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O escocês Danny MacAskill, o mais famoso malabarista sobre duas rodas do mundo, tenta se recuperar de uma série de lesões que o levou a seu pior martírio até hoje: ficar longe da bike

Por Nicke Heil
Fotos de Harry Borden

ESTAMOS EM UM BARZINHO lotado no calçadão de Venice, na Califórnia (EUA). Ao meu lado, o escocês Danny MacAskill, de 26 anos, um dos maiores fenômenos do chamado bike trial urbano, come um prato de enchilladas mexicanas. Perto de nós, um ciclista solitário treina umas manobras com sua bicicleta. O cara consegue ficar em cima da magrela parada, depois salta para cima de um banco e depois salta para descer, sem cair. “Ele é bem bom”, avalia Danny, que às vezes também é chamado de Danny “MegaSkill” (algo como Danny SuperTalento) ou Danny “MadSkillz” (Danny TalentoDoido, numa tradução livre).

O cara pode até ser bom, mas não é nenhum MadSkillz. O trial urbano é o subgênero urbano e obscuro do ciclismo que consiste em pular com uma bike – geralmente pequena, de quadro bem baixo e sem selim – em cima e por cima de grandes obstáculos (tipo um vagão de trem, por exemplo). As manobras exigem equilíbrio surreal e desafiam as leis da física. Se você é uma das cinco ou seis pessoas no mundo que ainda não viram os vídeos de Danny, então saiba que ele é o atual rei do esporte – e uma das primeiras celebridades dos esportes de ação criadas pelo YouTube e Vimeo.

Até o começo de 2009, Danny era um desconhecido mecânico de bikes trabalhando numa pequena oficina em Edimburgo. No mês de abril daquele mesmo ano, ele lançou um bem produzido vídeo caseiro, gravado pelo seu amigo David Sowerby. Em poucas horas após a postagem, o vídeo tornou-se viral. Recebeu algumas centenas de milhares de acessos da noite para o dia, foi visto em vários continentes, sob a indicação de pessoas influentes como Lance Armstrong, e apareceu nas mídias sociais de pessoas que nunca tinham ouvido falar de bike trial. Tudo o que sabiam era que um cara estava fazendo estripulias insanas numa bike, coisas que uma pessoa normal não conseguiria realizar nem sobre as duas pernas. Os truques eram espontâneos, graciosos e inesperados. O vídeo atingiu um milhão de visualizações em menos de um mês. Depois dez milhões. E depois 20 milhões.

Na cena de abertura, vemos Danny saltar sem parar, equilibrando somente sobre o pneu traseiro de sua bike, numa plataforma de um metro e meio, e só isso já era um truque impressionante. Sem sair da bike, e ao som de guitarras de indie rock, ele salta da plataforma e passa por cima de uma cerca de ferro pontiaguda, parecida com uma trilha de lanças, todas apontadas para sua virilha. O vídeo mostra algumas cenas de Danny caindo, gerando uma tensão no espectador do tipo “o-cara-vai-virar-eunuco”. Mas, claro, no final ele consegue.

Um ano depois, Danny já tinha um empresário, um papel principal num comercial da Volkswagen e um contrato lucrativo com a Red Bull. Desde então, seu cachê transcendeu o esporte, com um monte de empresas – de cadeias de salões de cabeleireiros masculinos ao comitê organizador das Olimpíadas de Londres – fazendo fila para capitalizar com sua imagem. Danny começou a viver um sonho.

Talvez não. Quando me encontrei com ele no sul da Califórnia em maio de 2012, Danny havia recentemente chegado da Escócia para um mês de fisioterapia intensa, depois de uma cirurgia na coluna a que foi submetido em fevereiro. A melhor parte de um bom contrato de patrocínio é que ele livra jovens prodígios como Danny de terem de trabalhar paralelamente ao esporte para se sustentarem. Eles ganham dinheiro exatamente para pedalar – onde, quando e como quiser. Os melhores contratos, como o que Danny tem com a Red Bull, também cobrem despesas médicas e de reabilitação.

No caso de Danny, essa cláusula é especialmente importante. Desde que se profissionalizou, o escocês ficou mais fora da bike do que sobre ela, com uma longa lista de lesões, incluindo três clavículas quebradas, dois pés quebrados, um menisco rompido, um disco vertebral rompido e incontáveis entorses, estiramentos e lacerações – quase todas advindas de acidentes com a bike. “Eu acho que passei dois terços do tempo lesionado ou me recuperando, desde o primeiro vídeo”, relembra.


