Isca de tubarão

Com o aumento do índice de ataques de tubarão em 25%, o ano de 2010 foi considerado péssimo para se estar na água. Cientistas afirmam que o pico foi uma anomalia. Mas há questões que vieram à tona sobre a prática do mergulho em gaiolas, em que marinheiros usam uma mistura de sangue e vísceras para atrair predadores. JOSHUA HAMMER mergulha na False Bay da África do Sul, epicentro de um mercado que alguns críticos querem acabar

Por Joshua Hammer*


(Foto: Michael Muller)

A COSTA SUAVEMENTE CURVA da False Bay, logo ao sul da Cidade do Cabo, é um dos destinos turísticos mais populares da África do Sul: uma linha de 40 quilômetros de praias de areia, emoldurada pelo límpido oceano Índico e encostas verdejantes que se estendem em direção ao sul até o Cabo da Boa Esperança. Longas ondas de água temperada atraem uma infinidade de surfistas, mergulhadores e banhistas, especialmente nos finais de semana. A False Bay também atrai algumas centenas de grandes tubarões brancos que, durante o inverno no hemisfério Sul, reúnem-se ao redor da ilha Seal, a pouco menos de 6 quilômetros da costa, para se alimentarem de filhotes de foca. No verão, quando a temperatura da água chega aos 21oC e a baía se enche de peixes migratórios como o olho-de-boi, bacalhau e espécies menores de tubarão, os predadores movem-se em direção às praias para comer.

Durante anos, nadadores e tubarões conviveram com poucos incidentes. Mas na última década, uma série de ataques nas proximidades da baía atrapalharam esse sossego. Em 2004, líderes comunitários responderam com a criação do Shark Spotters Program [Programa dos Avistadores de Tubarões], sistema de alarme que coloca voluntários para ficar de olho no mar e detectar a aproximação dos tubarões, para avisar os nadadores a tempo de escaparem. Apesar dos seus esforços, 2010 foi um ano mortal.

Numa tarde clara de outubro, encontrei-me com a avistadora Agnes Murema – uma negra robusta de trinta e poucos anos, com uma camiseta azul-clara, jaqueta corta-vento e jeans – em sua varanda, na encosta exuberante, várias dezenas de metros acima da praia Muizenberg, ponto popular para surfistas no canto noroeste da False Bay. “Quando comecei, há quatro anos, avistava um tubarão a cada cinco meses”, revelou ela, enquanto observava o mar através de seus óculos polarizados, em sua cabine de teto de zinco. “Mas, na temporada passada, avistei quatro no meu turno da manhã.”

Lá embaixo, bandeiras pretas tremulavam num trecho da praia chamado Surfers Corner (Canto dos Surfista), indicando que a água estava muito turva para a avistagem de tubarões. Bandeiras verdes indicam águas claras. Quando um tubarão é avistado, bandeiras brancas com a imagem de um tubarão são hasteadas e uma sirene é acionada. Agnes disse que as bandeiras pretas estavam hasteadas em 12 de janeiro de 2010, quando Lloyd Skinner, um empresário do Zimbábue em férias, ajustou seus óculos de natação a 100 metros da costa, com a água na altura do peito, na praia Fish Hoek, poucos quilômetros ao sul de Muizenberg. Uma testemunha depois descreveu que “uma sombra gigante, do tamanho de um dinossauro, escureceu a água.” Logo a sombra materializou-se e atacou Lloyd por trás. “Ele abocanhou o corpo inteiro do homem e o braço ficou no ar”, disse a banhista Phyllis McCartain ao jornal Cape Times. “Depois, o mar se encheu de sangue.”

Quatro barcos e um helicóptero de resgate buscaram Lloyd durante dois dias, mas encontraram apenas seus óculos. O avistador de Fish Hoek não conseguira ver o tubarão nas águas turvas. “Ele viu o sangue na água e logo percebeu o que acontecera”, contou Agnes.Ela frisa que aquele avistador não trabalha mais. Ele não conseguiu lidar com a possibilidade de algo acontecer de novo.

