Caminho das pedras

Grandes corredores de montanha brasileiros ensinam seus segredos e técnicas para encarar os mais duros percursos off-road


Por Maria Clara Vergueiro

DUPLA DE OURO: Virginio e colega no Cruce

QUANDO COMEÇOU A EXPERIMENTAR trilhas e montanhas, depois de anos correndo no asfalto, o paulista José Virginio de Morais, hoje conhecido como “cabrito de Barueri”, não se conformava com os tempos de seus treinos. “O problema era que eu queria impor um ritmo constante, como se estivesse na rua ou em uma pista de atletismo. Só percebi que isso seria impossível ao participar de uma maratona de corrida em trilha, a K42 Adventure Marathon, em Santa Catarina, em 2008”, conta. Ele terminou a competição com um tempo de 3h36m, bem acima do que estava acostumado em provas desse tipo em terrenos pavimentados. “Foi aí que me dei conta de que eu precisava ser também técnico, e não somente rápido. Passei a estudar altimetria, clima, adversários, geografia. Entendi que para vencer não se trata de manter um ritmo uniforme e, sim, de ter a estratégia certa”, completa o atleta e treinador que, neste ano, foi o segundo colocado, ao lado de Iazaldir Feitosa, no Cruce de Los Andes, ultradesafio de três dias que atravessa os Andes do Chile à Argentina e soma mais de 100 quilômetros.

Mesmo quando já se tem certa experiência, é comum os atletas de corrida de montanha se surpreenderem com novos tipos de terrenos e demandas técnicas diferentes a cada prova. Atualmente um dos principais nomes brasileiros da corrida de montanha, Fernanda Maciel recentemente viu suas habilidades serem desafiadas na Ultra-trail Mount Fuji deste ano, prova de 82 quilômetros e 4.600 metros de desnível acumulado que acontece no Japão. A distância e as subidas nipônicas estão longe de assustar essa mineira radicada na Espanha, vencedora da TDS (prova de 105 quilômetros que é disputada junto à Ultra-Trail Du Mont Blanc, na França) de 2009 e da Lavaredo Ultra Trail de 2011, duas duríssimas competições europeias de corrida de montanha. “Apesar de ser curta para os padrões a que estou acostumada, a prova do monte Fuji tinha um terreno bem técnico, íngreme, cheio de pedras soltas e molhadas, além de muita lama”, conta Fernanda. Nos trechos de subida, a atleta teve que se agarrar em árvores e usar a força dos braços, o que provocou câimbras. “Na parte mais difícil, seguimos por uma escadinha estreita com um abismo de cada lado. Demorei cerca de quatro horas só para subir esse trecho, algo surreal para mim, que subo uma montanha inteira nesse mesmo período de tempo”, diz ela, que apesar dos perrengues terminou a prova como campeã.

Enquanto isso, outro mineiro, Leonardo Leite, vencia a Brasil Running Adventure Race, prova de 160 quilômetros disputada entre trilhas, estradas e dunas de areia fofa no Maranhão. Leonardo acorda às 4h30 da manhã para concluir seus 30 quilômetros diários de treinos. Só assim para dar conta dos 200 quilômetros que ele se dispõe a completar semanalmente e das quase dez horas diárias de trabalho em uma empresa de consultoria. No sobe-e-desce das ruas de Belo Horizonte, Leonardo encara os percursos de terça a sexta-feira. Nos finais de semana, foge para trilhas da região ou para o Parque Nacional do Caparaó, onde fica o pico da Bandeira, e aumenta as distâncias – ele chega a fazer 80 quilômetros para completar sua insana planilha. “Quando passei a treinar corrida em trilhas, procurei fazer um bom fortalecimento muscular com exercícios funcionais voltados para esse esporte. E fui aumentando o nível de dificuldade técnica aos poucos”, conta o desenfreado corredor. Para se preparar para a ultra nas dunas, Leonardo corria com 10 quilos a mais, simulando assim o peso da mochila que teria que carregar. A conterrânea Fernanda Maciel também é adepta desse método quando tem uma competição de muita altitude pela frente: faz as subidas com carga extra de 10% do peso do seu corpo.

Independentemente do terreno e da inclinação, os trabalhos de força muscular e equilíbrio são a chave do sucesso, dizem em coro esses atletas. Se nas subidas os quadríceps e as panturrilhas precisam estar vitaminados, nas descidas o bicho pega se a estrutura central do corpo (o chamado core) e a propriocepção (que pode ser traduzida como a capacidade de os músculos e tendões perceberem sua posição no espaço e se adaptarem às irregularidades do terreno) não estiverem em dia. Leonardo aprendeu isso na prática, ao torcer o pé na metade de sua primeira corrida de montanha, a Ultramaratón de Los Andes, com 80 quilômetros de percurso. “Como estava na adrenalina da competição, não senti tanto e segui em frente mesmo com dores. Consegui terminar em 11° lugar na geral, um excelente resultado para uma estreia. Mas rompi dois ligamentos e passei meses contundido. Depois fiz um trabalho duro de fortalecimento e nunca mais tive problemas”, comemora.

