo mesmo de aceitação do problema, treinando as atividades do dia-a-dia de olhos fechados, para não perder a independência que sempre teve. Depois, decidiu que faria da sua limitação uma lição para passar adiante à filha mais velha, Marcela, que já era nascida na época. “Eu sou o espelho das minhas meninas [Marcela, hoje com 16, e Fernanda, 2] e pensei que aquilo deveria servir de referência para elas lidarem com as dificuldades que viessem a ter na vida. Foi aí que resolvi me tornar atleta profissional”, conta o atleta, casado há 22 anos e eleito pela mulher, Marcia, o trocador de fraldas oficial da casa. Vladmi é o segundo atleta no ranking nacional de corredores especiais dos 5 mil metros e terceiro no salto triplo. Já venceu, em sua categoria, maratonas como as de Genebra (2009), Amsterdã (2010), Berlim (2011), Lisboa (2012) e São Paulo (2013), além de ser quatro vezes campeão da meia-maratona do Rio de Janeiro. Só no ano passado participou de três ultramaratonas de 24 horas. Quando decidiu que correria a Atacama Crossing, passou a treinar com Alex todos os dias. Seria a primeira vez que os dois se lançariam em um terreno realmente desafiador e que teriam de administrar a própria alimentação ao longo do percurso. Na véspera da prova, os outros competidores pareciam não botar muita fé na sua corrida. “Não senti um respeito de igual para igual. Mas já no primeiro dia de prova, tudo começou a mudar, e tive a experiência mais gratificante da minha vida”, diz. Acompanhe abaixo a trajetória, etapa a etapa, desse valente corredor, que não teve medo, nem por um segundo, de não ser capaz de cruzar a linha de chegada.
Domingo, 3 de março (33 quilômetros, 4h19m)
“Logo no início enfrentamos uma subida em rochas bem difícil, porque eu preciso que o Alex me avise das pedras. Só que em um ritmo rápido isso se torna quase impossível. Além de chutar um monte delas, eu tinha o desconforto da areia entrando no tênis. Apesar disso, chegamos bem, entre os 15 primeiros. Quando estávamos na barraca descansando, dois corredores mexicanos vieram nos saudar, dizendo que estavam honrados em correr conosco, que eu era uma lição de vida para eles. Respondi: então minha missão já está realizada, porque eu vim aqui para mostrar que, apesar das diferenças, somos igualmente capazes de tudo o que nosso coração e mente determinam. E assim foi com vários outros corredores, que tiravam fotos no meio do caminho e me davam força o tempo todo.”
Segunda-feira, 4 de março (45 quilômetros, 9h05)
“Nesse estágio, atravessamos rios e encaramos uma montanha gigantesca, subindo mais de 1.100 metros, um trecho que sugou nossa energia. E ainda havia uma duna depois disso. Quando me dei conta de que eu iria descer na areia tudo o que subira até então, falei: ‘Agora é que eu vou me esbaldar!’. Fiz um sandboard sem prancha, com todo gás. O Alex ficou apavorado, com medo de cairmos, e eu curtindo aquela sensação das minhas pernas enterradas até o joelho na areia, deslizando. Foi uma das coisas mais sensacionais que já fiz. Quando a duna terminou, a coisa ficou feia porque entramos em terreno aberto, árido, o sol queimando, debaixo de 52º C, com os pés afundando numas cascas secas de sal. O Alex passou muito mal, quase desidratou.”
Terça-feira, 5 de março (42 quilômetros, 8h53m)
“Foi um dia difícil para mim, porque eram muitas dunas com pedras lascadas, que cortavam meus tornozelos. Comecei a ter bolhas na sola dos pés, o que me fez reduzir a velocidade. Não estávamos nem com os melhores tênis, nem com as mochilas mais leves. Para completar o massacre, a chegada podia ser vista pelo Alex em uma linha reta a 100 metros de nós, mas o percurso nos obrigava a dar uma volta enorme, com riachos, pedras e uma duna terrível, com o pórtico logo depois dela. Essa, eu subi de quatro, com muita dor nos pés. Quando chegamos, desandei a chorar. Levantei as mãos para o céu e agradeci: senti que poderia enfrentar qualquer coisa dali em diante. Na enfermaria, minhas bolhas eram sangue puro. Cada uma que o médico estourava, eu sentia o sangue escorrer.”