E algo aconteceu de novo oito meses depois, 130 quilômetros a sudeste, em Shark Alley, área densamente habitada por tubarões nas proximidades da ilha Dyer. Rochedo nu a 8 quilômetros do continente, Dyer é o lar de 60 mil focas que atraem centenas de tubarões brancos todo inverno. Em 21 de setembro, Khanyisile Momoza, pescador de 29 anos, estava coletando ilegalmente conchas abalone, que servem como objetos de decoração, com mais uma dúzia de amigos. Ele mergulhava nos arredores de Dyer há anos, mas naquela manhã um grande tubarão branco o atacou. “Todos gritamos”, contou um pescador. “Nós só conseguimos nadar, nem olhamos para trás.”

Houve mais três vítimas naquela área em 2010: uma mulher de 21 anos que mergulhava com snorkel em Sodwana Bay, ao sul de Moçambique; um surfista de 35 anos cujas pernas e pés foram mordidos nas proximidades de Durban e um jovem bodyboarder, no canto nordeste de False Bay, que foi atacado em águas rasas. Em janeiro de 2011, em Second Beach, na Costa Selvagem da África do Sul, um tubarão-tigre arrancou um pedaço da perna do surfista de 16 anos Zama Ndamase. Ele tentou pegar uma onda de volta para a praia, mas morreu de hemorragia antes de ser resgatado.

Para Agnes e outros avistadores, vários desses ataques têm uma coisa em comum: a proximidade de locais onde se pratica mergulho em gaiolas. As operadoras desse tipo de “passeio” nos arredores das ilhas Seal e Dyer usam o chum – massa de sardinhas esmagadas com óleo de peixe, atum picado e fígado de tubarão – e iscas, como pedaços e cabeças de peixe, para atrair os grandes tubarões brancos para encontros ‘olhos nos olhos’ com os turistas, que são submersos em gaiolas de aço em meio à visão ensanguentada.

Não há provas de que há uma conexão entre o mergulho em gaiolas e os ataques, e as estatísticas disponíveis são tão turvas quanto as águas da False Bay. Mas ainda que o número de ataques tenha diminuído na África do Sul nas últimas duas décadas – 51 entre 1990 e 1999 (sete fatais), e apenas 34 na década seguinte (seis fatais), os ataques em algumas da áreas onde se pratica o mergulho em gaiolas aumentaram. Na Península do Cabo, especialmente na False Bay, e na área da Ilha Dyer, os ataques dobraram, de seis nos anos 90, na época em que o negócio estava apenas começando, para 12 nos anos 2000.

Agnes não é a única a fazer a conexão entre o sangue e vísceras jogados ao mar e o comportamento dos tubarões na costa oeste do Cabo. “É difícil pular na água perto da carne que está sendo jogada e não temer pela própria vida”, afirma George Burgess, diretor do International Shark Attack File [ISAF ou Arquivo Internacional de Ataques de Tubarão], grupo de pesquisa no Museu de História Natural da Flórida.


CASA DE TUBARÃO: False Bay, na África do Sul, onde o índice de ataques
de tubarões-brancos aumentou nos últimos anos

NO GERAL, 2010 foi um ano temeroso para se estar dentro d’água. De acordo com o ISAF, 79 ataques ocorreram no mundo todo no ano passado – o maior número em uma década, 25% maior do que os 63 ataques de 2009 (número que também é a média anual ao longo da última década). Assim como nos últimos anos, o maior número, 32, foi na América do Norte, com a Flórida encabeçando a lista. O Condado de Volusia – cuja concentração anual de banhistas e surfistas e sua proximidade à Enseada Ponce de Leon, abarrotada de iscas, a tornaram capital mundial de mordidas de tubarão – mantém o título, com seis vítimas (a maioria atacada por tubarões pequenos).

George, biólogo marinho especializado em tubarões, rapidamente aponta que este salto pode não ser significante. “A taxa de ataques não está necessariamente aumentando”, diz. Em vez disso, o que está aumentando é a população humana, assim como o número de pessoas que praticam esportes aquáticos. Ainda há mais probabilidade de você ser queimado por uma água viva ou se machucar com sua própria prancha do que ser mordido por um tubarão.

O que causou o aumento no número de ataques, em 2010, foram os seguintes fatos: de janeiro a maio, seis pessoas foram mordidas por espécies desconhecidas de tubarão na praia vietnamita de Quy Nhon, em uma série de acontecimentos cuja causa permanece um mistério. E em dezembro uma terrível concentração de incidentes agitou o resort egípcio de Sharm el-Sheikh, no Mar Vermelho. Ataques em série, quando os tubarões parecem enlouquecer e atacam repetidamente uma mesma região, não são novidade: o primeiro a ser descrito, que inspirou o livro Jaws, de Peter Benchley, em 1974, ocorreu em julho de 1916, no litoral de New Jersey (EUA), onde grandes tubarões brancos mataram quatro pessoas e feriram mais uma num período de 12 dias.

