Caçadores de pipa

Os velejadores mais rápidos do mundo hoje são os kitesurfistas – nenhuma embarcação a vela é páreo para eles. Em voos que podem chegar a 95 km/h, esses atletas se arriscam em competições perigosas para ver quem é o mais veloz do planeta

Por Adam Fisher


AO SABOR DO VENTO: Competidores disputam para ver quem é o mais veloz em Martha’s
Vineyard, nos EUA


CHEGUEI À CASA DE BARCOS em Edgartown, na ilha de Martha’s Vineyard, no estado Massachusetts (EUA), atrasado e sem roupa adequada para o que acabou se mostrando um jantar semi-pomposo em um iate-clube formal para cacete. Blazers azuis, calças esporte fino e mocassins davam o tom do evento, onde havia caras de saia escocesa tocando gaita de fole e as conversas aconteciam metade em inglês e metade em francês. Durante os coquetéis, um jovem bonitão chamado Brock Callen subiu em uma sacada. “Bem-vindos à primeiríssima Regata de Velocidade da América do Norte”, anunciou, erguendo a taça de champanhe.

No chão, dez dos “velejadores” mais rápidos do mundo ergueram seus copos em celebração. As aspas são usadas aqui porque os competidores em questão são, na verdade, kitesurfistas. Em 2008, a Federação Internacional de Vela (FIV) decidiu que, já que os kitesurfistas dependem dos mesmos ventos, das mesmas águas e das mesmas leis da física que os velejadores de barcos, ele podem competir pelo recorde de velocidade da FIV. Tanto windsurfistas como kitesurfistas quebraram esse recorde bem rápido. E não demorou muito até um kitesurfista corpulento chamado Robbie Douglas, então com 37 anos, tornar-se oficialmente o velejador mais veloz da história, com uma velocidade máxima de 49,84 nós –cerca de 92 km/h.

O fato de Robbie e outros atletas terem quebrado tão facilmente o recorde anterior de 49,09 nós mudou para sempre o mundo da vela de velocidade. Com Robbie liderando o pelotão, uma nova geração de competidores invadiu o mundo da vela como um tsunami. O recorde vem sendo quebrado repetidamente desde 2008, mas Robbie, agora com 41 anos, ainda é o velejador mais rápido de todos (em 2010, ele atingiu a velocidade máxima de 55,65 nós).

Curiosamente, todos os recordes foram quebrados no sul da África, em uma espécie de trincheira feita pelo homem e cheia de água salgada, localizada na costa da Namíbia. Lá, a proximidade da areia quente com o oceano frio gera ventos poderosos que não raro chegam a 50 nós por hora. A trincheira tem menos de 30 centímetros de profundidade — o que reduz as marolas — e fica situada no ângulo exato para que os kitesurfistas aproveitem o vento ao máximo. Além de veloz, a trincheira africana é muito perigosa, principalmente porque só tem 1,85 metro de largura. Robbie machucou o pulso lá em uma competição, em 2010. Charlotte Consorti, uma kitesurfista francesa de 33 anos, perdeu os sentidos depois de um acidente a 50 nós por hora no mesmo ano. Outro francês, Jerome Bila, de 40 anos, quebrou a coluna depois de chocar-se com outro atleta.

Por isso que, em 2012, a Namíbia ficou fora do circuito e todos os melhores velocistas do mundo, com exceção de um, vieram aproveitar a relativa segurança de Martha’s Vineyard no final de outubro para fazer o que sabem melhor em canais protegidos do mar aberto por bancos de areia. Vineyard foi escolhida não porque é um bom lugar para quebrar recordes — a natureza não tem como superar uma trincheira artificial —, mas porque três entre os dez kitesurfistas mais rápidos do mundo vivem aqui. Robbie Douglas é o número um, e seus irmãos Jamie e Morgan estão na nona e décima posição, respectivamente.

Depois das boas-vindas no iate-clube, Brock Callen começa a lançar perguntas aos competidores. “Charlotte, qual é sua velocidade máxima?”, pergunta. “Cinquante”, ela responde. Brock prossegue pela sala e faz a mesma pergunta a Alex Caizergues, de 33 anos, um dos mais velozes entre os franceses. “Mais de 60”, responde Alex. Embora seja possível que ele tenha alcançado ou ultrapassado por um momento os 60 nós durante um de seus velejos na trincheira de Lüderitz, na Namíbia, essa velocidade não foi oficialmente confirmada. Ao mencioná-la assim de cara, ele está abertamente sugerindo que pode derrotar Robbie Douglas.

O desafio estava lançado. Brock, que é o diretor do evento, aproveita para instigar os ânimos. “E quanto a você, Robbie?”, pergunta. A sala fica em silêncio. “59,5”, responde. A galera dá uma risada nervosa. Será que o competidor famoso por sua garra está admitindo a possibilidade de derrota? Mas aí ele acrescenta: “Aqui na ilha”.


