Príncipe do deserto

O espanhol Vicente Juan García Beneito se torna o primeiro homem da história a vencer, em um só ano, todas as quatro ultramaratonas que compõem o circuito 4 Deserts

Por Maria Clara Vergueiro


PONTA DE LANÇA: Logo atrás de dois companheiros de corrida, Vicente, à dir. na foto,
leva o número amarelo de líder da prova em pleno deserto do Atacama


O 4 DESERTS É UM DOS CIRCUITOS de ultramaratona mais difíceis do planeta, composto por quatro provas nos desertos do Atacama (Chile), de Gobi (China), do Saara (norte da África) e da Antártida. Completar uma das etapas já é, por si só, um feito extraordinário. Imagine, então, não apenas conseguir cruzar a linha de chegada, mas vencer todas as edições – e isso tudo no mesmo ano. O super-herói em questão é o bombeiro Vicente Juan García Beneito, de 36 anos. Esse espanhol de garra surreal acaba de se consagrar campeão invicto do circuito inteiro do ano passado. Isso significa que, em 2012, o atleta foi o mais veloz entre seus adversários ao longo de um total de 1.000 quilômetros e 28 dias de competição pelas regiões mais inóspitas do mundo. Cada prova dura sete dias e conta com um percurso de 250 quilômetros. Jamais na história do evento alguém chegou tão longe.

Atacama Crossing, Gobi March, Sahara Race e The Last Desert são os nomes dos quatro desafios enfrentados por Vicente. Nascidas uma de cada vez, entre 2003 e 2006, as provas são, individualmente, perrengues impressionantes. Ao longo de uma semana, os corredores devem ser auto-suficientes durante todo o percurso, carregando tudo o que possam precisar nas costas, incluindo comida. A organização disponibiliza apenas água e uma barraca por competidor, além, claro, da equipe médica em caso de emergência. Só outras oito pessoas conseguiram terminar todas as etapas do circuito até hoje. Dentre elas, apenas o sul-africano Ryan Sandes já havia vencido as quatro. Ainda assim, Vicente é o único a fazer isso em um mesmo ano.

Desde que terminou o 4 Deserts, no dia 3 de dezembro, quando cruzou a linha de chegada na Antártida, o espanhol está feliz da vida, comemorando a conquista e descansando o corpo e a cabeça de tanto esforço. Ele abriu uma brecha na agenda e contou para a Go Outside um pouco sobre essa experiência, no mínimo, fantástica.


COBERTO DE GLÓRIAS: Vicente acena para o público na chegada da etapa de Gobi,
na China; acima, ostenta as quatro medalhas depois de vencer o última desafio, na Antártida


GO OUTSIDE Qual foi a maior dificuldade que você enfrentou nesse longo processo de percorrer os quatro desertos em um ano?

VICENTE GARCÍA BENEITO A maior delas foi na reta final. Entre o Saara e a Antártida, só tivemos 15 dias de descanso, que não foram suficientes para eu me recuperar de todas as sobrecargas e inflamações. Isso me fez passar muito mal na Antártida, e arrastei comigo as dores e os incômodos até o final. Outra dificuldade foram os grandes atletas que tive que enfrentar, como o corredor libanês Ali Kedami, que tornou minha vida muito mais difícil em Gobi.


Que tipo de pessoas participam do 4 Deserts: atletas profissionais, amadores, expedicionários…. malucos?!

Tem todo o tipo de gente, mas a maioria conta com um extenso e experiente currículo de ultramaratonas internacionais.


De qual dos quatro desertos você mais gostou?

Não poderia escolher um só porque gosto muitíssimo dos quatro. Cada um tem seu encanto, e todos são totalmente diferentes entre si. No Atacama corremos em grandes altitudes, cruzamos salares e avistamos a cordilheira dos Andes nevada ao fundo. É incrível o contraste de se correr a 50ºC vendo a neve ao longe. Gobi é o mais montanhoso, com paisagens cheias de crateras e muito vento. O Saara é, por excelência, o cenário do deserto clássico, com dunas de areia, algo magnífico. E a Antártida é imprevisível e selvagem, com colônias de pingüins e focas. A quantidade de neve que tivemos neste ano por lá foi impressionante.