Os ataques de Sharm el-Sheikh começaram no início de dezembro, quando tubarões-de-ponta-branca atacaram quatro turistas russos e ucranianos numa única tarde. Quatro dias depois, tubarões arrancaram uma perna e um braço de uma senhora alemã de 70 anos, que rapidamente morreu de hemorragia. Autoridades egípcias interditaram um trecho de 48 quilômetros da costa do Mar Vermelho para nadadores, enquanto pesquisadores, inclusive George, corriam para o local. “Foi provavelmente o incidente de tubarões mais incomum da minha carreira. Cinco ataques em quatro, cinco dias, praticamente no mesmo lugar, é muito raro. Significa alguma coisa”.

À medida que os pesquisadores entrevistavam as testemunhas, surgiram alguns fatores óbvios. Pescadores da região haviam notado a falta de atum naquele ano, o que pode ter deixado os tubarões com fome. E a proximidade das águas profundas do Mar Vermelho às praias significa que turistas e tubarões nadam próximos uns aos outros. Mas os biólogos também descobriram que um navio cargueiro da Nova Zelândia havia descarregado no oceano, ilegalmente, carcaças de cordeiro durante o mês de novembro – animais que haviam morrido durante o transporte para o festival islâmico Eid al-Adha, no Egito. A carne teria atraído mais tubarões do mar aberto.

Incidentes como este – assim como uma série de ataques no começo dos anos 2000 em Recife, em que tubarões-touro morderam surfistas nas proximidades do escoamento de uma indústria de processamento de frango – levantaram a possibilidade de que a comida na água talvez possa aumentar a chance dos banhistas também se tornarem presa. Quando tubarões atacam com mais frequência em determinadas áreas, normalmente tem a ver com mudanças nas condições oceanográficas (aumento da salinidade, águas mais quentes ou perda de fontes de alimento), que os empurram para mais perto das pessoas. Humanos não são presas naturais dos tubarões, nem mesmo ovelhas ou gado. Mas carne e humanos na água são uma péssima combinação. “Não há dúvidas de que a alimentação contínua irá condicionar os tubarões, e o resultado é uma situação pouco natural, não só na abundância de indivíduos, mas também em seu comportamento”, diz George.

No centro desta questão está o mercado de mergulho em gaiolas. Ele se originou na África do Sul no começo dos anos 90, quando pescadores comerciais em Gansbaai, cidadezinha onde o principal idioma é o Africânder, a 130 quilômetros da Cidade do Cabo, decidiu que poderia ganhar mais dinheiro com a observação dos tubarões brancos do que com sua matança. Eles copiaram a técnica do documentário Blue Water, White Death (Água Azul, Morte Branca), de 1971, cujos produtores foram os pioneiros da observação de tubarões de dentro de uma jaula. Duas décadas depois, a venda de ingressos para esses mergulhos gera uma renda anual de 300 milhões de rands (aproximadamente 43 milhões de dólares) a Gansbaai e sua vizinha Kleinbaai.

Hoje já é possível fazer mergulho em gaiolas nas Bahamas, Caribe; na região da ilha Guadalupe, México, a 260 quilômetros da costa oeste da Baja Califórnia; e no North Shore de Oahu, no Havaí; na Austrália. Mas o alastramento do mergulho em gaiolas causou também uma reação contra o uso de chum e iscas. A Flórida proibiu o chumming em 2001 e o Santuário Marinho do Golfo de Farallones, no norte da Califórnia, a 44 quilômetros de San Francisco, interditou a prática sete anos depois. Na ilha Guadalupe, a proibição de 2008 levou algumas operadoras a descer suas gaiolas a maiores profundidades, para ficarem mais próximas dos tubarões. O ar é levando por mangueiras e não há necessidade de cilindros ou certificação de mergulho.

