As histórias e os livros de quem sobreviveu aos maiores perrengues

Por Maria Clara Vergueiro e Maria Fernanda Ribeiro*

Eles passaram os maiores perrengues no mar, na montanha e até em um buraco, mas saíram vivos da lama da má sorte direto para o panteão das maiores histórias de sobrevivência de todos os tempos.

A VER NAVIOS

A trama > Em agosto de 1914, o corajoso jovem Ernest Henry Shackleton assumiu a liderança do que, ele imaginava, seria a maior expedição polar de todos os tempos. Aos 27 anos, o anglo-irlandês embarcou no Endurance, um navio de madeira especialmente projetado para navegar em águas congeladas, com o objetivo de realizar a primeira travessia a pé pelo então desconhecido continente antártico, cruzando o polo Sul. O grupo de exploradores nem sequer chegou perto de concluir a façanha: um mês depois da partida, já na região da Antártida, a embarcação ficou presa no gelo, lançando a tripulação em uma das maiores aventuras da história.
Calvário > Passado o inverno, o gelo começa a derreter e abrir fendas entre os blocos, o que acaba por destruir completamente o navio. Os 28 homens que estão a bordo do Endurance têm de abandonar a embarcação e enfrentar o frio inimaginável daquela região durante 500 dias.
Perdas e danos > O navio destruído acabou virando fogueira, e os homens ficaram sem nenhum tipo de abrigo ou outro meio de locomoção capaz de tirá-los de lá.
Lição de sobrevivência > Shackleton se consagrou como um grande líder, mantendo a tripulação ocupada o tempo todo e conservando em boa saúde o moral de seus homens. Transformou-se assim no herói da história: conseguiu salvar todos os seus marinheiros ao se lançar rumo ao desconhecido em um barquinho menor para buscar ajuda.
Perrengômetro > 8 (apesar da friaca e do isolamento, os homens da tripulação puderam contar uns com os outros e até matavam o tempo jogando futebol).

Livro: Endurance, a Lendária Expedição de Shackleton à Antártida, de Caroline Alexander (Companhia das Letras).
Filme: The Endurance: Shackleton’s Legendary Antarctic Expedition, de George Butler.

NO VÁCUO PROFUNDO

A trama> Em 1985, os britânicos e companheiros de aventuras Joe Simpson e Simon Yates escalaram uma face intocada da montanha Siula Grande, de 6.344 de altitude, localizada nos Andes peruanos. Na descida do cume, encordados um ao outro, Joe despenca de uma parede gelada e quebra a perna. Simon tenta rapelar o amigo montanha abaixo, até que em certo momento Joe fica totalmente descolado da parede, pendurado no vazio sobre uma enorme greta. Exausto, hipotérmico e sem contato visual ou sonoro com o parceiro, Simon encontra-se em uma das situações mais duras da história do montanhismo: cortar ou não a corda que o liga a Joe? Não cortar poderia significar a morte de ambos, já que as forças de Simon esgotavam-se na tentativa de segurar o companheiro, e assim ele decide salvar-se. Quando a corda é cortada, Joe cai na greta, mas consegue, contra todas as probabilidades, sair da enrascada.
Calvário > Com a perna seriamente comprometida e sem água ou comida, Joe arrasta-se até uma saída e depois rasteja por dias até o acampamento, onde encontra Simon mortificado de culpa.
Perdas e danos > Após se salvar, Joe passou dois anos sofrendo com cenas de terror na memória e tentando recuperar a perna para voltar ao alpinismo. Já Simon precisou lidar com a crítica da comunidade de montanhistas do mundo todo por ter cortado a corda e abandonado o amigo.
Lição de sobrevivência > Saber tomar decisões em situações extremas e seguir metas a qualquer custo. Para sair literalmente do buraco e chegar até o acampamento, Joe estabelecia pequenas metas para si, lidando com desafios menores até chegar ao objetivo final.
Perrengômetro > 9,5 (perrengue duplo: ser responsável pela morte de um amigo não deve ser muito melhor que se estrepar no gelo sozinho).

Livro: Tocando o Vazio, de Joe Simpson (Companhia das Letras).
Documentário: Touching the Void – Uma História de Sobrevivência.