Quarta-feira, 6 de março (45 quilômetros, 8h47m)
“O terreno desse dia, bem aberto, era plano, mas a areia revelou-se muito mole. Atravessamos a região mais seca do deserto, com 18 quilômetros em que não chegam carros e não há água além da que levamos nas mochilas. O solo era de sal. A organização havia orientado os corredores que não se sentissem aptos a nem largarem para aquele estágio porque não haveria possibilidade de resgate. Os pés da gente, já bem castigados, fritavam cada vez que entravam no sal, parecia ácido. A recompensa era chegar ao acampamento e poder confraternizar com os outros, deitar no chão e curtir o silêncio absoluto. De vez em quando alguém vibrava, e eu descobria que uma estrela cadente tinha passado. Fiz muitos pedidos assim.”
Quinta-feira, 7 de março (78 quilômetros, 15h43m)
“Na noite de quarta para quinta, todo o salar que tínhamos na frente das barracas virou um enorme lago salgado e congelado. Largamos para o estágio mais duro da prova, tendo que atravessar aquele trecho. Fomos devagar, uns 20 minutos de travessia. Depois disso, pegamos cerca de 15 quilômetros cheios de espinhos que atravessam os tênis. Nossa comida havia acabado. O Alex precisa comer mais do que eu, e não tínhamos como levar muito peso nas mochilas. Nem a organização nem os outros corredores podem alimentar os competidores. Inventamos uma sopa de água quente com queijo ralado, que era o que tinha sobrado. Largamos às 8h e só chegamos perto de 23h30, mas a noite foi de festa: comemoramos o fim da etapa mais longa da prova. Depois disso estávamos quase lá.”
Sexta-feira, 8 de março (descanso)
“Neste dia as pessoas se recuperaram para a última etapa. Todos os 132 corredores que largaram na quinta-feira conseguiram concluir a etapa e estavam muito animados com o último trecho até a chegada, que seria uma corrida curta, de 8 quilômetros.”
Sábado, 9 de março (8 quilômetros, 45 min)
“Largamos num trote firme, para tentarmos chegar junto com outros competidores. Estávamos famintos depois de dois dias de sopa de queijo ralado. Essa última etapa eu fiz pensando só em comida. As pessoas nos paravam para tirar foto, abraçar, conversar. Nessa prova, senti que tive um encontro com Deus, uma mistura de adversidade e beleza. A natureza daquele lugar se fazia presente o tempo todo, na forma de dor – me dizendo que aquele era um terreno muito difícil – e nas sensações que eu tinha no corpo. O vento no rosto, o ar diferente que eu respirava, o toque das rochas, areia, sal, o calor na pele, que era incandescente, mas bonito também. Antes da prova, duas corredoras que se tornaram nossas amigas nos levaram para o Vale da Lua, que tem um pôr-do-sol famoso pela infinidade de cores. Sentei ali e elas me descreveram cada segundo da cena. Enquanto eu corria, conseguia projetar à minha frente imagens para cada sensação no meu corpo. Sempre que chegávamos ao pórtico, tinha alguém com uma bandeira do Brasil nos saudando. Levo dessa prova os amigos que fiz, a natureza que se impôs o tempo todo, e o projeto de correr no deserto do Saara em 2014 e, um dia, concluir todos os desafios da 4 Deserts.”
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2013)
Foto Thiago Diz
SUADOURO: Vladmi (esq.) e Alex, no segundo dia de prova, com o vulcão Licancabur atrás
U-HUU!: Em uma descida de duna, Vlad ultrapassa Alex e
vira o guia, curtingo a sensação de liberdade
ESPAÇO: Na quinta etapa, a dupla atravessa duna próxima ao vale da Lua
VALEU A PENA: A dupla encara pedras traiçoeiras; Vlad
chora após cruzar a linha de chegada da terceira etapa e
mata alta que cortava braços e pernas