Em maio de 2010, a revolta chegou à Maunalua Bay, em Oahu, quando 300 cidadãos enraivecidos apareceram em uma reunião na prefeitura para protestar contra os planos de iniciar o mergulho em gaiolas no local. O chumming é ilegal nas águas do estado até 5 quilômetros mar adentro desde 2009, mas os ativistas dizem que a fiscalização relaxou, e eles querem que a lei seja aplicada. Eles coletaram vídeos do youtube com imagens de operadoras dando “enormes pedaços de carne na boca dos tubarões”, afirmou Grene Ward, representante distrital do estado do Havaí. Ainda assim, ninguém consegue responder à pergunta-chave: o chum transforma os tubarões em comedores de gente?


RECONSTRUÇÃO: Craig Bovim em seu veleiro, Synove; acima a mão de
Craig, costurada após o ataque

EM NENHUM OUTRO LUGAR, A REUNIÃO de tubarões, comida e pessoas está tão sob os holofotes quanto no berço do mergulho em gaiolas. Tubarões são uma obsessão na África do Sul, e as histórias de ataques estão incrustadas na mente das pessoas.
“Todo banhista da Cidade do Cabo conhece alguém que já foi atacado”, afirma Lewis Gordon Pugh, nadador de longas distâncias que foi a primeira pessoa a nadar ao redor do Cabo da Boa Esperança, em 2004. Lewis observou “um dramático aumento nas avistagens de tubarões” na península do Cabo, já que trabalhou como salva-vidas nos anos 90. Durante sua travessia da Boa Esperança, um animal enorme nadou ao redor dele. Nunca vi nada se mover tão rapidamente”, diz. Dias depois, um adolescente perdeu a perna na altura do quadril, arrancada por um grande branco na praia de Muizenberg. Dois dias depois, um dos amigos mais próximos de Lewis, Achmat Hassiem, também teve a perna em Muizenberg. Depois disso, parei de nadar no litoral da Cidade do Cabo”, completou ele.

Lewis diz que não está qualificado a julgar se o chumming levou ou não ao aumento dos ataques, mas a prática o deixa perturbado. “Devemos respeitar um animal que está no mundo desde o tempo dos dinossauros, que é vital para o ecossistema. Ninguém vai para o Serengeti, Tanzânia, e joga carne de cima de uma Land Rover para atrair leopardos e leões mais para perto.” É exatamente isto que se faz com os tubarões na África do Sul, como eu mesmo vi no final de outubro. Por 1.100 rands, aproximadamente 170 dólares, agendei um mergulho com a White Shark Projects, uma das seis operadoras baseadas em Kleinbaai, comunidade em pleno crescimento, com vista para Dyer e Shark Alley.

Minha escolha não foi ao acaso. Eu havia escutado histórias de que a falta de regulamentação reina nas empresas dali, e a White Shark estava no centro da controvérsia. Em abril de 2008, o Shark Team, catamarã de dez metros da empresa, havia sofrido um acidente fatal em que três turistas, incluindo um americano recém-casado de 33 anos chamado Chris Tallman, se afogaram nas águas geladas de Dyer quando uma onda gigante atingiu o barco. Mas o Shark Team ainda estava em operação, levando centenas de turistas semanalmente ao ponto onde os três homens morreram.

A manhã começou com um longo briefing a respeito dos grandes brancos, espécie dominante na área de Dyer. Com três populações distintas – uma no Pacífico norte, uma na região da Austrália e Nova Zelândia, e uma terceira na costa da África do Sul –, o carcharadon carcharias evoluiu para perseguir e matar presas, com um sentido apurado de faro, visão afiada e células sensoriais eletromagnéticas que lhe permitem detectar as mais tênues descargas elétricas produzidas por todos os animais. Seus três mil dentes – os inferiores para agarrar e os superiores para cortar – e a mandíbula desarticulável lhe dão um poder inigualável de mordida. E seu metabolismo acelerado faz dele um ser insaciável: um pesquisador na False Bay observou um tubarão branco devorar três focas em uma única noite, embora alguns estudos demonstrem que ele consegue sobreviver durante um mês sem se alimentar.

O céu estava encoberto e o ar fresco, a 13oC, enquanto o guincho abaixava o Shark Team na água. Três outros barcos estavam se preparando para sair, e uns 25 turistas tremiam de frio ao desembarcarem de um passeio ao sol nascente que acabara de chegar. Enquanto navegávamos mar adentro, três marinheiros jogavam baldes de fígado de tubarão e sangue na esteira do barco, produzindo uma trilha fedorenta para atrair predadores para o Shark Team. A tripulação insistia que não era comida, mas um estimulante para o olfato dos tubarões.

