Por Pedro Hauck*, do Alta Montanha
Como já falei diversas vezes aqui e no AltaMontanha.com, a dificuldade do montanhismo vai muito além da performance técnica e da preparação física. Diferentemente de outros esportes, no montanhismo o fator psicológico muitas vezes pesa mais do que aqueles dois primeiros juntos. Na escalada, o medo é um dos principais fatores limitantes; no montanhismo de altitude ou exploratório, a incerteza com relação ao meio, o isolamento e o tempo gasto em uma expedição passa a pesar negativamente para que a pessoa fique abalada com a solidão. Isso gera saudade das cenas mais triviais de sua vida e levando muitas vezes ao fim de sua epopéia montanhística. Deste mal eu já sofri, e muito. Noto que, das dezenas de pessoas iniciantes para quem dou dicas para suas primeiras experiências andinas, a maior parte delas desiste de atingir o cume por esses motivos. A situação geralmente é assim: com o mal tempo, fica-se isolado na barraca num acampamento avançado sem acesso a qualquer coisa que lhe possa distrair. Entre ler o rótulo das embalagens de comida liofilizada e olhar a cara barbuda e suja de seu parceiro, começa aquela saudade de casa, de um cafezinho no final da tarde com a mulher e uma escaladinha para lá de trivial no Anhangava ou aquela caminhadinha básica no Pico Paraná. Ah, se eu estivesse em casa! Pois bem, é justamente isso o que acontece quando o tempo melhora: em vez de atacar o cume, geralmente as pessoas se rendem aos sentimentos e descem de volta para casa. Como diversas vezes já falei neste espaço virtual, montanhismo não é só esporte, é também cultura, bastante pautada em dois valores: a aventura e a liberdade. Acontece que ao misturar as dificuldades e os valores do montanhismo, geralmente temos uma seleção de pessoas muito particular. Isso não é uma regra, mas é muito normal ver que montanhistas mais experientes, aqueles que adotam a cultura e os valores do montanhismo como base de suas vidas, são pessoas muito solitárias. Parece antagônico e é: quando uma pessoa preza demasiadamente sua liberdade, se tornando grande montanhista, acaba, por outro lado, ficando muito sozinha. Utilizando o mesmo exemplo que dei anteriormente, essas pessoas são aquelas que, quando se encontram numa situação de incerteza em relação ao meio e isolamento, aproveitam o tempo bomdepois de uma tempestade para fazer o cume da montanha. Muitas vezes, aproveitam uma janela inteira e fazem vários cumes. Não que eles não sintam os mesmos sentimentos que os de novatos que desistem. Como seres humanos, sentem saudades e solidão, mas lutam contra esses sentimentos para ficar mais solitários ainda. Afinal, só o cume interessa. Esse é um circulo vicioso que, com o passar do tempo, só piora. São muitos os exemplos de montanhistas experientes e velhos que viraram ermitões, vivendo isoladamente do mundo em seu universo particular, um mundo solitário cheio de liberdade. Os que ainda não chegaram a essa idade avançada (e eu conheço vários) ainda transitam na cidade entre uma montanha e outra. Os mais desinibidos tentam se enganar pegando todas as menininhas, como compensação àqueles momentos de angústia vividos por sua ânsia indominável de ir cada vez mais longe — algo que só um montanhista consegue entender e que é impossível descrever aqui. Esses são os "pegadores solitários", uma espécie de montanhista muito comum. Montanhistas podem ter namorada, é claro. Mas no Brasil, onde a cultura do montanhismo é pouco conhecida e o machismo se difunde, inclusive entre as mulheres, as coisas são meio complicadas. Essa dialética, evoluída ao longo do tempo histórico, se manifesta materialmente quando vemos que há pouquíssimas mulheres na montanha. Se analisarmos aquelas que se dedicam e se comprometem de verdade, e não apenas para impressionar o namorado, vemos que a desproporção é ainda muito maior. O velho Edgar Kittelmann disse uma vez: mulher de montanhismo ou acompanha ou aprende a esperar. Outro velho montanhista, Antonio Paulo Faria, o criador da coluna “Sex and climbing”, ainda brincou com a situação falando que as mulheres solteiras tinham que ir atrás de homem na montanha e não na balada. Ele ainda sugere que as federações de montanhismo façam GTs pra unir casais. Dando uma de estatístico, ele comentou o censo de escalada, realizado em 2009, fazendo as seguintes afirmações sobre nosso universo de montanha: […] Acredito que 20% dos montanhistas (podem ser muito mais) têm relacionamento sexual apenas dentro deste universo. O número de sócios é grande e a taxa de repassagem ou circulação dentro do grupo é alta!! Mas tudo bem, é melhor ter sócios(as) ou ex-proprietários(as) conhecidos… […] 30% deste universo não têm a menor ideia de por que escala. A maioria do grupo apenas escala para acompanhar o namorado(a) ou porque está planejando comer a(o) cobiçada(o)[…] 20% andam com a corda fora da mochila ou no pescoço, mesmo que esta esteja vazia, somente para mostrar que é escalador. Desses, 8% não escalam porra nenhuma, ficam apenas de blá-blá-blá na base das vias, ou no estacionamento.[…]
Enfim, é por isso que um censo pode ser importante, pois pode refinar a população de malucos que praticam essa atividade esportiva. Por falar nisso, a escalada agrega uma porcentagem altíssima de gente muito maluca, algumas muito, mas muito estranhas. Muito montanhista irá ler este artigo e dizer que estou errado. Mas, antes de dizer isso, reflita. Quantos meses você está na montanha e quantos você está na cidade? Já vivi meus tempos de ermitão. Tive barba longa e não tomava banho. Hoje divido meu tempo entre viver na montanha e sobreviver aqui em baixo, sempre procurando um equilíbrio entre ter liberdade e não morrer de solidão.
* Pedro Hauck é escalador, montanhista, geógrafo, professor e atual editor do site Alta Montanha, onde publica suas experiências desde 2007. O Alta Montanha é um espaço virtual inteiramente dedicado ao montanhismo. Para visitá-lo, clique aqui.