MARTHA’S VINEYARD é um triângulo de 225 hectares cheio de terrenos caríssimos, que há muito tempo é destino de férias de políticos, astros da mídia e artistas norte-americanos. Atualmente a ilha costuma aparecer nos noticiários porque o presidente Barack Obama passa suas férias de verão aqui, mas entre os nativos Robbie Douglas é o maior nome do pedaço. Morgan Douglas, de 31 anos, é o capitão do Alabama, uma icônica escuna de madeira de 126 pés adorada pela galera local e pelos turistas. Robbie e Jamie, seus dois irmãos mais velhos, cuidam do Black Dog, um bar-restaurante que também vende roupas e que ajuda a manter o Alabama flutuando.

Robbie faz o tipo caubói durão: ele masca fumo e ouve música country. O extrovertido Jamie, um ano mais novo que Robbie, prefere a música dos ancestrais escoceses. Morgan é o mais jovem e arrumadinho dos três irmãos. Todos eles são grandões — cada um tem cerca de 1,85 metro e pesa uns 100 quilos —, e todos praticavam luta greco-romana na época da escola. Não é surpresa que eles viviam se pegando de porrada quando crianças. “Não temos uma boa briga há algum tempo”, Jamie me conta, saudoso. “A gente chegou ao limite cerca de uma década atrás”, acrescenta Morgan, lembrando-se de peças de mobília que não sobreviveram aos pegas. “Foi quando percebi que aquilo não iria acabar bem.” Agora que são adultos, as disputas entre eles passaram das brigas físicas para uma arena completamente nova: o kitesurf.

O dia após o jantar de abertura está lindo, ensolarado, com uma brisa de 20 nós, quando os competidores chegam a Cape Poge, o mais remoto banco de areia de Vineyeard. Punhados de areia molhada servem de lastro para segurar as pipas na praia estreita. Os únicos por aqui somos nós e os mexilhões. “Nada de torcidas, nenhum patrocinador de peso. Um evento underground… na água!”, diz Robbie. “É o Clube da Luta do kite.” E a primeira regra do Clube da Luta, pelo menos na família Douglas, é a seguinte: vença!

A “pista” de aceleração aquática tem cerca de 300 metros e foi marcada com boias. Depois de uma dúzia de voltas de treino, Alex Caizergues dispara com sua pipa, firma a vela para pegar mais um empurrão do vento e passa quase flutuando pelo curso. Robbie segue atrás, e logo a maior parte dos competidores está voando baixo, literalmente. Não demora até o francês Christophe Prin-Guenon se dar mal quando sua quilha traseira bate em uma pedra submersa na maré cada vez mais baixa. Ele tropeça e cai sobre o píer a 30km/h.


O MAIS RÁPIDO: Robbie Douglas, recordista mundial de velocidade em kitesurf

Charlotte Consorti é a primeira a chegar ao local e arrasta Christophe, apagado e ensangüentado, para fora da água. O paramédico não demora para cortar a roupa de proteção do francês e colocar um colar cervical em seu pescoço. Jamie chega correndo na doca, puxado por sua pipa, apoplético: “Quem vai chamar o helicóptero?”. No final, Christophe é evacuado em uma lancha, para depois voltar mancando para a França com um buraco enorme no pé, um pulso quebrado, a cabeça enfaixada e um belo olho roxo. “O cara é grandão”, diz Robbie, sem se alterar. “Ele aguenta bastante porrada.”

Na manhã seguinte, durante uma reunião no café-da-manhã para discutir o que aconteceu, Jamie pede a palavra. “Considerando os obstáculos no curso, eu acho que os tempos de hoje não deveriam ser contada”. É uma teoria defendida com paixão, embora não possa ser descartado o interesse pessoal: seus tempos foram péssimos, e ele levou uma lavada dos irmãos.


LOGO DEPOIS DE CRISTOPHE deixar a ilha, a medição do barômetro começa a cair, e um vento noroeste começa a entrar. Para os velejadores, céu escuro é boa notícia. “A gente achou uma virgem para sacrificar ontem”, brinca Alex. Quando a tempestade chegou para valer — no penúltimo dia da competição —, o tempo estava tão ruim que os voos foram cancelados e nem as balsas ousaram sair da doca.

Nós nos reunimos no lado leste de Sengekontacket Pond, uma longa e estreita praia no noroeste da ilha. Logo depois do meio-dia, a maré e o vento começam a mudar para valer. A 30 nós, colocar as pipas no ar já é arriscado. A 40 nós, um bando de gaivotas passando por cima da gente parece voar em marcha a ré. Quando o vento chega a 50 nós, as gotas de chuva nos atingem de lado como pequenas balas de borracha.