As ondas estavam altas e o barco balançava intensamente. A maioria dos passageiros (uma dúzia de britânicos, suíços alemães, indianos e espanhóis) enjoaram. Ainda assim, estávamos todos ansiosos, enquanto a tripulação ancorava o barco na costa da ilha Dyer sob a brisa forte e salgada e começava a preparar a gaiola – uma traquitana retangular com espaço para cinco mergulhadores – na popa.

Enquanto colocava meu neoprene, lembrei da conversa que tive com Sarah Tallman, viúva de Chris Tallman, que havia telefonado para ela na noite anterior à sua morte. “Chris estava tão empolgado com o mergulho, que nem sabia se ia conseguir dormir”, afirmou. Na manhã do dia 13 de abril, Chris e Casey LaJeunesse, seu padrinho de casamento, haviam terminado o mergulho na gaiola e estavam tirando o neoprene quando uma onda de nove metros atingiu a proa do Shark Team. Ninguém deu por falta deles até o momento em que os barcos de resgate desembarcaram os passageiros no porto. Um jovem norueguês também se afogou. O diretor e proprietário da White Shark Projects, Charmaine Beukes, insistiu que “todas as medidas de segurança” haviam sido tomadas quando o barco virou. Mas a agência sul-africana de segurança marítima emitiu um relatório em que acusava o capitão do barco, Grant Tuckett – cuja habilitação havia vencido cinco meses antes – de “mau julgamento”, por ignorar as condições do tempo e pela escolha de um ponto de ancoragem notório por suas ondas violentas. Ninguém da tripulação havia passado por treinamento de resgate, nenhum dos passageiros estava vestindo coletes salva-vidas e a empresa não emitiu nenhum relatório. Sarah Tallman entrou com um processo multimilionário por negligência, que vem se arrastando em trâmites legais. Nenhuma audiência foi agendada até agora.

As mortes de Chris e Casey permaneceram na minha cabeça enquanto me preparava para o mergulho, mas desapareceram logo que me vi pronto para encarar um tubarão branco olho no olho. Entrei na jaula submersa, tremendo com a água fria. Puxei a máscara sobre o rosto e esperei, com a cabeça para fora e os joelhos desconfortavelmente dobrados. Alguns minutos depois, ouvi um grito vindo do convés: “Descer!”. Arrepiado, me encolhi para dentro do mar. Através da água turva, consegui distinguir a cabeça em forma de seta de um grande tubarão branco, com uns dois metros e meio de comprimento, nadando diretamente na minha direção. Instintivamente colei na parede oposta da jaula, mesmo tendo sido convencido de que as barras de aço me protegeriam. O tubarão abocanhou uma enorme cabeça de atum pendurada numa corda e a arrancou. De novo, a isca foi levada embora. Daí ele desapareceu e tudo ficou tranquilo. Um pouco mais, e outro grito veio do convés: “Descer!” O tubarão apareceu de novo e arrancou mais uma isca.

Este jogo continuou por mais meia hora, até que o tubarão desistiu e desapareceu. Fiquei submerso mais 15 minutos, congelado, mas exultante. Enquanto balançávamos nas águas turbulentas, contei mais cinco embarcações de observação de tubarões nos arredores. A água estava oleosa de tanto chum.

A EXCURSÃO DE MERGULHO EM GAIOLAS me ofereceu muito mais do que eu merecia em diversão. Mas será que valeu? Ou será que estava levando alguém para virar lanchinho na semana seguinte?

Na África do Sul, o líder da campanha contra o mergulho em gaiolas é Craig Bovim, marinheiro e surfista da Península do Cabo que tem uma empresa de manutenção. Ele me encontrou para almoçar no Iate Clube de False Bay, onde um veleiro de 9,5 metros, o Synove, estava na doca seca para manutenção anual. Craig, um homem robusto por volta dos 40 anos, despojadamente vestido no estilo Crocodile Dundee, não ostenta nenhum sinal do ataque que quase o matou – até que se notam as cicatrizes avermelhadas em ambos os braços. O tubarão arrancou a artéria principal do seu pulso direito, destruiu os tendões e o deixou com um braço direito praticamente inútil. Sentamos num café em frente ao clube, e quando começamos a conversar, um curioso etilicamente alterado nos olhou por cima de sua cerveja .

