Na garra

Medalha de prata no Mundial de Paraclimbing deste ano, o brasileiro Raphael Nishimura supera com garra e carisma não apenas paredões, mas dificuldades motoras sérias causadas por uma doença neurológica

Por Janine Cardoso*


LIÇÃO DE VIDA: Raphael na pedra do Baú, em São Bento do Sapucaí (SP)


VOCÊ ACHA DIFÍCIL ESCALAR UMA PAREDE? Ao se lançar em um desafio como esse, é preciso superar os limites físicos, controlar o lado psicológico e vencer a força da gravidade rumo ao topo. Agora imagine se, além de todos esses obstáculos, você ainda tivesse que lutar contra uma doença neurológica que faz seu cérebro enviar forças involuntárias para o corpo. Dureza? Não para o brasileiro Raphael Nishimura que, mesmo sendo portador de distonia muscular, foi em frente, tornou-se paraescalador e, recentemente, fincou seu nome entre os melhores do mundo. Com 31 anos e há cinco anos praticando escalada esportiva, o atleta carrega em si muita determinação e uma imensa dose de paixão pela modalidade. Aliando essa força interior a treinos intensos, conquistou a medalha de prata no 2º Campeonato Mundial de Paraescalada, realizado em setembro em Paris, na França.

A primeira edição do Mundial de Paraclimbing, termo pelo qual o esporte é mais conhecido, ocorreu em 2011 na cidade de Arco, na Itália, paralelamente ao Campeonato Mundial de Boulder, de Dificuldade e de Velocidade. Na ocasião, o Brasil não teve nenhum representante no paraclimbing, mas o crescente sucesso da modalidade incentivou atletas de diversos países a se organizar para participar do evento no ano seguinte. Para chegar ao mundial, o brasileiro organizou um sorteio de rifas durante o primeiro semestre de 2012, com produtos cedidos por seus patrocinadores, para angariar fundos para a quitação da taxa de filiação brasileira com a federação internacional. Todas as suas rifas foram vendidas e, após muito trabalho, a seleção brasileira de escalada seguiu rechonchuda para mais um mundial, com Raphael no paraclimbing, Thais Makino no boulder feminino, Pedro Nicoloso no boulder masculino e eu nas vias femininas.

Em Paris, Raphael chegou com humildade e impressionou não só os dirigentes da Federação Internacional de Escalada (IFSC, na sigla em inglês) como também os 16 mil espectadores que lotaram o ginásio Palais Omnisports de Paris-Bercy. Sua performance na grande parede indoor teve destaque especialmente pelo carisma inspirador e, no final, rendeu-lhe a segunda colocação na categoria de deficientes neurológicos.

O desempenho de Raphael chama a atenção, principalmente, ao levarmos em consideração as características posturais causadas por sua doença. A distonia muscular provoca espasmos musculares involuntários que produzem movimentos e posturas anormais. Em alguns casos, como no de Rapha, ela gera torções extremas pelo corpo todo, comprometendo totalmente o estado de relaxamento físico. Contudo, durante a prática esportiva – especialmente ao escalar uma via –, o atleta consegue controlar melhor as contrações involuntárias. Ou seja, ao praticar esportes o estímulo voluntário para realizar a ação é mais forte do que o estímulo involuntário.

Pelas características de sua doença, Rapha recebeu o maior coeficiente de dificuldade entre os 62 atletas participantes. No campeonato de paraclimbing, que é dividido nas categorias artrite e deficiência neurológica, amputados e deficiência visual, todo atleta passa por um exame médico bem detalhado que lhe atribui um coeficiente individual, determinado pela dificuldade de cada um. Isso existe para igualar as diversas deficiências físicas dentro do grupo. Os escaladores com mais dificuldades físicas levam o maior coeficiente. No caso do Rapha, seu coeficiente foi 3.64, enquanto os outros variaram entre 0.70 e 2.22. Para calcular a pontuação final, os juízes multiplicam esse dado pessoal pela agarra atingida em cada via. Ou seja, mesmo que um escalador chegue ao final da via, não significa que ele ganhou. A dificuldade para realizar o percurso é levada em consideração.


ARRASTOU: Nesta foto, Rapha escala no mundial de paraclimbing
deste ano, encantando a platéia (abaixo)


A HISTÓRIA DE RAPHA COM O UNIVERSO ESPORTIVO começou bem cedo, antes de a distonia muscular se manifestar, aos 8 anos de idade. Mesmo depois de descobrir a doença, ele continuou experimentando de tudo – futebol, natação, bicicleta, basebol, escalada e até sinuca. De todas as modalidades que já praticou, o atleta não hesita em dizer que o futebol era o que mais o lesionava e que a escalada é a que mais lhe proporciona prazer e sentimento de superação. Superempolgado, Rapha acredita que todos os esportes, quando praticados de forma orientada e saudável, sempre trazem benefícios para sua saúde física e mental.