Depois que estão no ar, as pipas se deformam e às vezes viram do avesso. Até mesmo os irmãos Douglas estão impressionados. “Está assustador lá fora, cara”, diz Morgan, saindo da praia depois de perder uma pipa no outro lado da baía. Rob perdeu uma também. “Tive que ejetá-la!”, conta, depois de quase ser arrastado por uma pipa grande demais, o que o forçou a puxar a cordinha que ne a pipa e o kitesurfista. “Nunca tive que fazer isso antes em Vineyard.”

No final da competição, a visibilidade está parecida com a de uma nevasca, com nuvens de tempestade acima e espuma das ondas abaixo. Com Brock no jet-ski correndo atrás de pipas fujonas, eu fico encalhado no banco de areia, segurando suas bandeirolas de orientação contra o vento — o que, acabo percebendo, me torna um grande alvo para os competidores seguirem. O trajeto mais rápido no percurso, como Alex e Rob acabam descobrindo, é o que aponta direto para o banco de areia onde estou para fazer a curva no último segundo. Da minha perspectiva, a pipa passa tão perto e tão rápido que eles já foram embora antes de eu conseguir registrar o que está acontecendo. A velocidade em condições como essa é uma questão de cavar um canalzinho na água com a beirada da sua prancha e deixar a pipa quase na linha do horizonte.

A pipa e a espuma levantadas por Robbie são as maiores. Com mais de 100 quilos, ele inclina as costas em direção à água para ser puxado pelo vento. No outro extremo, está Alex, pequeno como um pônei, com equipamentos mínimos, que cava sua linha na água com precisão, reduzindo a espuma e aumentando a velocidade.

Não acontece nenhum acidente grave nesse dia, mas foi por pouco: uma das pipas na praia se soltou do seu lastro de areia e as cordas enrolaram em um espectador, puxando-o para uma estrada movimentada.



DISPUTA SÉRIA: Cena da regata de velocidade que rolou em outubro em Martha’s Vineyard, nos EUA

NO IATE-CLBE DE EDGARTOWN, a cerimônia de premiação é uma zona. Robbie leva o troféu pela maior velocidade: em uma de suas corridas no dia anterior, conseguiu atingir uma velocidade máxima de 51 nós, feito inédito em águas naturais. Alex ficou com o segundo lugar. Falando em nome de seus compatriotas, ele diz: “Nunca acelerei tanto em uma competição.” Ele promete que todos os franceses voltarão no ano que vem.

Jamie ficou com a terceira maior velocidade do evento, depois que se recuperou do dia ruim em Cape Poge com algumas voltas impressionantes na Sengekontacket Pond. Os quarto a oitavos lugares foram conquistados pelos franceses, enquanto Morgan amarga uma desapontadora nona colocação, logo na frente de Charlotte Consorti.

No dia seguinte, depois que acabou todo o champanhe e todas as ostras, o time da família Douglas volta para seu próprio iate-clube – um barracão caindo aos pedaços do outro lado da rua em frente ao Black Dog e atrás do píer que leva ao Alabama. “Às vezes os turistas aparecem quando estamos por aqui e perguntam: ‘O que está rolando?’”, conta Robbie. Não tem muito coisa para os turistas verem: só três irmãos grandões, dois sofás velhos e uma pilha de pranchas de kitesurf penduradas nas vigas. “Eu sempre conto a verdade para eles”, explica ele. “Este é o iate-clube mais rápido do mundo! Eles dão risada sem acreditar e vão embora.”

Neste ano pelo menos, essa ostentação continua verdadeira. Mas os kitesurfistas não serão os mais rápidos para sempre. Barcos não conseguem passar dos 50 nós por um limite físico chamado barreira de cavitação — o equivalente aquático da barreira do som. Superar essa barreira é um complicado problema de engenharia, mas, em teoria, velas rígidas e designs radicais podem conseguir a proeza. Depois de quatro anos de domínio do kitesurf, os construtores de barcos estão começando a emergir de seus galpões com veleiros que devem conseguir chegar aos 65 nós, no mínimo.

Robbie está confiante que, em futuras tentativas de quebrar o recorde na África, ele consiga passar dos 60 nós, mas não está claro até quando ele pode se manter nesse jogo. “O corpo humano tem seus limites”, diz. “Fisicamente falando, estou em declínio.” Com 34 anos de idade, Morgan ainda está perto da sua melhor forma física. E, acredita-se, ele tem todas as qualidades para deixar os iatistas para trás pelo resto da década. Por isso faço a ele a pergunta que ficou no ar durante todo o evento: teria ele a dedicação e a coragem necessárias para isso? “Não sei”, admite Morgan. “Mas não vou quebrar o pescoço correndo atrás do recorde mundial em uma trincheira perigosa.”

“Aprendi muito com os franceses”, conta Robbie. “Eles acreditam mesmo que suas vidas têm um propósito.” Então ele faz uma pausa, para ter certeza de que Morgan está ouvindo. “E se o propósito deles é serem velejadores de velocidade, mesmo correndo o risco de se machucarem de um jeito bem catastrófico?”, pergunta. “Bem, isso é romântico.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2013)