TÔ BEGE: Ficou espantado? Este é apenas um dos truques de que Danny é capaz

Após o almoço, caminhamos até o ciclista solitário, cujos olhos brilham quando nos vê chegando. Quando está fora da bike, Danny é apenas um magrelão de 1,72 metro, com ombros que se curvam levemente para frente, como que acostumados a tantos anos segurando o guidão. Ele é branquelo e meio ruivo, e se veste bem no estilo freerider: bermuda largona, tênis e boné.

“Meu Deus, é você!”, diz o ciclista, que nos conta que se chama Dara Norman, é técnico de luz e ex-competidor de mountain bike. Os dois travam uma conversa altamente técnica a respeito de componentes de bike durante alguns minutos, e depois falam sobre a cena local de bike trial. Antes de irmos embora, Dara confessa: “É por causa de você que estou aqui!”.

Danny sorri e agradece, um pouco melancólico a meu ver, como se desejasse que seu arsenal de truques englobasse também a habilidade de mudar de corpo com o cara, trocando sua vida de astro pela do ciclista anônimo que faz manobras na privacidade do seu iPod.


AMIGUINHOS: Danny e uma nova fã em Glasgow, na Escócia


EU PERSEGUI DANNY por quase um ano. Em agosto de 2011, era para eu ter voado até Vancouver, no Canadá, onde ele estava filmando. Mas alguns dias antes de eu partir, recebi um telefonema dizendo que Danny tinha escorregado numa titica de ganso durante uma manobra na primeira meia hora de gravação e rompera o menisco. É verdade. E esse foi só o começo dos problemas. As lesões, na verdade, se tornaram algo crônico desde que ele machucou as costas num salto há dois anos. Ainda assim, Danny conseguiu fazer mais dois clipes desde o primeiro: The Way Back Home, lançado em novembro de 2010, e Industrial Revolutions, de 2011, parte de um documentário chamado Concrete Circus, realizado pelo britânico canal de TV Channel 4. Juntos, os vídeos foram vistos mais de 50 milhões de vezes online [ambos foram exibidos no Brasil nas duas edições do Festival de Filmes Outdoor Rocky Spirit, promovido pela editora Rocky Mountain, que publica Go Outside.

Ainda que a fama de Danny tenha corrido o mundo, ele continua modesto a ponto de ser até tímido. Na montanhosa ilha de Skye, onde foi criado, ele diz que as pessoas costumam “minimizar tudo”. “Lá ninguém fica dizendo ‘eu sou o fodão’, como rola em outros países. Talvez seja uma mania dos escoceses, que são pessoas de um lugar mais sofrido.”

O street trial é como uma arte performática sobre duas rodas. Alguns já descreveram a modalidade como o parkour da bike. Como no parkour, não há corridas ou competições, só uns caras fazendo manobras. O estilo de pedal de Danny vem não só do trial tradicional, mas também do BMX e do mountain bike, outra paixão. Sua bicicleta, a Skye da Inspired Bicycles, foi feita sob medida para ele, e incorpora design das duas modalidades.

Em seus vídeos, Danny deixa sempre suas manobras fluírem ininterruptamente, conectando piruetas e saltos inspirados em diferentes estilos de pedal, no terreno que tiver a sua disposição na hora e em sua própria imaginação. Quando Danny olha para uma rua, ele não vê o que todos nós enxergamos, como o trânsito, as pessoas ou os carrinhos de cachorro-quente. Ele vê uma tela multifacetada onde pode pintar suas manobras artísticas. Ele não pensa apenas como um ciclista, mas também como um diretor – como a cena será enquadrada e coreografada? Qual será a trilha sonora? “Ele fica empolgado, cheio de ideias malucas, tipo uma descida de um degrau gigantesco emendando num 360º que depois emenda em alguma outra bizarrice”, diz Stu Thomson, ex-campeão de bike downhill que se tornou produtor de filmes e que dirigiu Industrial Revolutions.


DANNY NÃO TEM CARRO aqui em Los Angeles, então, todos os dias, antes do café da manhã, ele pedala do apartamento que a Red Bull aluga para ele em Marina Del Rey até uma clínica médica ultramoderna que ajuda vários atletas profissionais – incluindo o campeão de BMX Mike Day – a se recuperarem de lesões. Sua reabilitação e seu treinamento são orientados por E.J. Kreis, ex- preparador físico da Universidade de Los Angeles.