ROLAM AS PEDRAS

A trama > A história já é bem conhecida, principalmente depois que o diretor britânico Danny Boyle decidiu filmá-la. Mas não deixa de ser sempre surpreendente ler, ou ver no cinema, Aron Ralston amputar o próprio braço para salvar sua vida. O cara saiu sem avisar ninguém para um rolê no Parque Nacional de Canyonlands, em Utah (EUA), em um sábado à tarde. Escorrega sem querer no hoje famoso cânion Blue John, e uma rocha de quase meia tonelada cai em cima da sua mão direita. O resto da saga correu o mundo e chegou a Hollywood, ganhando interpretação do ator James Franco. Sangue, suor e lágrimas com uma infalível pegada outdoor.
Calvário > Cortar o braço foi dureza, mas o coitado ainda teve de dar um jeito de sair, sozinho e todo ensaguentando, do tal cânion e, depois, andar quilômetros até achar alguém que o socorresse. Nem o pior dos inimigos merece essa sina.
Perdas e danos > Aron ficou maneta e quase morreu de fome e sede – teve até de beber a própria urina.
Lição de sobrevivência > Conhecer macetes básicos do mundo outdoor – como fazer um torniquete para cortar o braço – e ter sangue frio para aguentar o tranco foram as grandes sacadas de Aron para não morrer.
Perrengômetro > 10 (Deus te livre dessa!)

Livro: 127 horas, de Aron Ralston (editora Soeman).
Filme: 127 Horas, de Danny Boyle.

BOLA DE NEVE

A trama > Em 1953, Charles Houston e Robert Bates retomam uma expedição ao K2, a segunda montanha mais alta do mundo, com 8.611 metros. Perto do cume, a aventura fracassa: um dos membros do grupo, o geólogo Art Gilkey, fica gravemente doente, enquanto o mau tempo torna extremamente difícil a volta ao acampamento.
Calvário > Enquanto Art era diagnosticado com trombose venosa profunda, uma forte tempestade destruía uma das barracas. Correndo contra o tempo para tentar salvar o colega da morte, Robert e outros cinco alpinistas sofrem uma queda quase fatal quando lutam para descer o amigo doente em um saco de dormir. Art desliza ladeira abaixo e desaparece. Para chegar até o acampamento, os alpinistas têm que andar por cinco dias com os pés congelados.
Perdas e danos > Um amigo morto e culpa eterna.
Lição de sobrevivência > Perseverança. Embora o grupo tivesse consciência de que Art dificilmente sobreviveria àquilo tudo e de que a descida seria bem mais difícil com ele, o grupo tentou seguir unido até o fim.
Perrengômetro: 8 (difícil mesmo deve ter sido o perrengue de Art).

Livro: K2, The Savage Mountain (sem versão para o português), de Robert Bates e Charles Houston.

E O BARQUINHO VAI

A trama > O norte-americano Steven Callahan sempre foi apaixonado por barcos e arquitetura naval. Em uma de suas expedições marítimas realizadas nos anos 1980, ele zarpa das ilhas Canárias em um pequeno barco caseiro. A embarcação afunda seis dias depois, e Steven fica à deriva em um bote salva-vidas de um metro e meio de extensão durante 76 dias.
Calvário > Como se não bastasse o naufrágio em si, provocado por uma tempestade de dar dó, Steven tem que lutar com tubarões, nu, munido apenas de um kit de emergência, um saco de dormir e um arpão. Sobrevive durante tantos dias no mar graças aos peixes e às aves que conseguiu caçar.
Lições de sobrevivência > Um homem prevenido vale por dois. Ter um kit de emergência, mesmo quando você acredita que não vai precisar de um, pode te salvar de uma situação quase sem solução como esta. Manter a mente sã também é fundamental para suportar a espera do resgate.
Perrengômetro > 7 (molhado, sozinho, pelado e cercado de tubarões – pior que isso só se ele tivesse levado um amigo mala-sem-alça e esquecido de checar a validade dos remédios do kit de emergência).

Livro: À Deriva, 76 Dias Perdido no Mar, de Steve Callahan (editora Marítimas).

MAUS BOCADOS

A trama > Em outubro de 1972, 45 jovens passageiros integrantes de um time colegial de rúgbi embarcam em um voo fretado de Montevidéu, no Uruguai, rumo a Santiago, no Chile. Durante a travessia sobre os Andes, uma tempestade e erros de navegação fazem a aeronave chocar-se contra o pico de uma montanha. O avião perde as asas e a cauda e desliza por uma encosta coberta de neve até um vale isolado na cordilheira.
Calvário > Trinta passageiros sobrevivem e resistem, sem qualquer preparo, comida ou medicamentos, a temperaturas de 30 graus negativos. Nas malas, tinham basicamente roupas de verão. Com as ações de resgate encerradas dez dias após o acidente, eles recorrem ao canibalismo e usam os corpos dos 15 amigos mortos como fonte de alimento. Ferimentos causados na queda e uma avalanche reduzem o grupo a 16 integrantes. Sessenta dias mais tarde, dois dos sobreviventes saem em busca de resgate em uma jornada heroica de dez dias pelas montanhas.
Lições de sobrevivência > Lutar pela sobrevivência às vezes te obriga a esquecer de tabus sociais e recorrer a práticas nada convencionais como o canibalismo.
Perrengômetro > 10 (desastre aéreo, frio extremo, avalanche, canibalismo, isolamento, tudo junto e misturado – não dá para ser pior).