“Você foi atacado por um tubarão?”, ele perguntou.
“Sim,” respondeu Craig. Ele já previa a pergunta.
“Como é?”
“Recomendável.”
“É uma experiência empolgante?”

“Na hora, não. Mas você se surpreende como vai se sentir melhor depois de tudo.”
Na noite de Natal de 2002, Craig havia caçado lagostas no mar na praia de Scarborough, no lado atlântico da Península do Cabo. Ele percebeu uma forma escura nadando sobre ele. “Uma imensa prancha em movimento”, revelou. O tubarão branco, que parecia ter quatro metros, o seguiu e depois desapareceu.

Craig estava aliviado, mas por pouco tempo. “Coloquei a cabeça para fora d’água e vi aquela barbatana a uns 30 metros, vindo em minha direção, daí vi a boca rosa vindo pela superfície.” Craig gritou quando o tubarão agarrou seus braços com as mandíbulas. Ele ouvia o quebrar dos próprios ossos, enquanto faixas de sangue fluíam da boca do bicho. “Ele estava me arrastando, e eu estava embaixo d’água”, contou. “Foi uma experiência muito profunda. Eu me rendi à sensação, sentindo minha vida se esvair.”
Daí Craig pensou em seu filho de quatro anos e encheu-se de vontade de viver. Ele socou o nariz do tubarão com sua máscara, arrancou seu braço direito dilacerado da boca do animal e liberou o esquerdo. O tubarão fugiu, deixando Craig – ainda com o cinto de lastro – afundando até a areia. Conseguindo liberar o cinto com o osso exposto da mão direita, debateu-se até a superfície e a arrebentação o levou até a praia. Os surfistas chamaram um médico, que lhe aplicou uma injeção de morfina e coordenou um resgate aéreo até um pronto-socorro. Ele havia perdido dois litros e meio de sangue e teve que passar por 14 cirurgias para reconstruir nervos, músculos e tendões. Nove meses depois, estava de volta à sua prancha.

Nos dois anos que se seguiram, Craig percebeu um aumento nos ataques em False Bay. Em setembro de 2003, um tubarão branco imenso matou um surfista de 19 anos em The Dunes, uma área popular de surf. Em abril seguinte, na mesma praia Muizenberg mencionada por Lewis, um tubarão arrancou a perna de um jovem colega surfista de Craig; o rapaz de 16 anos teve parada cardíaca, mas foi reanimado depois de 20 minutos (a perna amputada foi encontrada no dia seguinte, ainda presa no leash da prancha). Sete meses depois, uma mulher de 78 anos estava fazendo seus 20 metros de nado costas na praia Fish Hoek quando um tubarão branco de nove metros a devorou. Só sobrou sua touca de natação.

Craig ficou alarmado. Apesar dos ataques na África do Sul terem diminuído, os mais recentes estão concentrados ao redor da ilha Seal, onde as operações de mergulho com gaiola estavam em alta. Ele consultou biólogos e estudou a pesquisa do falecido professor da Universidade de Stellenbosch, Deon Sadie, que suspeitava que o mergulho com tubarões estava condicionando os animais a associar humanos à comida. Deon havia examinado gravações feitas por equipes de filmagem ao redor das ilhas Dyer e Seal, inclusive closes de tubarões brancos com suas mandíbulas escancaradas. Ele percebeu que, frequentemente, os operadores dos barcos ajudavam as equipes de filmagem a conseguirem essas cenas – utilizadas em propagandas, filmes e documentários – alimentando os predadores com carne crua.

“A isca continuava lá, e não há ninguém do governo controlando isto”, afirma Craig. “Temos um animal perigoso e o bom senso está sendo desobedecido. Tudo isso é negligenciado porque rola muita grana.” Em junho de 2005, Craig enviou uma carta assinada por iatistas olímpicos, campeões de surf, biólogos marinhos e outros sul-africanos importantes ao ministro do meio ambiente e turismo, pedindo a proibição do chumming. “Essas práticas são desnecessárias e têm implicações ecológicas totalmente desconhecidas”, dizia a carta. Como nada aconteceu, ele formou uma organização anti-mergulho em gaiolas, o Shark Concern Group. Zolile Nqayi, diretor de comunicações da divisão de mar e costa do departamento de assuntos ambientais, contou via e-mail que o governo não considera o chumming alimentação e insiste que “é muito importante para nós assegurar que os tubarões não estejam sendo alimentados.”

