Um ultramaratonista britânico atravessa as duas ilhas da Nova Zelândia de norte a sul em 53 dias, correndo sem parar
Por Maria Clara Vergueiro
O QUE FAZ O CORAÇÃO de um corredor de montanha bater mais forte do que cruzar, em primeiro lugar, a linha da mítica prova Ultra-Trail du Mont-Blanc, nos Alpes? Em 2010, quando o britânico Jez Bragg abocanhou o título da mais renomada competição dessa modalidade, era difícil imaginar uma situação que pudesse fazê-lo vibrar mais. Mas o atleta, que aos 31 anos é considerado um dos maiores nomes da corrida em trilha de seu país, decidiu no ano passado que desejava muito mais que pódios e fama esportiva – queria mesmo era se lançar sozinho em trilhas distantes mundo afora. No último dia 3 de fevereiro, quase não conseguiu segurar o coração no peito de tanta alegria: havia completado o percurso de mais de 3 mil quilômetros que atravessa as ilhas da Nova Zelândia de norte a sul, depois de 53 dias correndo uma média diária de 65 quilômetros, além de alguns desafiadores trechos remando de caiaque.
O projeto começou a ser pensado depois que o governo neozelandês abriu o Te Araroa, caminho que liga o norte da ilha Norte ao extremo sul da ilha Sul, cruzando florestas, pântanos, vulcões, praias, estradas e cidades do arquipélago. A possibilidade de se jogar em paisagens belíssimas, de enorme versatilidade de terreno, influenciou bastante na escolha do destino da aventura. Jez, que é patrocinado pela The North Face, inscreveu o projeto da expedição, calculada para ter em torno de 50 dias, no programa da marca que apoia ideias de seus atletas, conseguindo o aval da empresa no início de 2012. A partir daí, Jez começou uma maratona pessoal para conciliar as demandas da expedição com as da própria vida profissional, na qual coordena um escritório de projetos de construção, além dos ajustes para a união com a noiva, Gemma Bregg, com quem se casou em outubro, dois meses antes de se mandar para a Oceania. “Quase enlouqueci”, contou Jez à Go Outside, logo depois de chegar em Riverton, cidade que encerrou sua jornada neozelandesa.
Com tanta pressão, a largada para a expedição, no dia 11 de dezembro do ano passado, foi como o começo de desejadas férias. “Assim que comecei a correr, desliguei minha mente de tudo aquilo e fiquei completamente focado no desafio”, desabafa o britânico, que partiu acompanhado de perto por dois parceiros, Mark Tylor, sogro de Jez e exímio remador, e James Ashwell, amigo de infância com experiência em viagens longas. “Mark é mais que um sogro. Somos muito parecidos, estamos sempre juntos. E James é meu amigo há 20 anos, me conhece como ninguém”, disse o atleta. Sua equipe de apoio dirigiu o carro-casa da expedição, preparou as refeições, cuidou dos equipamentos e zelou pelas horas de sono e recuperação de Jez, que não foi o primeiro a atravessar o Te Araroa (o australiano Richard Bowles largou antes dele), mas no momento é o mais rápido a ter concluído o feito.
TODOS OS DIAS (ou quase todos, porque em alguns trechos o atleta precisou ser autossuficiente por mais tempo), depois de 12 horas correndo, Jez encontrava sua equipe para recuperar as energias, descansar e alinhar os detalhes do percurso seguinte. A jornada começava sempre com um café da manhã poderoso, bem calórico e rico em gorduras, que seriam queimadas ao longo do dia. “Apostei em chocolates e arroz doce, um combustível sensacional porque é de fácil digestão e rico em glicose, carboidratos e proteína”, contou Jez. Frutas, sanduíches, grãos e nozes variadas completaram o cardápio, inteiramente baseado não em produtos de alta performance, como gel e isotônicos, mas em “comida de verdade”, como define o atleta. “Em uma situação dessas, o corpo realmente precisa de comida, alto teor de gordura e calorias, e foi o que dei a ele. O fato de não ter optado por bebidas esportivas high-tech pode surpreender as pessoas, mas a estratégia deu certo.” À noite, seis horas de sono eram suficientes para Jez recuperar as forças. “Nunca dormi tão pesado em toda a minha vida. Eu praticamente desmaiava na cama”, diz.