“Qual é a regra número um?”, grita E.J. para Danny, enquanto o jovem ciclista faz abdominais numa máquina.

“Não se machucar”, geme Danny.

“Muito bem. E qual é a regra número 99?”

Danny parece não saber a resposta.

“Não se machucar!”, responde o preparador.

“Ele sabe, e ele escuta o que eu digo”, conta E.J., inclinando-se para o meu lado e falando em voz baixa. “O caminho de volta pode ser longo e duro, mas esse menino é forte. Eu sei distinguir um cara forte à primeira vista.”

Danny acha que sua lesão na coluna – uma ruptura no segmento onde a região lombar encontra com a sacral – é a fonte da maioria dos seus problemas. Suas dores crônicas nas costas e o tempo que essa lesão o forçou a ficar parado causaram um enfraquecimento geral, e o resto do corpo ficou vulnerável a problemas subsequentes. O prognóstico pós-cirúrgico era favorável, porém árduo. Danny achava que não voltaria a ficar 100% nos próximos cinco ou seis meses, quando esperava começar a desenvolver novas manobras e gravar um novo vídeo.

Seus patrocinadores, que incluem as câmeras GoPro e o fabricante de calçados Five Ten, além da Red Bull, vêm sendo muito pacientes. “Todos sabem o quanto ele está motivado a melhorar, então estão tranquilos”, diz Tarek Rasouli, empresário de Danny. “Se há alguma pressão, ela vem do próprio Danny.”

Danny cresceu no vilarejo de Dunvegan, localizado na ponta norte da ilha de Skye, cuja fama “A.D.” – Antes de Danny – advinha de uma banda folclórica chamada Peatbog Faeries. Ele e seus amigos esticavam redes de pesca entre as árvores e faziam mortais de costas saltando dos galhos. Ele começou a pedalar aos 4 anos de idade, e na adolescência incorporou acrobacias a seu estilo de pedalada. Em casa, assistia a vídeos de lendas das trilhas como Hans “No Way” Rey e o canadense Ryan Leech. Em pouco tempo ele já estava imitando as manobras deles em quaisquer obstáculos em que conseguisse colocar sua bike.




DEU VERTIGEM: Danny "brincando" em ponte de Glasgow

Em Dunvegan, o pai de Danny, Peter, tem um museu dedicado a um parente ancestral imenso que viveu no final do século 19. Até 1998, quando o Guinness Book parou de registrar esse tipo de coisa, Angus “Giant” MacAskill detinha o recorde de o homem mais alto do mundo, com 2,36 metros e quase 230 quilos. O cara tinha um tórax de 2 metros de diâmetro e viajava o mundo com o circo P. T. Barnum, levantando cavalos e carregando âncoras de 1000 quilos. Mas, além de ajudar o pai a consertar o teto do museu todo verão, Danny não pensava muito em seu ancestral gigante. Ele simplesmente andava em sua bike, até ficar bom o suficiente para fazer apresentações locais. Em 2008, ele e seu amigo David Sowerby começaram a gravar o primeiro vídeo nas ruas e nos parques de Edimburgo – a dupla chama o vídeo simplesmente de Inspired, por causa do então patrocinador de sua bike. A produção custou menos de US$ 100, e eles foram filmando conforme pedalavam.

Em 2009, depois de o vídeo explodir no Youtube e de Danny assinar um contrato com a Red Bull, ele, David e o colega Mark Huskisson saíram pela Escócia em um trailer de 7,5 metros para gravar o segundo vídeo, The Way Back Home, com um orçamento de mais US$ 10 mil. Baseado na ideia de uma viagem pelas estradas entre Edimburgo e a ilha de Skye, o filme teve um resultado impressionante para uma segunda produção – imagens deslumbrantes, trilha sonora melódica e manobras de fazer cair o queixo, incluindo saltos nas muralhas do Castelo de Edimburgo.

Danny sente-se um pouco desconfortável com o grau de fama que conquistou, mas também entende que é uma realidade inevitável e que, agora, precisa lidar com a situação. Um de seus medos é ser tragado pelo furacão milionário dos esportes de ação comerciais, para depois ser cuspido do outro lado. Em 2011, ele gravou um comercial para a marca de barbeadores Remington (“Poder, precisão e controle!”) e participou como dublê no filme Perigo por Encomenda, sobre um bike-mensageiro que se envolve numa perseguição por causa de um pacote suspeito. Mas, na maioria das vezes, seja por causa das lesões ou por sua própria vontade, Danny declinou convites desse tipo: para cada trabalho que ele aceitou fazer, ele deixou de aceitar outros dez, pelo menos. “Não quero ficar ali segurando um frasco de desodorante ou qualquer outra coisa só para ganhar uma grana”, diz.