Enquanto isto, os ataques continuaram. No começo de 2005, em março, um surfista inglês foi atacado por um tubarão branco perto de Noordhoek, na costa atlântica. Em maio, um mergulhador havia sido devorado por um tubarão branco em Miller’s Point, na ponta sul da False Bay. Dois meses depois, na área da ilha Dyer, um tubarão branco saltou para fora d’água e quase agarrou um turista inglês que estava entrando na jaula. Dois outros também escaparam por pouco em False Bay; um surfista foi arrastado e um mergulhador espantou o tubarão com o arpão.

Há dois anos, Craig inscreveu-se no departamento sul-africano de gerenciamento marinho e costeiro para conseguir uma permissão de operar mergulhos ecologicamente corretos para ver tubarões ao redor da ilha Seal, sem uso de chum ou motores. O departamento rejeitou seu pedido sob a justificativa de que não existem tais alvarás, e sugerindo que ele refizesse sua solicitação como operadora de mergulho com gaiolas. Ainda assim, Craig continua levando amigos à ilha ao nascer do sol para observar os ataques dos tubarões contra as focas. As visitas às vezes levam a encontros tensos com operadoras de mergulho que utilizam gaiolas. “Eles acham que é um programa só deles”, comentou Craig. “Mas eu não vou desistir.”

QUANDO SE FALA com críticos como Craig, fica fácil relacionar o sangue na água com os ataques de tubarão. Mas até o presente, muito poucos estudos analisaram o chumming. Em parte, porque os cientistas estão ocupados com um ponto mais importante: as criaturas realmente ameaçadas são os próprios tubarões, não nós. As populações mundiais deste animal caíram de 60 a 90% nos últimos 50 anos, e os cientistas acreditam que isto é em parte causado por mercados sem regulamentação, como aquele conhecido como finning [fin = barbatana], em que se caçam os tubarões em redes, cortam fora as barbatanas e devolvem o animal para morrer no mar. Este tipo de caça é praticado para alimentar a insaciável demanda do mercado asiático por sopa de barbatana de tubarão, e mata aproximadamente 73 milhões desses animais por ano. Atualmente, os cientistas estimam que deve haver menos de 3.500 grandes tubarões brancos. “Menos do que o número de tigres”, de acordo com Ronald O’Dor, cientista sênior do censo da vida marinha, baseado em Washington, D.C.

Uma das poucas pessoas que já estudou o chumming é Alison Kock, bióloga marinha que dirige a pesquisa de tubarões brancos para o grupo conservacionista Save Our Seas [Salve Nossos Mares] e defende o mergulho com gaiolas. Seu escritório fica numa modesta cabana em Kalk Bay, próspera vila de pescadores a meio caminho entre Muizenberg e Fish Hoek. Fui até lá uma tarde, dirigindo desde a Cidade do Cabo pela Ou Kaapse Weg, serra sensacional que faz seu ziguezague através dos campos de fynbos, vegetação rasteira nativa da península do Cabo. Alison, candidata a Ph.D. com cerca de 30 anos de idade, admitiu de imediato que tem laços fortes com este mercado: a família do seu marido tem uma das oito concessões, em Gansbaai. Mas ela insistiu que esses laços não a impediram de olhar o mercado com objetividade.

“Os tubarões não veem as pessoas como presa natural”, ela me disse. O aumento dos ataques vem acontecendo no último século, quando também aumentou o número de pessoas entrando na água por recreação. Alguns desses ataques não passam de “investigação de algo novo”, disse. Em raras ocasiões, como no caso da morte de Lloyd Skinner, em 2010, é que o peixe se torna predador. “Estou surpresa de que não houve mais ataques. A maior parte do tempo eles nos ignoram”, frisou Alison.
Em 2007, ela foi co-autora de um estudo sobre o efeito das atividades de ecoturismo no comportamento dos tubarões brancos. Entre maio e outubro de 2004, pesquisadores da Universidade da Cidade do Cabo e da Universidade Simon Fraser de Vancouver (Canadá) identificaram 17 tubarões brancos ao redor da ilha Seal com transmissores acústicos. Eles compararam o comportamento dos tubarões quando não havia chum na água, e quando jogavam carne, sangue e óleo em seu ambiente. Apesar de alguns tubarões terem mantido contato próximo com os barcos, o estudo notou que “a grande maioria dos tubarões apenas passava rapidamente, e demonstravam pouquíssima resposta ao incentivo alimentar.”