A dobradinha musculação + exercícios de propriocepção é a melhor escolha de um corredor de trilhas, segundo Fernanda Maciel, uma apaixonada por decidas em alta velocidade. “O trabalho de propriocepção tem que ser atualizado o tempo todo para que a técnica também vá sendo desenvolvida”, ensina. Em dezembro e janeiro, quando a temporada de provas tem uma pausa, Fernanda se recupera de meses exaustivos de treino com musculação, exercícios funcionais e natação. No resto do ano, ela aproveita a geografia privilegiada dos Pirineus e das montanhas da região onde vive, em Coll de Nargó, na Espanha, para fortalecer o sistema cardiorrespiratório e a técnica.


QUEM NÃO TEM MONTANHAS DESSA CATEGORIA no quintal de casa não precisa se desesperar. É possível conquistar ótimos resultados em qualquer prova treinando com o que se tem à disposição. “Se eu morasse em São Paulo”, imagina Fernanda, “tentaria buscar subidas íngremes, na rua mesmo, durante a semana, e no fim de semana eu me mandaria para Atibaia, Campos do Jordão, Ilhabela ou algum outro lugar no mato. Depois, chegaria uma semana antes ao local da prova para me acostumar com a altitude específica.”

Aqui no Brasil, a ausência de montanhas do porte da cordilheira dos Andes costuma levar os praticantes a buscar treinos de alta intensidade e grande dificuldade técnica. “Com treinamento duro, determinação e perseverança, acredito que qualquer um pode chegar a essas competições com grandes possibilidades de vencer, mesmo com a presença dos melhores atletas da modalidade”, diz Leonardo, que com a vitória nas dunas maranhenses garantiu pontuação para participar da Ultra-Trail du Mont Blanc de 2013.

Como provas de montanha costumam ser mais longas e isoladas que as de rua, saber administrar a alimentação e a hidratação é outro quesito fundamental para garantir bons resultados e treinos sem estresse. Em 2011, Fernanda Maciel tinha tudo para bater seu recorde pessoal no Mont Blanc. Precisou adiar mais um ano o projeto depois de ingerir, durante a prova, um gel com lactose, à qual tem intolerância, que fez desandar seu intestino quando ela estava entre as primeiras colocadas da prova. “É fundamental saber o que cai bem durante uma competição e complementar a hidratação com cápsulas de sal e usar BCAA para evitar fadiga”, aconselha a atleta, que trocou as bolsas de hidratação por duas caramanholas diferentes, presas à mochila, para poder alternar água pura e água com eletrólitos.

Trabalhar na base do “menos é mais” também pode funcionar como estratégia para alguns. José Virginio, por exemplo, gosta de testar seu rendimento com a menor quantidade de água possível, caprichando na suplementação depois. “Chego a fazer treinos longos de 30 quilômetros sem me hidratar para treinar minha resistência. No pós-treino, bebo mais de meio litro de caldo de cana batido com abacaxi ou caju. Também uso Endurox R4, que tem importantes funções de hidratação e suplementação muscular”, conta o cabrito.


Armas secretas

Confira a receita de sucesso de três campeões do trail running

Fernanda Maciel, primeiro lugar na Ultra-Trail Mount Fuji 2012


>> Não corre nem uma hora sem suas meias de compressão para aliviar a fadiga muscular e evitar microlesões. Passa dois meses do ano se dedicando exclusivamente ao trabalho de força muscular e propriocepção. Trocou bolsas de hidratação por mochilas que comportam duas caramanholas para facilitar a reposição de água e eletrólitos durante provas e treinos longos.

Leonardo Leite, primeiro lugar na Brasil Running Adventure Race 2012


>> Seu equipamento preferido é o GPS, que além de situá-lo nas trilhas ajuda a mapear o treino e melhorar os pontos fracos. Não sai para corridas longas sem apito, cobertor térmico e kit básico de primeiros socorros. A cada 15 minutos, hidrata-se mesclando água e bebidas eletrolíticas e come de meia em meia hora, alternando gel e biscoitos salgados.

José Virginio de Morais, vice-campeão do Cruce de Los Andes 2012


>> Ele sempre calcula o ritmo dos treinos estabelecendo um tempo de quatro minutos por quilômetro. Trabalha no limite para treinar a resistência, dispensando a hidratação em treinos de até 30 quilômetros. Acredita que correr em trilhar e montanhas é a melhor maneira de aprimorar a técnica. Quando quer trabalhar subidas longas e descidas divertidas se manda para Santana do Parnaíba, em São Paulo.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2012)