“É como se eu tivesse me transformado num homem de negócios, coisa que eu nunca planejei para mim”, continua. “De repente tudo ficou tão grande que eu não conseguia mais organizar minha vida sozinho. Não sou muito bom nessas coisas de reuniões e gerenciamento de tempo. Sou um cara da criação, e isso não me faz muito eficiente para lidar com compromissos profissionais.”


AS COSTAS DE DANNY não são seu único foco de trabalho em Los Angeles. Antes de eu ir embora, também tenho a chance de ver seu cérebro em ação. Parte do trabalho de reabilitação de Danny inclui visitas regulares ao Neurotopia, um programa de treinamento do cérebro afiliado ao centro médico onde está se tratando. O Neurotopia pretende ajudar os atletas a melhorarem seu desempenho através do desenvolvimento de “padrões ótimos de ondas cerebrais”, melhorando, assim, o foco, a agilidade e o gerenciamento do stress.

No espartano escritório do Neurotopia, um técnico chamado Donnie Hale deita Danny numa poltrona reclinável acolchoada e conecta uma série de sensores em sua cabeça. Logo, um gráfico cheio de cores aparece no monitor de Donnie e, ao mesmo tempo, numa imensa TV de tela plana em frente a Danny. Então Donnie apaga as luzes, e a tela da TV transforma-se num videogame em que Danny primeiro pilota um foguete, depois um carro de corrrida, através de túneis e de percurso de obstáculos, usando apenas a mente. Quando ele leva seu cérebro à zona correta – ou aos padrões de ondas cerebrais corretos –, o motor gira constantemente. Mas, quando as frequências elétricas variam, o carro engasga e morre. O programa Neurotopia já utilizou essa técnica de treinamento em vários atletas da Red Bull especializados em esportes extremos, além de atletas olímpicos dos Estados Unidos.

Após a sessão, pergunto a Danny se ele acha que isso vai fazer alguma diferença. “Não sei, mas é divertido, não é?”, responde, rindo. “Em algumas das manobras que faço, não dá para não estar 100% focado. Mas pode ser difícil manter a concentração, principalmente quando se tem uma câmera ou uma grua apontada para você, tipo no meu salto no Castelo de Edimburgo. Se você para um segundo para pensar como estão saindo as imagens, está frito.”

Apesar das regalias de seu sucesso, Danny parece ter saudades da antiga vida, dos dias despreocupados antes de ele e David Sowerby clicarem o botão de upload para o Youtube, em 2009. “Eu fui do nada ao tudo”, conta. No seu caso, “tudo” também significa “em todo lugar”. Ele não tem namorada (“Muito tempo na estrada”) ou endereço fixo. Seu apartamento em Marina Del Rey, embora temporário, é mobiliado com seu estilo: bikes (de cabeça para baixo, parcialmente desmontadas), revistas de bike, um notebook aberto na tela de fóruns de bike, roupas jogadas pelo chão, um balde de proteína em pó. A cena apenas reforça o que ele me disse várias vezes durante minha visita: “Tudo que eu quero é poder pedalar minha bike de novo”.

No último verão, ele começou a fazer exatamente isso: pedalou levando a tocha olímpica durante a jornada dela por Glasgow, apesar de a manobra mais complicada ter sido apenas uma empinada padrão. Ele também viajou até a Alemanha com Dieter Dorn, um “cientista maluco” que desenvolveu seu próprio método holístico de massagem e tratamento de coluna. “Nada é mais importante do que pedalar”, diz. “É o que eu sempre fiz. Quando eu melhorar de saúde, não vou ficar nem um dia longe da bike.”

Da última vez que conversamos, no final do verão nos Estados Unidos, a reabilitação parece ter valido a pena. Ele tinha voltado da Itália, onde filmou sequências de mountain bike. E, ainda mais promissor, acabara de assinar o contrato de aluguel para seu bike park dos sonhos: um grande armazém em Glasgow, onde ele já estava montando trilhos e obstáculos feitos para seu tipo de coreografia em duas rodas. Será o cenário para o próximo vídeo que ele está tentando rodar daqui uns meses. MadSkillz parecia pronto para pedalar. Para ele, não há tempo a perder.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2013)