O princípio da doença foi um desafio para Rapha, que, por ser muito novo, não entendia o que estava acontecendo com seu organismo. “Como a piora foi acontecendo aos poucos, demorei até perceber que estava ficando mal fisicamente. Para lidar com tudo isso, minha família e meus amigos sempre estiveram muito presentes”, conta. Aos 15 anos, viveu um episódio doloroso ao realizar um tratamento experimental com uma substância aplicada do pescoço até a lombar. O efeito foi totalmente reverso e o levou a ficar cinco meses sem andar. Nesse período, seu pai o carregava até a sala de aula. “Até hoje, eu me lembro dos amigos que ficavam comigo durante os intervalos na sala de aula para me fazer companhia”, diz.

Além da superação vivida por meio da escalada, a maneira tranquila e consciente com que Raphael lida com os acontecimentos de sua vida por si só já impressiona. Por muitos anos, lutou contra uma doença desconhecida e confessa que não foi nada fácil. O diagnóstico 100% preciso aconteceu há pouco menos de dez anos, já que nenhum exame detecta a distonia. Apesar de não ser uma pessoa religiosa, em paralelo aos esportes e ao apoio familiar o espiritismo sempre lhe trouxe respostas e conforto.

Neste ano, o atleta descobriu que existe um tratamento que pode lhe dar uma qualidade de vida melhor. Antes de ir para o campeonato mundial, seu médico cogitou realizar uma cirurgia, mas, focado na participação em Paris, o atleta escolheu esperar até a volta. De longe, não imaginava que, após tantas e tantas superações, levaria a medalha de prata para casa.

A seu lado, Rapha destaca outros guerreiros do paraclimbing, como a inglesa Frances Brown, que venceu neste ano na categoria feminina de deficientes visuais, e o francês Philippe Ribiere, sétimo lugar na categoria deficientes neurológicos e artrite, a mesma do brasileiro.



INCANSÁVEL: Rapha escalando a pedra Maria Antonia, em Pedra Bela (SP)

A PREPARAÇÃO DE RAPHA PARA O CAMPEONATO foi modificada assim que sua participação no mundial se confirmou. Antes disso, escalava de duas a três vezes por semana sem tanta intensidade. Cerca de três meses antes do mundial, passou a treinar de três a quatro vezes por semana em ritmo mais forte, administrando os treinos com a rotina de trabalho integral como analista de TI na IBM. Graças também à cultura japonesa de sua família, possui uma alimentação saudável. Para competir, cortou apenas cerveja e refrigerante durante a semana, e nesse processo perdeu três quilos. Com 1,77 de altura, 63 quilos e alta demanda de energia nos treinos, ele incluiu massas e muita hidratação em seu cardápio na pré-competição.

Uma de suas grandes paixões é a escalada outdoor – outro grande desafio por causa das trilhas longas para se chegar até um paredão rochoso. No ginásio, a aproximação é mais fácil, mas ao ar livre a coisa muda, dependendo da localização da falésia de escalada. É preciso paciência para superar muitos passos. A comunidade desse esporte conhece seu esquema de escalada em rocha, por isso alguns o acompanham durante a trilha, enquanto outros vão equipando as vias e cuidando de sua segurança. Nas viagens para a rocha, as amizades variam bastante, mas seu fiel escudeiro durante os campeonatos tem sido Maurício Bellini, que se manteve a seu lado todo o tempo durante a viagem europeia, registrando cada momento.

Para 2013, Rapha quer continuar escalando após a cirurgia, que deve se realizar em breve. Seu foco está em viajar mais para escalar em rocha e tentar praticar mais boulder para ficar ainda mais forte.

Caso a Federação Internacional confirme a categoria paraclimbing na renomada competição Arco Rock Máster no próximo ano, ele se esforçará ainda mais para estar lá entre os atletas. Muito grato por toda a ajuda e apoio que sempre recebeu, começou a refletir sobre uma maneira de retribuir. No início de 2002, passou a atuar também como voluntário e hoje colabora com a ONG Vidas (vidas.org.br), que trabalha com crianças deficientes.

Entre seus apoiadores estão a Curtlo, a Adrena Esporte & Aventura e o Ginásio 90 Graus. Para ir ao mundial, contou ainda com o patrocínio do Clube Alpino Paulista, além da colaboração de amigos que compraram rifas e camisetas em pró de sua participação. Mérito do Rapha e uma lição de vida para qualquer pessoa.


* Janine Cardoso é heptacampeã brasileira de escalada esportiva, jornalista e educadora física.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2012)