Livro: Milagre nos Andes, de Nando Parrado (editora Objetiva).
Filme: Vivos, do diretor Frank Marshall (com John Malkovich e Ethan Hawke no elenco).

ROUBADA DE GENTE GRANDE

A trama > Norman Ollestad cresceu no sul da Califórnia sob os ensinamentos do pai aventureiro amante de esportes de ação. Aos 11 anos, ele, o pai e a madrasta sofrem um acidente de avião nas montanhas de San Gabriel, no sul do estado. Norman sobrevive ao choque que espatifou a aeronave, mas o pai e a madrasta morrem. Sozinho, o garoto precisa colocar em prática tudo o que aprendeu sobre vida ao ar livre para conseguir escapar.
Calvário > O avião Cessna fretado bateu no pico Ontário, a 2.650 metros de altura. No choque, desmantelou-se, lançou montes de destroços e arremessou os corpos em uma rampa gelada. Norman tentou salvar Sandra, a mulher do pai, mas pouco tempo depois ela despencou pela encosta, e Norman ficou sozinho. Foram necessárias nove horas para que o garoto chegasse ao pé da montanha para ser resgatado.
Perdas e danos > O pai de Norman morreu na hora, enquanto a madrasta perdeu a vida momentos depois.
Lição de sobrevivência > Ter experiência outdoor mostrou-se essencial para o pequeno Norman.
Perrengômetro > 9 (com louvor: manter-se vivo diante de uma tragédia dessas aos 11 anos não é para qualquer um).

Livro > Loucos Pela Tempestade: A Memória de Um Sobrevivente, de Norman Ollestad (Editora Record)

LEI DA SELVA

A trama > Atraídos pela promessa de encontrar aldeias e tribos isoladas, três mochileiros e um guia se reúnem na Bolívia e partem rumo à floresta tropical em uma expedição dos sonhos. No decorrer da viagem, os amigos começam a se desentender, e a jornada desanda.
Calvário > Depois de vários quebra-paus, o grupo se divide. Yossi Ghinsberg e Kevin Gale tentam encontrar um caminho próprio, sem o guia, mas um acidente de rafting separa os dois. Enquanto Kevin consegue chegar até a beira do rio e voltar para pedir socorro, Yossi despenca corredeira abaixo, ficando sozinho e perdido. Durante os 20 dias que se seguem, ele tem que lidar com a fome, as chuvas torrenciais, lesões e animais selvagens, como uma onça-pintada que apareceu em uma das noites. Isso sem contar as sanguessugas.
Perdas e danos > Além da jangada e dos equipamentos, o grupo perdeu para sempre a amizade de uns com os outros.
Lição de sobrevivência > Apesar da falta de experiência, Yossi manteve a calma e não se desesperou. Aprendeu também que não se deve brigar em plena mata fechada.
Perrengômetro: 6 (nada que um bom atleta de aventura não consiga superar).

Livro: Lost in the Jungle (sem tradução para o português), de Yossi Ghinsberg.

LUTA INGLÓRIA

A trama > Em 1991, estoura na África ocidental um dos mais sangrentos conflitos contemporâneos: a guerra civil de Serra Leoa, que matou 50 mil pessoas em 11 anos. Com apenas 12 anos de idade, Ishmael Beah vê a família ser morta e sua vila, destroçada. O menino é então levado para a mata por milícias, que o obrigam a se drogar para matar seus inimigos, em uma espécie de transe macabro. Em alguns anos como criança-soldado, Ishmael perdeu as conta de quantas pessoas assassinou, até que escapa e vai parar em um internato para jovens como ele. Um dia é convidado a contar sua história na ONU, em Nova York, e acaba sendo adotado por uma norte-americana. Seu livro de memória se torna um enorme sucesso de vendas e uma prova de que é possível superar qualquer adversidade.
Calvário > Ishmael teve a família inteira assassinada pelos rebeldes da Frente Revolucionária Unida. Ao se tornar uma criança-soldado, aprendeu a atirar com fuzil e a matar sem dó. Tinha pesadelos com a guerra e, mesmo depois de resgatado do inferno, sofria com alucinações (chegou a ver sangue saindo das torneiras de sua casa em Nova York).
Perdas e danos > Pais e irmãos assassinados, e a infância e adolescência massacradas pela guerra.
Lição de sobrevivência > Fugir quando preciso e saber reconhecer lampejos de sorte e agarrar todas as chances de uma vida melhor.
Perrengômetro >10 (aprender a matar aos 11 anos é de uma crueldade ímpar).

Livro: Muito Longe de Casa, Memórias de um Menino Soldado, de Ishmael Beah (Ediouro).

(*Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2012 e atualizada em abril de 2019)