Ao contrário das expectativas, Alison insiste, até mesmo os tubarões que inicialmente seguiram os barcos perderam interesse após algumas poucas visitas. “Pensei que sempre apareceriam tubarões se os barcos oferecessem comida, mas quando o mergulho com gaiolas é praticado em um nível moderado, onde os tubarões só conseguem comer a isca de vez em quando, eles demonstram ignorar o chumming”, revela ela. “A prática tampouco modificou o comportamento alimentar dos tubarões na região da ilha Seal”, concluiu Alison. No relatório consta que “níveis moderados de ecoturismo provavelmente têm mínimo impacto no comportamento dos tubarões brancos.”

Alguns pesquisadores, inclusive George Burgess, afirmam que o estudo de Alison é inconclusivo, apontando que seu foco estreito não pode ser extrapolado para as populações mundiais. Um dos únicos outros estudos, conduzidos pela Universidade do Havaí em 2009 a pedido da indústria local do mergulho com gaiolas, apoiou as descobertas de Alison, apesar de também ter sido visto com ceticismo por críticos que duvidaram da sua objetividade. O estudo seguiu duas operadoras que conduziam até seis mergulhos diários nas águas da costa norte de Oahu. Apesar de os barcos utilizarem grandes quantidades de isca, os pesquisadores não encontraram ‘provas’ de que a taxa de ataques de tubarão – cinco durante os anos 90 e cinco entre 2000 e 2008 – tenham aumentado na costa norte desde o início do mergulho com gaiolas, em 2001. “As operações atuais de mergulho com tubarões no Havaí oferecem pouco risco à segurança pública”, declarou o relatório.

Na ausência de conclusões definitivas, muitos biólogos querem parar a atividade por questões ambientais. Nas ilhas Farallon, na Califórnia, os biólogos marinhos Peter Pyle e Scot Anderson, da PRBO Conservation Science foram bem sucedidos. Numa publicação de 2007, eles expressaram sua preocupação com “o uso de chum e outros produtos químicos para atrair os tubarões e a aproximação de grandes barcos turísticos aos tubarões em alimentação.” Em contraste com as descobertas de Alison, os conservacionistas determinaram que as atividades estariam interrompendo o ciclo de alimentação dos predadores e resultando no “deslocamento permanente deles em relação à sua presa.” Duas operadoras já começaram a oferecer mergulhos em gaiola sem o uso do chum nas Farallons, submergindo os turistas nos gélidos mares repletos de fitoplâncton. As avistagens de tubarões são esporádicas, mas são uma aventura.

Então, qual é a conclusão final? Perguntei a George se a ausência de pesquisas justifica as afirmações daqueles que dizem que o chumming não é prejudicial. “O gerenciamento da vida selvagem sempre é realizado com base na maior quantidade de dados disponíveis”, disse. “Não temos dados definitivos, mas não podemos tampouco simplesmente dizer que ‘continuaremos a alimentação até que se prove o contrário’”.

“A regra de como se lida com predadores terrestres é a mesma”, continuou. “Não se alimentam ursos, mãos-peladas ou tigres. Na verdade, aqui nos Estados Unidos as pessoas nem podem se aproximar dos predadores. No mundo inteiro a comunidade científica diz que é melhor não alimentá-los, pela preocupação com a ecologia e a saúde dos animais. Por que nós, ao lidarmos com o mais perigoso predador do oceano, queremos agir de maneira contrária com os padrões estabelecidos?”

Fiquei pensando nessas palavras enquanto me dirigia ao Surfers Corner para nadar. Era uma tarde ventosa e clara. Entrei na água gelada até os joelhos. As bandeiras negras tremulavam com as rajadas, e um avistador observava tudo de uma cabana amarela a alguns metros da beirada. “Não se preocupe”, garantiu. “Uma sirene irá soar se um tubarão branco se aproximar”. Escaneei a baía com apreensão, buscando uma sombra longa, mas a água estava muito turva. Daí, minha mente foi bombardeada pelas imagens do filme Tubarão, especificamente a cena em que um enorme tubarão branco ataca um menininho de sunga vermelha que remava em seu barquinho amarelo. Não consegui ficar ali. Saí da água e fui para o meu carro.

* Joshua Hammer é o antigo chefe do escritório africano da revista Newsweek.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2012)