Jez nunca havia encarado desafios maiores do que provas e expedições de seis dias. Apesar da confiança de quem treina cerca de 35 quilômetros diariamente, correr 12 horas por dia durante quase três meses era algo imponderável do ponto de vista físico. A surpresa foi que seu corpo respondeu incrivelmente bem ao esforço. “O que mais me impressionou foi ver como corpo começou a fazer tudo o que minha mente pedia, além da rapidez com que eu me recuperava. As dores iniciais desapareceram depois de duas semanas.” Poucos dias depois de chegar em Riverton e encerrar gloriosamente o desafio, Jez só pensava em afazeres mais simples. Ainda não sabia sobre seu calendário de provas e estava mais preocupado com a decoração da casa onde viverá com Gemma, sua esposa “extra-compreensiva”.
Kilometragem
3.054 quilômetros é o percurso total completado por Jez (345 quilômetros de caiaque; 285 quilômetros correndo em asfalto e 2.424 quilômetros, em trilhas)
60 quilômetros foi a menor distância percorrida em um dia; 80 quilômetros foi a maior
6.000 calorias ele gastava diariamente
2,6 quilos era o peso dos equipamentos que carregava consigo
12 pares de tênis foram levados para a expedição
FAZ-TUDO: Jez correu cerca de 65 quilômetros por dia
ETA, MUNDÃO: Os mais de 3 mil quilômetros percorridos incluíram passagens por trechos
de praia, floresta, asfalto e lgaos; no detalhe, o motorhome e os muito pares de tênis usados na expedição
Como em qualquer aventura longa, a expedição de Te Araroa teve alguns percalços e muitos desafios, em especial os trechos que precisaram ser feitos de caiaque. Entre os riscos calculados, estava a travessia do canal Cook, um dos mais perigosos do mundo, que separa as duas ilhas da Nova Zelândia, além de outras partes de água que exigiram bastante técnica de caiaque, como a descida do rio Whanganui e a travessia do lago Wakatipu. A experiência de três anos remando e mais um intensivo de treinos com o sogro Mark Tylor, somados à sorte do clima favorável na hora de atravessar o canal, foram um pequeno nos 345 quilômetros que Jez teve que percorrer de caiaque no meio das trilhas – mas nem por isso foram fáceis. “As seções de caiaque foram as mais complicadas para mim”, conta o atleta, que também atravessou inúmeros trechos de água a pé, esperando o momento certo para cruzar os muitos rios que cortam o território neozelandês. “O que eu acabei fazendo foi bem parecido com uma corrida de aventura. O terreno é incrivelmente duro e árido na Nova Zelândia, não há trilhas muito marcadas e, na maior parte do percurso, é preciso saber técnicas de navegação de mapas. Havia muitos pedaços pantanosos e longos trechos de florestas, que às vezes exigiam alguns dias para serem varadas.”
Mas nada testou tanto o corpo e a cabeça do Jez do que uma infecção estomacal que o tirou do caminho por três dias e o fez correr como “um velho senhor” por outros três. Jez já havia corrido 35 dias quando foi derrubado pela doença. Sem tempo a perder e com pouquíssimos recursos para se tratar, o jeito foi testar algumas medicações sugeridas por um médico de Londres, amigo de Mark. “Cheguei a pensar em começar tudo de novo porque havia parado e isso não estava no roteiro. Mas depois me convenci de que tinha feito uma corrida muito boa até aquele momento e havia dado sorte com o clima na travessia do canal Cook. Cheguei à conclusão de que valia a pena esperar uns dias”, ponderou. “Mas foi, sem dúvida, o perrengue mais difícil pelo qual passei no esporte”, conta Jez, que se considera um “semi-atleta”, apesar dos dez anos de trilhas e resultados expressivos. “Tenho minha profissão, minha empresa e divido-me entre essas obrigações e as competições, que eu adoro”, explica ele, que começou com corridas de rua e depois passou para as trilhas.
SEM PARAR: Jez corre com vulcão ao fundo