Qual a sensação de ter completado tamanho feito?

Neste momento, estou nas nuvens, um pouco cansado, mas feliz. Sinto uma satisfação pessoal incalculável, por muitas razões. Entre elas, por ter conseguido completar o desafio, por ter sido constante e guerreiro e por ter conhecido grandes amigos, como o brasileiro Jeison da Costa e o argentino Christian Colque, que me deram muita força para que eu completasse o circuito inteiro.


Como você se preparou? Que tipo de treinamento se faz para um desafio como esse e que cuidados você adota?

O ano passado exigiu muito de mim porque, para completar os 1.000 quilômetros do 4 Deserts, não dá para fazer grandes volumes de treino. Quando terminamos uma delas, já estamos pensando na seguinte. É muito diferente dos treinos habituais, quando se segue um calendário de competições. Eu treino quase sempre perto de casa, porque tenho a sorte de viver entre dois parques nacionais, o Fuente Roja e o Mariola, em Alicante, na Espanha. É uma região muito linda para os corredores de montanha. Em 2012, fiz uma preparação toda desenhada pelo meu patrocinador, a Wild Wolf [marca de bebidas esportivas]. A alimentação e o modelo de treinos foram desenvolvidos pelos profissionais da marca.


Como você se tornou um corredor de ultramaratonas?

Meus primeiros passos no esporte foram no futebol, quando eu ainda era criança. No futebol, aprendi a valorizar a disciplina, o companheirismo, o sacrifício e o esforço. Aos 18 anos deixei o campo e a bola um pouco de lado para me preparar para os testes de bombeiro, minha atual profissão, e foi então que tive meu primeiro contato com o atletismo. A partir daí, abandonei o futebol de vez e passei a competir em provas de corrida de montanha e meias-maratonas. No ano de 2006, um colega me propôs que nos inscrevêssemos em uma prova por etapas na Argélia [a extinta ultramaratona de Hoggar, de 160 quilômetros]. Ganhamos na categoria de equipes e ficamos individualmente com a segunda e a terceira colocações na classificação geral. Foi quando me apaixonei pelas longas distâncias.


Existe diferença, fisicamente falando, entre correr o 4 Deserts e completar, digamos, oito ultramaratonas em um ano?

As quatro provas do circuito têm uma semana de duração, divididas em seis etapas auto-suficientes, onde se leva na mochila todo o material obrigatório e a comida necessária. O resultado é que você sai para o primeiro dia com um peso que varia de 8 a 10 quilos. A diferença principal que eu vejo entre essas provas e uma ultramaratona sem paradas é que, na 4 Deserts, é essencial administrar muitíssimo bem a alimentação, a hidratação, o ritmo e os cuidados com os pés, para não pagar caro nos longos dias de prova. Em uma ultramaratona de uma única etapa, mesmo que se chegue totalmente estropiado, a meta já se cumpriu e, no dia seguinte, não é preciso correr de novo. Eu acho que as provas de uma semana são muito mais desgastantes, de um modo geral.


É difícil pensar em um novo projeto depois de vencer algo tão grandioso? O que você imagina fazer em 2013?

Acho que o mais importante agora é ser capaz de saborear o que eu conquistei, desfrutar a vitória com todas as pessoas que confiaram em mim e me apoiaram, me recuperar bem e deixar pouco a pouco que a cabeça comece a me colocar no eixo de novo. Neste mês de janeiro, minha equipe vai se reunir para planejar a temporada de 2013, que com certeza terá novos projetos. Neste momento só quero curtir as novidades com minha família sem pensar em nenhuma prova. Estou vivendo intensamente isso agora, pensando na minha mulher, Mariana, em meu filho, Vicente, e nas pessoas que posso inspirar a conhecer esses lugares incríveis do mundo por meio de desafios como o 4 Deserts.


* Para saber mais sobre o circuito 4 Deserts, acesse 4deserts.com

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2013)